Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ascensão e queda

Não passou sem registro uma nova modalidade de cinismo em curso no país: o pedido de desculpas segundo os preceitos de La Rochefoucauld, para quem a hipocrisia é um tributo que o vício paga à virtude. No final de maio, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, protagonizou episódio que ilustra a tese: agrediu um cidadão que o insultava e no dia seguinte desculpou-se perante a população da cidade. Pronto.

Alguns detalhes, porém, não foram suficientemente esmiuçados. Paes disse que não estava em atividade pública (um jantar com a esposa e amigos). Mas gozava de segurança pessoal remunerada com dinheiro público, circunstância que, se ele tivesse respeito pela democracia, deveria ter pautado sua conduta. Seus guarda-costas, aliás, informou-se, seguravam o oponente, Bernardo Botkay, quando o prefeito lhe acertou um murro no rosto. Os meios de comunicação se desincumbiram da suíte jornalística com o costumeiro e preguiçoso “o caso foi registrado e será instaurado inquérito”.

Agora, a Veja com data de 10 de julho (edição 2.329) pratica a mesma modalidade de rito sumário a propósito da “Ascensão e queda” (título de sua Carta ao Leitor) do empresário Eike Batista.

Usina ou retífica?

Editoriais valem o que valem. Certa feita, um repórter do Jornal do Brasil fez uma visita à sala dos editorialistas e jocosamente saudou aquela “usina de ideias”. O chefe dos editorialistas, Wilson Figueiredo, retrucou, com a invejável velocidade de pensamento que o caracteriza: “Usina não, meu filho. Retífica de ideias”.

A Carta ao Leitor dessa Veja merece alguns minutos de atenção. Não pela contribuição que terá dado à marcha ciclotímica da civilização brasileira, mas como exemplar dos expedientes com que a grande (tamanho) imprensa tenta engazopar o leitor quando sua consciência (aquela “voz interior que diz que alguém pode estar olhando”, no dizer de H.L. Mencken, traduzido por Ruy Castro) a obriga a “se explicar”.

Antes de tudo, o título não foi dos mais felizes, na medida em que pode fazer algum leitor menos crédulo a pensar na trajetória não de Eike e sim da própria revista. Diga-se, a bem da equanimidade, que a Veja registrou em reportagem uma hipótese constrangedora a que não poucos ainda dão crédito para explicar o sucesso do empresário:

“O sucesso empresarial de Eike nunca o livrou de uma história incômoda. Há quem afirme – ele sempre negou – que teria recebido de Eliezer Batista, seu pai e responsável pelo lançamento dos alicerces da Companhia Vale do Rio Doce, um mapa do subsolo brasileiro que serviu de guia a todos os seus investimentos de mineração” (Veja, 18/6/2008, ed. 2.065, “O Mister X da Bolsa”).

O mapa de Eike

A revista, entretanto, não comprou essa versão, de impossível comprovação. Preferiu uma mais simples e igualmente plausível, exposta na sequência:

“O mapa que Eike efetivamente recebeu foi outro: o da enorme rede de influência que Eliezer angariou desde o início dos anos 60, quando foi alçado à presidência da Vale do Rio Doce por Jânio Quadros. A outra herança inegável é a capacidade de convencer investidores do potencial de seus projetos”.

O redator da Carta ao Leitor esquivou-se, como manda a técnica da tergiversação aplicada quase sempre que um jornal ou revista precisa desculpar-se, de colocar o dedo na ferida. Apresenta assim o histórico da Veja: na reportagem “Eike Xiaoping – ‘Enriquecer é glorioso’, com essas palavras [sic] de ordem, Deng Xiaoping deu a largada para a China virar potência”, de 18/1/2012 (edição 2.252), a revista “refletiu uma percepção” de idolatria de Eike pelos “novos milionários brasileiros”.

Não foi bem assim. A reportagem especial se chamava “Eu quero ser Eike” e dava a seguinte explicação para o sucesso do bilionário, então listado na oitava posição dos mais ricos da Terra, com US$ 30 bilhões. Ele havia criado um novo paradigma de magnata porque “veio de baixo, progrediu à própria custa fazendo negócios no Brasil e, sobretudo, não teme ostentar sua fortuna”.

Construtora de percepções

O que é preciso ser dito, com o máximo de clareza possível, jamais fazendo de Eike Batista um vilão solitário e evitando a sarna brasileira de encontrar “culpados”, é que a Veja não “refletiu essa percepção”. Ajudou (poderosamente) a construí-la. Na mesma edição que o fantasiou de revolucionário capitalista chinês, cujo gancho fora o lançamento de ações de empresas de Eike em bolsa, a matéria que abordava especificamente esse ponto tinha este título: “O triunfo do capital privado. Venda de ações da petrolífera de Eike prova que a bolsa de valores tem musculatura para financiar o crescimento do país”.

Agora, na edição que se compraz em chutar Eike caído, sob o título (autorreferido e quase tão néscio quanto o anterior) “Eike ‘Tchau’ Ping”, a revista proclama “O fim da Bolsa Eike”. Com a desenvoltura de sempre, escreve, na já citada edição datada de 10/7:

“O colapso do grupo de Eike Batista revela o custo do apoio bilionário do BNDES às empresas do governo. Eles fazem graça e quem paga a conta são os brasileiros que trabalham cinco meses do ano para custear o Estado perdulário”.

Cabe aplicar à Veja outra definição de consciência, esta séculos mais antiga, de Vauvenargues: “A consciência é a mais mutável das regras”.

 

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