Nos últimos dias, protestos violentos causaram a morte de pelo menos 77 pessoas [confirmadas até o início da tarde de segunda-feira, 8/7] e centenas de feridos nas ruas do Egito. Grupos de manifestantes a favor e contra o governo democraticamente eleito do presidente Mohamed Morsi lutam pelo poder com a intervenção cada vez mais contundente das forças armadas.
Nem mesmo a indicação do líder liberal e prêmio Nobel da Paz Mohamed El Baradei resolveu o impasse político.
Segundo o noticiário da BBC, após as grandes manifestações pela democracia da Primavera Árabe, a deposição do ex-presidente Mohamed Morsi e a suspensão da Constituição, “há um temor em relação ao futuro. Milhões votaram por Morsi. Nós pensamos que isso era democracia. Mas agora estamos em uma situação muito perigosa” (ver aqui). Nesse cenário confuso e indefinido, nas ruas do Cairo, os manifestantes que exigiram a queda de Morsi gritam: “É uma revolução. Não é um golpe” (ver aqui).
Eles protestam nas redes sociais contra a cobertura da imprensa internacional que insiste em caracterizar o movimento popular que destituiu o líder da Irmandade Muçulmana como “golpe militar”.
Os manifestantes têm hostilizado jornalistas estrangeiros e acusam principalmente a cobertura da rede norte-americana CNN de “tendenciosa”. Eles não estão satisfeitos com o trabalho de alguns jornalistas.
Primavera brasileira
Mas por que devo me importar com o que acontece em um país tão diverso e distante como o Egito? Por que devo me preocupar com a ação de manifestantes criticando e impedindo o trabalho de uma grande rede internacional de notícias como a CNN?
Talvez porque tudo isso não seja tão diferente ou esteja tão distante do Brasil.
Em um mundo cada vez mais globalizado e conectado pelas redes sociais na internet, cada vez mais insatisfeito e violento, aquilo que acontece no mundo pode e tende a acontecer em nosso país.
Nós também pensamos que os protestos que surgiram nos EUA contra a crise financeira, contra o desemprego na Espanha e na Grécia, além das grandes revoltas políticas no Oriente Médio, jamais chegariam ao Brasil. Fomos surpreendidos pelos acontecimentos além das nossas fronteiras. Agora, confusos e atônitos, enfrentamos a “primavera brasileira”.
Povo não é bobo
Para evitar ainda mais surpresas, deveríamos prestar mais atenção no mundo. Apesar da indiferença e ignorância de tantos, a onda de protestos em outros países tende a se tornar um verdadeiro tsunami de insatisfações, violência e reações políticas imprevisíveis e indesejadas.
Os golpes ou revoluções de hoje podem ser as manifestações ou protestos de ontem. E para nós, jornalistas, as hostilidades demonstradas contra os profissionais de emissoras de TV como a Globo, SBT e Record também pode ser um sinal de alerta.
Na semana passada, os protestos contra a cobertura das manifestações no Brasil por alguns jornalistas chegaram às ruas de Londres. Um usuário identificado como ”ImprensaLivre2013” publicou no YouTube um vídeo em que jornalistas da Globo aparecem sendo impedidos de trabalhar durante uma manifestação na Inglaterra. “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”, protestavam os manifestantes. “A Rede Globo não conseguirá trabalhar enquanto eu estiver aqui”, gritava um dos jovens (ver aqui).
Jornalismo internacional
Percebeu? Nada muito diferente do que acontece nas ruas do Cairo com manifestantes hostilizando os profissionais da CNN. Assim como os egípcios, alguns brasileiros em Londres não estão satisfeitos com a cobertura considerada tendenciosa da Rede Globo. Mas talvez muitos brasileiros também não estejam satisfeitos com a cobertura internacional dos acontecimentos no Egito pela grande imprensa brasileira.
Ainda fico surpreso e impressionado com o descaso da nossa imprensa com as notícias internacionais. Há muito tempo, os correspondentes internacionais brasileiros deveriam estar cobrindo os conflitos nas ruas do Cairo e em outras capitais do Oriente Médio, mostrando aos brasileiros as origens, os desdobramentos e as implicações desses grandes movimentos sociais e políticos.
Se não fossem as agências internacionais, não saberíamos quase nada sobre o mundo. Talvez não tenhamos percebido que desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, estamos enfrentando uma crescente onda de manifestações antiautoritárias ou uma nova “Era de Revoluções” (ver aqui).
É evidente que entre manifestações violentas, golpes ou revoluções e hostilidades contra o trabalho de jornalistas enfrentamos uma situação histórica cada vez mais adversa e indefinida. Talvez devêssemos prestar um pouco mais de atenção ao que acontece em outros países no presente, para evitarmos um futuro semelhante.
Depor presidentes eleitos pode ser o próximo passo dessa onda de manifestações pelo mundo. Nunca se informar e estar de olho no jornalismo internacional foi tão importante e relevante.
Na Universidade Federal de Santa Catarina, não por coincidência, mas por sincronia com o noticiário, estamos finalizando mais um curso de Jornalismo Internacional voltado para os futuros correspondentes e profissionais de Relações Internacionais. Pela primeira vez aproximamos duas categorias distintas, mas que se complementam e que podem mudar o nosso futuro. Temos muito que aprender com os diplomatas, pesquisadores e dirigentes internacionais.
Em tempos de grandes manifestações e contestações, nós jornalistas podemos ser acusados de muitas coisas. Não somos perfeitos e nem sempre concordamos com objetivos ou somos responsáveis pelas coberturas das empresas para as quais trabalhamos. Mas não devemos jamais ser acusados de ingenuidade ou descaso com os acontecimentos que insistem em nos surpreender no noticiário internacional.
Afinal, se você não se liga no mundo, um dia, ele liga para você e grita: “Eu sou você, amanhã”.
Em tempo
Nos últimos dias, a crise no Egito tornou-se dramática. O número de mortos cresceu muito. Segundo o noticiário do New York Times, CNN e Al-Jazeera, no domingo (7/7), foram confirmados pelo menos 41 mortos após violentos confrontos entre manifestantes pró-Mursi e as forças armadas egípcias. Somados aos 36 mortos anunciados na semana passada já temos pelo menos 77 mortes com centenas de feridos em todo o Egito. Há também denúncias de fechamento de televisões e prisão de jornalistas no Egito (ver aqui). Até o momento (segunda-feira, 8/7, às 14h) não existe qualquer sinal de início de negociações entre as partes envolvidas no conflito.
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Antonio Brasil é jornalista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisador do Grupo Interinstitucional de Pesquisas em Telejornalismo (GIPTELE) e autor do livro Telejornalismo Imaginário (Editora Insular).