Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Como viemos parar aqui

Eu queria dizer o que penso sobre os últimos acontecimentos no Brasil. Sou um leitor comum e que tenta ficar atento ao que vê e vejo a atuação de nomes de grande peso da mídia como influência positiva nesses protestos. Gostaria de começar falando sobre a minha opinião de como acho que a coisa toda, referente a protestos, aconteceu. Penso que começou há muito tempo, com a nossa tomada de consciência, nos distantes anos escolares. Alguém pode perguntar se o povo não era conscientizado nas gerações anteriores e a resposta é que pouca gente era; o povo inteiramente, não. Uma parte de quem possuía informação a usava a seu favor, outra parte a usava tentando difundi-la, e entre esses difusores está a clássica imagem do professor, nos distantes anos escolares.

Para exemplificar, vou citar uma situação que aconteceu comigo e que deve ter acontecido com muitos, quando um professor tentava explicar o motivo pelo qual a economia do país não deslanchava. A aula, na verdade era de geografia, sobre a formação das cidades e acabou evoluindo para uma conversa descontraída em que alunos e professor dialogam mais. Acabou abrangendo não só as cidades como os estados e chegou ao ponto máximo englobando todo o país.

Um dos motivos, segundo esse professor, de o Brasil não ir mais em frente com a sua economia era por que o transporte das mercadorias e produtos do país era feito de uma forma que gerava muito desperdício de dinheiro, pois usavam-se pouco os transportes hidroviários e ferroviários e muito o transporte rodoviário. Ao ser perguntado sobre o motivo de ser priorizado o transporte rodoviário, o professor nos explicou que as empresas multinacionais, que vendiam caminhões no país, pagavam para os políticos defenderem seus interesses comerciais, fazendo, o que também nos explicou o professor, o famoso lobby. Dessa forma, a própria política, que deveria melhorar o país, fazia o papel contrário, paralisando-o aos poucos, não deixando que as outras formas de transportes se desenvolvessem e crescessem.

Identidade forte

Não sei se as montadoras chegaram a entrar nesse jogo de lobby ou se foi uma teoria unificada do professor, mas sei que essa explicação ajudou muitos a entenderem como funciona a política tradicional no Brasil, com os políticos defendendo interesses particulares das grandes empresas, fazendo lobby. Existem outros motivos que levaram o povo brasileiro a ser dotado de uma maior consciência, embora o estopim desses protestos tenha sido um sentimento de sufoco físico; quem anda de trem ou de ônibus sabe o que é isso.

Outro detalhe que ajudou nessa evolução de consciência foi o aumento do poder aquisitivo. Não hoje, mas em outro tempo, há cerca de dois ou três anos, o brasileiro já teve dinheiro sobrando para comprar outras coisas além de comida. Teve possibilidade de comprar roupas, trocar de carro e até comprar um ou outro livro, e esse foi o maior diferencial entre as pessoas quietas de antes e esses manifestantes de agora, pois quem lê vê mais coisas, tem mais referências para comparar.

O acesso à informação através da web também ajudou muito, tanto para se comunicar quanto para se informar também. A web é o mais importante veículo de comunicação, mas também ajudou os brasileiros a se informarem e a se identificarem enquanto nação, construindo uma identidade forte. A internet ajudou também em outros sentidos, pois hoje se sabe muito sobre cultura, inclusive. Sabe-se, por exemplo, quem foram Dante Alighieri; sabe-se também quem foram e o que disseram Marx e Engels, sobretudo também se sabe quem são Arnaldo Jabor e Luis Fernando Verissimo, pois esses dois escritores, além de serem brasileiros estão vivos, e ligados no que acontece no Brasil e no mundo; eles ajudaram muito, ao longo dos anos, na conscientização, ou educação cultural do povo brasileiro, são eles também formadores dessa consciência nacional brasileira que se manifesta agora.

“O dinheiro fala mais alto”

Para dar um exemplo vou colocar aqui embaixo dois textos. Um extraído de um livro do escritor Luis Fernando Verissimo e um do escritor Arnaldo Jabor, esses dois textos também foram publicado nos jornais.

Da sua natureza

Sorte nossa que as árvores não gemam e os animais não falem. Imagine se cada vez que se aproximasse uma motosserra, as árvores começassem a gritar “Ai, ai, ai!” e aos bois não faltassem argumentos razoáveis para não querer entrar no matadouro.

Imagine porcos parlamentando em causa própria, galinhas bem articuladas reivindicando sua participação na renda dos ovos e gritando slogans contra o hábito bárbaro de comê-las, pássaros engaiolados fazendo discursos inflamados pela liberdade.

Os únicos bichos que falam são os papagaios, mas até hoje não se tem notícia de um que defendesse os direitos dos outros. Papagaio tem voz, mas não tem consciência de classe.

A vida humana seria difícil se não pudéssemos colher uma beterraba sem ouvir as lamentações da sua família e insultos do resto da horta. Não deixaríamos de comer, claro. Nem beterrabas, nem bois ou galinhas, apesar dos seus protestos.

Mas o remorso, e uma correta noção da prepotência inerente à condição da espécie dominante, faria parte da nossa dieta. Teríamos uma idéia mais exata da nossa crueldade indispensável, sem a qual não viveríamos.

Sorte nossa que os vegetais e os animais não têm nem uma linguagem, quanto mais um discurso organizado. Não os comeríamos com a mesma empáfia se tivessem.

O único consolo deles é que também padecemos da falta de comunicação: ainda não encontramos um jeito de negociar com os germes, convencer os vírus a nos pouparem com retórica e dar remorso em epidemias.

Eu às vezes fico pensando como seria se os brasileiros falassem.

Se protestassem contra o que lhes fazem, se fizessem discursos indignados em todas as filas de matadouros, se cobrassem com veemência uma participação em tudo o que produzem para enriquecer os outros, reagissem a todas as mentiras que lhes dizem, reclamassem tudo que lhes foi negado e sonegado e se negassem a continuar sendo devorados, rotineiramente, em silêncio.

Não é da sua natureza, eu sei, só estou especulando. Ainda seriam dominados por quem domina a linguagem e, além de tudo, sabe que fala mais alto o que nem boca tem, o dinheiro. Mas, pelo menos, não os comeriam com a mesma empáfia.”

“Um exército de oligarcas se preparando para a vingança”

Agora o texto do Arnaldo Jabor:

Meninos, eu vi…

Vocês viram também, mas acho que esqueceram.

Eu vi as empregadas gritando, a cozinheira chorando, o rádio dando a notícia: ‘Getúlio deu um tiro no peito!’

Eu, pequeno, imaginava o peito sangrando – como é que um homem sai da presidência para o nada?

Meninos, eu ouvi, anos depois, no estribo de um bonde:

‘O Jânio renunciou!’

Como? Tomou um porre e foi embora depois de proibir o biquíni, briga de galo e de dar uma medalha para o Che. Eu vi a história andando em marcha a ré e eu entendi ali, com o Jânio saindo, que os bons tempos da utopia de JK tinham acabado, que alguma coisa suja e negra estava a caminho como um trem fantasma andando pra trás.

Depois, meninos, eu vi o fogo queimar a UNE, onde chegaria o ‘socialismo tropical’, em abril de 64, quando fugi pela janela dos fundos, enquanto o general Mourão Filho tomava a cidade, dizendo:

‘Não sei nada. Sou apenas uma vaca fardada!’

Eu vi, meninos, como num pesadelo, a população festejando a vitória do fascismo, com velas na janela e rosários na mão; vi a capa do O Cruzeiro com o novo presidente da República de boné verde, baixinho, feio, quem era?

Era o Castelo Branco e senti que surgia ali um outro Brasil desconhecido e, aí, eu vi as pedras, os anúncios, os ônibus, os postes, o meio-fio, os pneus dos carros, como um filme de horror; Eu, que vivera até então de palavras utópicas, estava sendo humilhado pela invasão do terrível mundo das coisas reais.

Depois, vi a tristeza dos dias militares, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, a Transamazônica arrombando a floresta, vi o rosto patético de Costa e Silva,a gargalhada da primeira perua Yolanda, mandando o marido fechar o Congresso.

Vi e ouvi Jorge Curi na TV, numa noite imunda e ventosa de dezembro lendo o AI-5, o fim de todas as liberdades, a morte espreitando nas esquinas, a gente enlouquecendo e fugindo pela rua em câmera lenta, criminosos na própria terra;

Depois, vi o rosto terrível do Médici, frio como um vampiro, com sua mulher do lado, muito magra, infeliz, vi tudo misturado com a Copa do mundo de 70, Pelé, Tostão, Rivelino e porrada, tortura, sangue dos amigos guerrilheiros heróicos e loucos, eu sentindo por eles respeito e desprezo, pela coragem e pela burrice de querer vencer o Exército com estilingues;

Não vi, mas muitos viram meu amigo Stuart Angel morrendo com a boca no cano de descarga de um jipe, dentro de um quartel, na frente dos pelotões, enquanto em São Paulo Herzog era pendurado numa corda e os publicitários enchiam o rabo de dinheiro com as migalhas do ‘milagre’ brasileiro, enquanto as cachoeiras de Sete Quedas desapareciam de repente;

Depois eu vi os órgãos genitais do general Figueiredo sobressaindo em sua sunguinha preta, ele fazendo ginástica, nu, para a nação contemplar, era nauseante ver o presidente pulando a cavalo, truculento, devolvendo o país falido aos paisanos, para nós pagarmos a conta da dívida externa.

Vi, as grandes marchas pelas “diretas” e vi, estarrecido, um micróbio chegando para mudar nossa história, um micróbio andando pela rua, de galochas e chapéu, entrando na barriga do Tancredo na hora da posse e matando o homem, diante de nosso desespero.

E eu vi então a democracia restaurada pelo bigodão de Sarney, o homem da ditadura, de jaquetão, posando de oligarca esclarecido;

Vi o fracasso do Plano Cruzado, depois eu vi a volta de todos os vícios nacionais, o clientelismo, a corrupção, a impossibilidade de governar o país, a inflação chegando a 80 por cento num único mês.

Meninos, eu vi as maquininhas do supermercado fazendo tlec tlec tlec como matracas fúnebres de nossa tragédia.

Eu vi tanta coisa, meninos, eu vi a inflação comer salários dos mais pobres a 2% ao dia.

Eu vi o massacre de miseráveis pela fome, ou melhor, eu não vi os milhões de mortos pela correção monetária, não vi porque eles morriam silenciosamente, longe da burguesia e da mídia.

Mas vi os bancos ganhando bilhões no over e no spread, dólares no colchão, a sensação de perda diária de valor da vida.

Eu vi a decepção com a democracia, pois tudo tinha piorado, eu vi de repente o Collor vindo de longe, fazendo um cooper em direção a nosso destino, bonito, jovem, fascinando os otários da nação, que entraram numa onda política ‘aveadada’, dizendo:

‘Ele é macho, bonito e vai nos salvar…’.

Eu vi o Collor tascar a grana do país todo e depois a nação passar dois anos ‘de quatro’, olhando pelo buraco da fechadura da Casa da Dinda, para saber o que nos esperava.

Eu vi Rosane Collor chorando porque o presidente tirara a aliança.

Eu vi a barriga de Joãozinho Malta, irmão da primeira-dama, dando tiros nas pessoas, eu vi a piscina azul no meio da caatinga, eu vi depois a sinistra careca de PC juntando o bilhão do butim.

Eu vi Zélia dançando o bolero com Cabral em cima de nossa cara, eu vi a guerra dos irmãos Collor, Fernando contra Pedro e, depois, como numa saga grega, eu vi o câncer corroendo-lhe a cabeça.

Eu vi o impeachment, eu vi tanta coisa, meninos, e depois eu vi, por acaso, por mero acaso, por uma paixão de Itamar, eu vi o FHC chegar ao poder, com a única tentativa de racionalidade política de nossa história num antro de fisiológicos e ignorantes.

E, aí, eu vi a maior campanha de oposição de nossa época, implacável, sabotadora, eu vi a inveja repulsiva da Academia contra ele, eu vi a traição de seus aliados, todos unidos contra as reformas, uns agarrados na corrupção e outros na sobrevida de suas doenças ideológicas infantis.

E agora eu vejo o estranho desejo de regresso ao mundo do atraso, do erro e das velhas utopias. Vejo a direita se organizando para cooptar a oposição, comendo-a, vejo um exército de oligarcas se preparando para a vingança, vejo ACM, Barbalhos e Sarneys prontos para tomar o Congresso de assalto, para impedir qualquer mudança e voltar aos bons tempos da zona geral.

Meninos, vocês viram também, mas acho que esqueceram.”

Políticos parecem fazer-se surdos

Em suas colunas, Arnaldo Jabor aconselha os manifestantes, para que o movimento não se torne vago e sem rumo, a se posicionarem contra a PEC 37; foi só depois que ele escreveu sugerindo que se protestasse contra essa emenda constitucional que o povo incluiu essa reivindicação nos protestos.

Esses dois escritores ajudaram muito nessa tomada de consciência; hoje os brasileiros se reconhecem enquanto nação e enquanto sociedade atuante e os brasileiros começam a dar seus primeiros passos por conta própria. Alguns políticos, no entanto, parecem fazer-se de surdos e ignoram as sugestões, vindas das ruas, para que eles baixem os próprios salários e acabem com as regalias e gastos desnecessários.

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André Pereira da Silva é instrutor, Canguçu, RS