O risco da falta de crítica está entre as principais questões de comprometimento ético que envolvem o jornalismo econômico. Por conta dos temas e dos interesses envolvidos, pode-se dizer que é a editoria do jornalismo mais exposta a questões como o agendamento da mídia por parte de anunciantes, a tendência a privilegiar assuntos relacionados a grandes cifras em detrimento de atividades econômicas de pequeno e médio porte, o deslumbramento diante de fontes milionárias e de prestígio. Para problematização e análise desse último ponto, servirá o recente caso da cobertura da instalação da BMW em Santa Catarina pelo Diário Catarinense. As edições são as dos dias 8 e 9 de abril, e o material analisado as nove e cinco páginas dadas ao assunto, respectivamente, além de duas colunas e editorial do dia 9.
“Uma nova era”, “revolução” ou “registro de um sonho” é o tom que perpassa todo o discurso da cobertura citada, ora mais centrada em fatos jornalísticos, ora em “detalhes menos formais”, como o veículo chamou, o que pode causar um certo desconforto ao leitor e até uma confusão sobre o que é informação jornalística e o que é divulgação ou entretenimento no meio das páginas. A última página do caderno especial intitulada “O charme da marca” evidencia com fotos os automóveis de luxo, com participação em filmes e modelos antigos. Outra predominância incômoda é o discurso romanceado e amigável presente em algumas matérias com o governador do estado – como a pergunta “Como se sente o governador que trouxe a montadora para o Estado?” – ou a declaração “Algo ficou claro no fim deste longo processo: o governador Raimundo Colombo sabe guardar segredo… Não contou sobre este fato [da instalação da empresa em SC] para ninguém, nem para a neta”.
Entre os principais assuntos tratados na cobertura estão as idas e vindas do governo e de empresários para a negociação de mais de um ano e meio, e os impactos que a multinacional causará na região, atraindo outras empresas e gerando empregos. É inegável o desenvolvimento econômico que a BMW trará para o estado. Mas muitas questões importantes não são abordadas. De fato, como o secretário de Estado do Desenvolvimento Sustentável, Paulo Bornhausen, afirma em uma das matérias que “talvez as pessoas não tenham o entendimento do que isso significa”. Justamente, com as informações disponíveis não é possível ao público compreender o que este acontecimento representa para a sociedade. Problema comum abordado em várias críticas de mídia, mais uma vez as informações carecem de maior contextualização. Observa-se maior preocupação em mostrar o grande feito e pouca em questioná-lo.
O que questionar?
Começa-se pelo histórico das negociações, repetido em diferentes textos. Sem pormenores do que estava em jogo durante o processo, limitam-se a citar as viagens e as datas em que os acordos foram firmados. Outro assunto recorrente em mais de uma notícia é sobre o evento da assinatura do contrato, realizado no Centro Integrado de Cultura em Florianópolis, no dia 8/4. A primeira notícia do dia 9 apresenta um resumo dos discursos dos oradores da festa e a última página é concebida como uma coluna social, com direito a menções ao “terno azul bic do ex governador Esperidião Amin”, aos “elogios mil” a Colombo, ao rótulo de “comediante” ao prefeito de Araquari e à “ilustre presença” do ministro Fernando Pimentel.
Duas matérias enfatizam o perfil da empresa com relação ao estado da seguinte forma: “firme e exigente BMW” e “passaram-se 530 dias de muitas conversas, trabalho e o cumprimento de mais de mil exigências”. A pergunta simples e direta que se faz é: que exigências? O fato gerador das notícias do dia 8 era a assinatura do protocolo de intenções para os investimentos da empresa com o governo do estado. Nas nove páginas do diário, ou nas oito do dia seguinte, não há uma linha sequer sobre o contrato. A sociedade tem o direito de saber o que está sendo concedido com dinheiro público. Entre as “mil exigências”, ao menos aquelas de maior impacto. Por que não foi apurado? Por que não há uma declaração sobre este assunto? A edição do dia 9 traz, no entanto, sete parágrafos com fotos e destaque em mais de meia página, para a caneta que o governador usou para assinar o contrato, com ampla descrição, histórico de fabricação, “currículo” da caneta e comentários de um major, “guardião do objeto”.
Outra informação não menos importante: a multinacional vem para o Brasil impulsionada pelo programa federal Inovar-Auto, que em nenhum momento mereceu explicação. Não há informações sobre os benefícios e exigências do programa. Uma linha do tempo das negociações fala de uma reunião em dezembro de 2011 em que o ministro da fazenda, Guido Mantega, “acalma os alemães” diante de possível interesse da empresa no México. Como fez isso? Não se sabe. As também citadas “longas e complexas negociações envolvendo a alteração de IPI para carros importados” são outro mistério.
Não ficam dúvidas sobre o impacto econômico em termos financeiros da empresa em Santa Catarina. O jornal traz projeções comparando com uma região dos Estados Unidos que abriga uma montadora da BMW, apresenta os dados e os contextualizam e relata o poder de atração da marca. Mas as contrapartidas do estado, a verba pública envolvida, quanto que arrecadará ou deixará de arrecadar, são informações relegadas a segundo plano, e aqui se quer chamar atenção para a diferença entre impacto econômico e impacto social. São divulgados os motivos da fábrica ter escolhido a região, os investimentos, os rendimentos da empresa, mas em nenhum momento se apresenta quanto o estado irá investir nessa instalação e quanto vai arrecadar. Tais investimentos serão voltados às empresas ou à população?
Além disso, em termos públicos, investimentos desse porte também carecem de comparações com outros ramos industriais. Inexiste discussão sobre outras opções de modelos de desenvolvimento que o estado poderia apoiar. Sabe-se que a indústria automobilística é de intenso uso de tecnologia, e em comparação com outros setores gera menos empregos com remuneração maior. Outros ramos apresentam maior potencial de inclusão. O que representa 1,4 mil empregos no estado? A WEG, de Jaraguá do Sul, por exemplo, tem 26 mil funcionários. Esta é uma comparação que a cobertura não faz. Vale reafirmar que a intenção aqui não é criticar a vinda da BMW, mas a falta de esclarecimentos. O crescimento da riqueza na região não garante sua distribuição.
A exemplo de outros lugares, a própria reportagem afirma que o número de habitantes da região poderá triplicar. Qual será o modelo de desenvolvimento sustentável? De que forma a chegada da grife BMW vai revolucionar o estado? A qualidade de vida de toda essa população irá acompanhar o crescimento da economia regional? Sobre as mudanças necessárias, o prefeito de Araquari afirma que a principal preocupação da cidade é com os serviços de saneamento básico, para os quais receberá R$ 23 milhões do governo federal. E qual o planejamento para as demais questões? Questionado sobre investimento em rodovias, o ministro Pimentel fala na crença em investimentos privados em infraestrutura através de um programa de concessões. Este é o plano do governo?
O crescimento econômico em si não é sinônimo de desenvolvimento social e qualidade de vida. Vide o caso do ABC paulista, região que abriga as principais montadoras do país e grandes bolsões de pobreza, cercados de problemas sociais. Não se afirma aqui que este será o caso da região norte de Santa Catarina, mas levantam-se questões que precisam ser mais bem esclarecidas à população, juntamente com a transparência de uso da verba pública. O governador cita que quando era prefeito de Lages levou a Ambev para a região e que hoje a empresa representa 30% do movimento econômico local. Em contrapartida, qual foi o impacto na qualidade de vida das pessoas no município? Esse modelo inclui os lageanos? Ao não procurar tais informações a cobertura ilustra uma secundarização do impacto social, com o qual o jornalismo está eticamente comprometido, em prol de um tratamento prioritário ao impacto econômico, às relações políticas e ao que se convencionou chamar de jornalismo “interessante”, como as “notícias leves” e até bizarras que intercalam a cobertura do negócio que será o maior financiamento da história do BRDE.
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Elaine Manini é mestranda em Jornalismo na UFSC e pesquisadora do objETHOS