Os acontecimentos jornalísticos mais fáceis de se mapear e denominar são aqueles que ocorrem mais frequentemente: em caso de dúvidas, os repórteres e editores as solucionam verificando como fatos análogos foram tratados anteriormente. O problema é quando acontece algo inédito, ou que tem especificidades que o tornam incomparável.
?A destituição do então presidente egípcio Mohamed Morsi pelas Forças Armadas do país na última semana provocou a indecisão dos jornalistas nos cinco continentes: será que devemos chamar isso de golpe? Embora esta não seja a primeira derrubada de um governo constitucionalmente legítimo na história da humanidade, não há consenso entre os jornalistas sobre o que difere um golpe de Estado de uma revolução, de um impeachment ou de uma guerra civil.
?No senso comum, são definidos como revolução (e não golpe) os casos em que a deposição do chefe de Estado é impulsionada por manifestações populares, pacíficas ou não. Essa definição, embora rasa, parece ser a preferida da imprensa internacional, e é justamente daí que derivam a falta de consenso, as discordâncias e incertezas – as praças repletas de egípcios festejando a queda do presidente indicam que uma parcela significativa da população do Egito é favorável a intervenção do exército; no entanto, não se pode esquecer que no dia 2 de abril de 1964 um milhão de brasileiros participaram da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, e nem por isso o que se sucedeu em nosso país foi uma revolução.
Falsa neutralidade
?A comparação com os primórdios da ditadura militar brasileira é logicamente inadequada, mas decidi incluí-la para provocar uma reflexão sobre a cobertura jornalística em casos desta natureza: os maiores jornais brasileiros, à época, não definiram os acontecimentos de 1º de abril de 1964 como golpe.
Um editor prudente, ao refletir sobre tais questões, concluiria que a decisão mais acertada é não qualificar o processo de transição de poder no Egito como golpe de Estado, nem como revolução. Cauteloso, ele utilizaria vocábulos aparentemente neutros como “deposição” e “destituição”, e esperaria até que a história desse uma resposta concreta. Porém, ao se abster da responsabilidade de dar nome ao acontecimento, o jornalista corre o risco de legitimar um golpe de Estado – ou seja, nada muito diferente do que chamá-lo de revolução.
Não creio que seja este o panorama político do Egito, tampouco penso que temos a necessidade de defini-lo como golpe ou revolução – entre o branco e o preto existem inúmeros tons de cinza, e para identifica-los é necessário não só uma apuração minuciosa das informações, mas também uma leitura crítica dos textos de agências de notícia. Refletir sobre a falsa neutralidade das coberturas internacionais é a única forma de evitar deslizes históricos, como a omissão dos principais jornais brasileiros diante do golpe no Paraguai em junho de 2012.
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Daniel Piassa Giovanaz é acadêmico de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS