Pedro Florêncio, um iniciante universitário, estudante de rádio e TV, me enviou um dos melhores questionários a que já tive a oportunidade de responder. Reproduzo a seguir parte da entrevista, que me permitiu refletir sobre a experiência deste jornal, às vésperas dos seus 26 anos. (L.F.P.)
O senhor imaginava que o jornal fosse chegar nesse patamar atual, referência de excelência nacional e internacional?
L.F.P. –Não. O jornal tinha um sentido utilitarista imediato: publicar a reportagem sobre o assassinato. Depois, deveria perder sua razão de ser. Afinal, estávamos iniciando o que acabaria por se tornar o mais longo período democrático da história republicana brasileira. Sem censura estatal, a imprensa poderia divulgar tudo de relevante que apurasse. O problema é que isso não aconteceu. A censura direta do Estado acabou, mas outras formas de censura, sobretudo econômica, se desenvolveram. E um mal maior se propagou: a autocensura. Como o meu jornal não tem amarra alguma, inclusive porque não aceita publicidade, ele se revelou necessário para transmitir à opinião pública informações e análises que não aparecem na grande imprensa. Por isso existe até hoje.
O senhor já deixou de dar alguma noticia em consideração a uma pessoa de sua estima?
L.F.P. –Nunca. Já perdi vários amigos e quase-amigos por causa disso. Minha única limitação é a minha capacidade investigativa. Se mais não publico é porque mais não sei. Como o jornal é quinzenal e eu sou seu único servidor, o período de produção termina sem que eu consiga concluir a apuração. Nesse caso, ou a matéria passa para a pauta seguinte ou eu a publico com o que sei. Caso o tema persista, voltarei a ele em seguida com mais informações. Para não me condicionar, além de rejeitar a receita publicitária, restringi ao mínimo minhas relações sociais. Assim, evito coação moral ou sentimental.
O seu pai foi o fundador do PTB em Santarém, nunca pensou em seguir a carreira política?
L.F.P. –Pensar, eu pensei muito. Mas nunca me decidi a seguir a carreira política do meu pai, embora ele tudo fizesse para me seduzir como seu sucessor. Estive muitas vezes a um passo da filiação partidária. Duas coisas me impediram de dar esse passo decisivo. Uma, o pudor. Ser político é também ser ator, tanto mais ator quanto menor é a consciência política do eleitor. E meu pudor me impede de interpretar o papel que cabe aos que querem obter o voto. É uma condição indispensável, em qualquer lugar, porém maior em lugares atrasados, como o nosso. Não tenho essa qualidade. O outro fator é que condsidero a filiação a um partido incompatível com a atividade de um jornalista que emite opinião e exerce juízos de valor. Ele tem que ser imparcial e objetivo ao máximo. A vinculação partidária é um sério complicador para o exercício desses atributos.
O senhor já trabalhou na grande imprensa. Não sente vontade de voltar? Recebe convites para retornar?
L.F.P. –Trabalhei durante 26 anos na grande imprensa. Ou só nela ou, ao mesmo tempo, nela e na imprensa alternativa. Gostaria de voltar, sim, pelos meios que ela podia me oferecer para viajar, poder me dedicar mais à investigação jornalística, ter sua cobertura institucional. Mas tentei voltar uma vez e não deu certo. Assumi o lugar de diretor da sucursal da Gazeta Mercantil em Belém. Fiquei apenas três dias no posto. Pedi demissão. Vi que não iria conseguir me recondicionar ao universo de compromissos e limitações da grande imprensa. Vi que me tornei, definitivamente, um outsider, condenado a remar contra corrente, a seguir pela história no sentido anti-horário.
O Jornal Pessoalé o jornal mais comprado nas bancas, isso lhe dá algum tipo de orgulho?
L.F.P. –Não propriamente orgulho, certa satisfação. Ele é o mais vendido em banca porque é o mais comercializado em banca. Os jornais da grande imprensa são vendidos principalmente a assinantes ou, no caso de Belém, nas ruas pelos jornaleiros. Uma parcela pequena da tiragem é que vai para as bancas. O que me alegra é que, apesar de as bancas não serem o melhor lugar para se expor e vender jornais, o JP é procurado pelos seus leitores. O leitor padrão quer que o jornal vá atrás de si e não o contrário. No caso do meu jornal, o leitor tem que sair da sua postura de comodidade e ir atrás do jornal. É uma façanha.
Sempre se fala que os jovens estão perdendo o habito da leitura ou que estão lendo livros com pouco conteúdo, entretanto muitos amigos meus desde a época do colégio leem ou acompanham o que o senhor escreve. Como o senhor vê o interesse do público jovem por seu jornal?
L.F.P. –É interesse provocado pela identidade. O leitor jovem se interessa pelo JP porque ele recende ao novo, à novidade, ao que não aparece na grande imprensa, ao que tem relação direta com o interesse público, ao que reflete as necessidades do seu público. Acho também que é bem escrito e provocador. Coloca muitas perguntas na cabeça dos seus leitores e os estimula a buscar as respostas.
O senhor se arrepende de ter dito ou escrito algo? Se sim que ocasião foi essa?
L.F.P. –Não me arrependi. Penso bastante sobre o que vou escrever e só escrevo depois de ter segurança na minha abordagem. Mas às vezes fiquei incomodado, acanhado, insatisfeito. Às vezes tenho plena consciência de que o que escrevi atingirá pessoas que conheço ou mesmo das quais eu gosto. Sinto a perda da relação, que sacrifico a contragosto, mas como algo a que não posso escapar, se a pessoa atingida atentou contra o interesse público, roubou dinheiro público ou manipula o público. Um grande amigo, dos que mais eu gostava, rompeu comigo, à beira da morte, porque critiquei o jornal que ele comandava. Eu estava certo, sem dúvida. Mas o amigo, pelas circunstâncias em que estava, sofrendo, ficou magoado. Não me defendi. Preferi o silêncio público depois do artigo. Mas lhe escrevi uma longa carta tentando apaziguá-lo. Não foi o único exemplo. Um jornalista critico, que exerce em toda profundidade e com todas as consequências o seu ofício, está condenado a quase uma solidão.
O Jornal Pessoaltem 26 anos, como o senhor imagina o jornal daqui há 26, 52 anos?
L.F.P. –É pouco provável, quase impossível que isso aconteça. Se pudesse, eu teria acabado com o jornal, que é causa direta de eu não alimentar esperanças de mais 26 anos e ter que amargar mais do que o possível cada novo ano. Abstraio as projeções e expectativas. Cuido de cada dia, tão difícil ele é. Espero que o jornal não precise durar mais tanto tempo para que eu possa fazer outras coisas que ele me impede de fazer. Mas para isso a informação ao público precisa melhorar.
O que o senhor acha de não existirem tantos ou outros Lucios Flavios ou mesmo alguns tantos jornais como o Pessoal, que sempre fala a verdade?
L.F.P. –Quando comecei o JP, eu tinha 21 anos de profissão. Passara por algumas das mais importantes publicações brasileiras. Fizera muito e aprendera bastante. Apliquei todo patrimônio acumulado nesse período no JP. E aceitei não ter o retorno que teria se o investisse em um negócio lucrativo ou numa carreira de sucesso. Sabia que estaria condenado à pobreza relativa e à renúncia constante. Era o preço para ter algo que eu não teria se continuasse na grande empresa jornalística: a plena liberdade de expressão. Se fosse mais jovem ou menos experiente, seria difícil fazer uma opção tão radical. Talvez por isso não tenham surgido iniciativas como a minha. Ou não tenham persistido por tanto tempo.
O que o senhor diria aos estudantes que querem seguir a carreira de jornalista?
L.F.P. –Que se decidam pelas ruas, que sigam atrás dos acontecimentos, dos personagens, que lugar de jornalista é na linha de frente da história, não na retaguarda. Ao lado do canhão, quando o canhão está em cena.
Estamos vivenciando todas essas manifestações. O senhor pode fazer algum comentário sobre as mesmas? O senhor participou de alguma? Acha que vai dar em algo?
L.F.P. –Eu era estudante universitário em 1968, “o ano que não terminou”. Participei de passeatas, de mobilizações, de trabalhos de militância. A realidade de então difere completamente da atual. Éramos seres políticos, estávamos cheios de esperança, acreditávamos na utopia. Fomos a última resistência aos tempos sombrios que surgiriam antes que o ano pudesse terminar. Agora estamos numa democracia em expansão, mas as pessoas estão insatisfeitas. Percebem que talvez jamais sejam beneficiadas pelo enriquecimento do Brasil, que enriquece poucos, dá as melhores oportunidades a uma elite restrita e perpetua as injustiças e desigualdades. As manifestações encerram agora uma era de poder indiferente ao povo. Mas não tem propostas de futuro. Nega aquilo que contraria os expurgados e expelidos do atual modelo de poder. É negadora por excelência. Mas não tem ainda um projeto de futuro. O que virá depois ainda é uma incógnita. Pode ser bom, mas há também um grande risco de ser ruim. Vai depender da evolução dos atos de rua.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)