Ninguém deve ter dúvidas que o Brasil realmente mudou depois que os brasileiros foram às ruas para protestar e exigir mudanças. O fenômeno é tão surpreendente que ainda continua a desafiar a compreensão sobre o que é e o que pode representar ainda. Enfrentar esse desafio favorece a democracia.
Há dois tipos de seres invisíveis na atual democracia brasileira.
Há aqueles que se julgam invisíveis pelo uso do poder que fazem. Acham que podem fazer o que quiserem, incluindo coisas erradas e escabrosas. Graças aos instrumentos de manipulação que usam, ao carisma ou à liderança que conquistaram, interpretada como um cheque em branco, nunca serão descobertos. Pelo contrário: poderão transitar com desenvoltura pela sociedade como pessoas respeitáveis.
Sofrem do que se podia classificar como a síndrome de Harry Potter. O mal passou a acometer principalmente os petistas quando passaram da oposição ao poder. Basta colocarem a bandeira das grandes causas sociais sobre si, com a estrela vermelha do partido, para imaginarem ter assim um escudo infalível de proteção e mesmo de prevenção aos olhares críticos dos demais. Tornam-se inimputáveis. Ninguém percebe suas mazelas. Ninguém os vê.
Há também aqueles que não conseguem ser visíveis porque foram excluídos do circuito privilegiado dos benefícios e despejados do poder. São os desfavorecidos, abandonados e maltratados. Por não serem vistos pelos que realmente decidem, estão condenados à marginalidade e à insignificância. Resta-lhes a invisibilidade efetiva, ainda quando em seu nome muito é realizado.
Essas duas legiões sempre caminharam – e ainda caminhavam – no Brasil por trilhas distintas e paralelas até as manifestações de protesto irrompidas no mês passado. Foi só então que elas se cruzaram – e muito antes do infinito, ao contrário do que presumiam e sempre quiseram os detentores do poder, extremamente concentrado no Brasil, partidos, lideranças e ideologias à parte.
O mundo institucional, das representações e das formalidades foi atropelado pelo mundo da realidade, do paradoxo e da perplexidade. Os invisíveis colocaram sua cara nas ruas, gritaram, investiram contra a polícia, atacaram prédios públicos, saquearam estabelecimentos particulares. O Brasil impermeável, da dualidade estratificada, das pirâmides monumentais e dos cortiços execráveis, do carro importado suntuoso e do transporte coletivo massacrante, ruiu.
Mas por que isso aconteceu? O que, de fato, aconteceu?
Essas são duas das muitas perguntas que todos se fazem, ninguém com respostas plenamente satisfatórias. Os medidores de conflitos com base em índices quantitativos, não conseguiram traduzir os acontecimentos para lhes impor uma definição é realmente aceitável, aceitável. Só quem absorveu a novidade poderá, no futuro, descobrir qual a novidade das passeatas de junho no conjunto da história brasileira e da atual conjuntura republicana.
Embora esteja crescendo mediocremente pouco, o Brasil tem baixo índice de desemprego, está abarrotado de reservas monetárias, recebe muito dinheiro das suas vendas ao exterior e apreciáveis investimentos internacionais. Não falta comida no prato de cada dia.
O governo era conduzido por uma presidente ainda mais popular do que o seu antecessor e correligionário, com índices jamais registrados de aprovação. Depois de dois mandatos aparentemente consagradores, Lula é sua sombra (embora também seu espectro), a quem Dilma pode recorrer diante das dificuldades. Na maior, a inviabilização da sua candidatura, pode ser substituída por ele, em condições de se apresentar e arrematar os 20 anos de PT no poder federal, utopia definitivamente desmanchada para os tucanos do PSDB.
O universo dos beneficiados pelo Bolsa Família, a maior unidade demográfica e o maior contingente eleitoral do país, com imensas sobras em relação aos demais, não tomou parte nas passeatas. Seus integrantes nada conseguiriam de imediato e de material com as manifestações. Os manifestantes de junho se movimentaram por todas as grandes cidades brasileiras atrás de bandeiras políticas, sociais e morais.
As reivindicações materiais e localizadas foram apenas o estopim e o combustível para que, se desenvolvendo (e, sobretudo, se revelando por inteiro, sem censura), elas se tornassem um dos acontecimentos mais surpreendentes e de impacto da história recente do Brasil.
É um fenômeno tão amplo e novo que nele cabem todas as explicações, interpretações e projeções. Muitos o comparam à revolta estudantil de 1968 porque seus rostos mais expostos são também de estudantes. Outros lhe tomam a inspiração na queda do muro de Berlim, que precipitou o ocaso do “socialismo real” do leste europeu e da União Soviética. O ponto de identidade entre esses e mais alguns acontecimentos históricos é a rejeição ao status quo, ao establishment e à sua expressão mais direta: o governo.
Bem valioso
Como no bolero melancólico consagrado pela cantora Maysa, um mundo, sem dúvida, caiu. Quem o derrubou ainda não sabe como levantá-lo para construir o mundo novo. O trabalho de destruição foi surpreendente e eficaz. Mas como sempre acontece quando o protesto se prolonga pelas ruas, a motivação inicial se diluiu. Muita gente se incorporou às passeatas, outro tanto procurou se apossar delas através das redes sociais, arautos e intérpretes distintos se apresentaram. A dúvida e o mistério se insinuam com o tempo. A sensação de perigo e ameaça se disseminou de forma tão rápida e profunda que provocou o pânico na sociedade política, exatamente quando ela chegava ao seu paroxismo de pretensa autonomia.
Assustados, os dirigentes do país trataram de providenciar analgésicos e ataduras. Como num passe de mágica, as tarifas de ônibus caíram, sob a influência de um impulso instintivo, de sobrevivência. Não parece ter passado pelo cálculo dos autores da iniciativa terem dado ao cidadão a alternativa: ou o valor estabelecido (em vários casos, na véspera das irrupções de protesto) era abusivo, fruto de alguma tramoia entre empresários e políticos, ou alguém vai pagar a conta. Como todos sabem, não há almoço de graça.
No caso do abusivo transporte coletivo, é necessário apurar os fatos para imputar a culpa a quem a possui ou definir de onde virão os recursos para atender as demandas sem criar novas fontes de problemas no futuro.
É também o caso da súbita motivação dos políticos por sua atividade legislativa. Projetos que a inércia ou os arranjos de interesses poderosos mantinham sob embargo de gaveta, o recurso preferido dos que sempre quiseram manter tudo como estava para ver como ficaria, e novidades anunciadas por bocas até então fechadas à pregação das mudanças, impõem ao país a checagem das suas lideranças para evitar que as múmias continuem a ocupar os palácios erigidos em nome da representação popular. A legitimidade do título conferido está em questão.
Acuada, a presidente tentou passar à frente da multidão, a partir da qual um dos vértices pode resultar na falência da sua reeleição, com a desastrada proposta de um plebiscito para decidir sobre a instalação de uma constituinte originária encarregada da fazer a reforma política do país. Tecnicamente, foi o mais absurdo atentado jurídico desde a monstruosa emenda constitucional de 1969, imposta pelas espadas no auge da ditadura militar, que transfigurou a já canhestra carta magna, que o primeiro governo de exceção impôs à nação em 1967. O ato de lucidez de Dilma veio atrasado, mas veio logo no dia seguinte, quando ela voltou atrás e anunciou o cancelamento da sugestão, Mas não a desistência do seu propósito, que revelou seus pendores autoritários e manipuladores. Retomou-o de outra forma.
O problema é que o populismo de Lula e do PT, eficaz até a véspera, se tornou inócuo diante de um invisível específico. Não eram os marginalizados da miséria e da pobreza, arrebanhados através de uma renda constante de manutenção – a suposta classe média, forjada pela técnica de manipulação de massa, com rendimento mensal de até 500 dólares, renda de mera existência precária em países de classe média efetiva, de afluência e estabilidade perenes.
Os invisíveis que fluíram para as ruas nas três últimas semanas somam, talvez, cinco milhões de pessoas no total. Equivalem ao universo de leitores da revista Veja, cuja agenda coincide com várias das palavras de ordem, apesar dos ataques da massa à imprensa em geral e à publicação da editora Abril, do recentemente falecido Roberto Civita.
Numa eleição direta e geral, essa massa, amplamente minoritária no conjunto nacional, não decide eleição. Mas, ao ir às ruas, decidiu tanto que colocou o executivo, o legislativo e o judiciário a trabalhar intensivamente para atender-lhe as reivindicações, deixando de lado a coerência até então, as aparências, a retórica. Foram arrastados pelo furacão das ruas.
Se algum paralelo ajuda a esclarecer os fatos ainda em brasa nos nossos dias, talvez seja instrutivo lembrar a sucessão de atos de rua, que demarcaram o jogo de pressão e contrapressão de massa, em 1964. Do comício da Central do Brasil, o apogeu da ofensiva do presidente João Goulart pelas reformas estruturais do país, às marchas católicas contra ele, reunindo multidão cinco vezes maior – e que motivaram as forças armadas a sair dos quartéis e consumar a violência, depondo o seu presidente, que era também seu comandante-em-chefe.
A realidade de hoje difere o suficiente daquela de quase meio século atrás para que não as confundamos, mas a alegoria tem um sentido pedagógico: mostrar que por aqui, num país de tamanho desproporcional entre suas riquezas materiais e sua civilização, as coisas acontecem diferentes de Paris ou Berlim. Louve-se que tenham acontecido, iluminando o céu opaco da democracia brasileira.
Agora é cuidar para que o efeito não se torne reverso ao desejado pelo bem da nação. Cuida-se da democracia, o bem mais valioso numa organização política dos nossos tempos, aprofundando-a, aceitando seus riscos e desafios, apostando no aperfeiçoamento do cidadão individualmente e dos seus vários conjuntos representativos, e não interrompendo essa caminhada. Que a voz das ruas prossiga o seu coro das transformações necessárias.
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As primeiras passeatas: e agora, 35 anos depois?
As primeiras passeatas de rua no Pará, depois do golpe militar de 1964, foram organizadas pelos estudantes universitários em Belém, em outubro de 1968. Eles decidiram protestar contra a ditadura, a prisão dos participantes no congresso nacional que a UNE realizara um pouco antes, em São Paulo,, e reivindicar ensino superior para os pobres. Amordaçados e intimidados já há bastante tempo, não tinham experiência para lidar com a repressão. Mas foram aprendendo, aprendizado interrompido – brusca e violentamente – dois meses depois, com a edição do Ato Institucional número 5, que instalou a completa ditadura no país.
Apesar da inexperiência, as passeatas cumpriram a sua função: os estudantes foram às ruas, fizeram comícios, picharam e distribuíram panfletos, tudo pacificamente. Tanto que os comerciantes, que agora fecham logo seus estabelecimentos, não queriam, na época, cumprir a ordem da polícia, de cerrar as portas. Achavam que podiam continuar a funcionar – e faturar. Não houve qualquer ato de vandalismo, exceto por parte da polícia
A polícia agiu com excesso de energia e violência desnecessária. O aparato montado pelo governo, por sua própria existência, intimidou os manifestantes: a maioria fugiu diante da possibilidade de confronto, que quase não aconteceu. Vários dos líderes das passetas e até mesmo meros observadores foram presos e processados. Sem resistência.
A violência policial no Pará era bem conhecida e antiga. Um mês antes uma tropa da PM foi deslocada para Santarém para impedir que o prefeito Elias Pinto, da oposição, reassumisse a prefeitura, depois de uma passeata bem maior do que a dos estudantes da capital, 10 vezes maior, com cinco mil participantes.
Havia 150 soldados e oficiais na frente do prédio da prefeitura. Quando a massa se aproximou, os militares fizeram vários disparos de fuzil. Mataram três e feriram duas pessoas por excesso de violência, autorizada pelo governador, o tenente-coronel Alacid Nunes, o segundo militar do regime de exceção no poder no Estado, depois do coronel Jarbas Passarinho. Alacid, aliás, presidiu o IPM (Inquérito Policial Militar) contra os estudantes logo depois do golpe. E fora chefe de polícia no Amapá, apadrinhado pelo marechal Cordeiro de Farias (ambos trabalhariam para o grupo João Santos, de cimento).
Vivi intensamente essa época. Era um dos militantes da ocupação da Faculdade de Filosofia. Passava parte da tarde e da noite no prédio, na Generalíssimo Deodoro, tomado pelos estudantes, contra a reforma do ensino superior que o governo ia implantar, e de dia ia trabalhar no jornal. Estive nas passeatas. Numa delas, minha tarefa era fazer um comício relâmpago na esquina da Campos Sales com a João Alfredo, o centro comercial mais importante da cidade.
Quando percebi, soldados da PM corriam na minha direção, vibrando seus cassetetes ameaçadores. Pulei do caixote de madeira no qual subira e, secundado por Palmério Doria de Vasoncelos, saí em desabalada carreira Campos Sales acima. À porta de A Província do Pará, com seu indefectível paletó branco, estava o senador (da Arena) Milton Trindade, superintendente dos Diários e Emissoras Associados no Pará. Paternalmente, ele abriu os braços para nos proteger. Tiramos o senador da frente e prosseguimos na corrida até o último andar do velho prédio. Só descemos quando cessou a ameaça. Ao entrarmos na redação, o mural já ostentava uma charge, desenhada pelo chefe de reportagem, o maranhense Ribamar Fonseca, hoje imortal da Academia Paraense de Letras. O desenho retratava Palmério e eu na façanha do recorde dos 100 metros em corrida de passeata com PM na cola, um gênero (nada olímpico) que voltou à moda agora.
Um dos motivos da passeata foi a prisão de centenas de estudantes no congresso da UNE em Ibiúna, SP. Eu devia ter ido, mas faltou dinheiro. Tentei conseguir adiantamento de salário com o chefe de redação de A Província, o iracundo Cláudio Augusto de Sá Leal, já falecido. Ele se recusou a me dar o dinheiro. Ele estava certo que a história ia acabar mal e queria me poupar. Acabou mesmo, do que dá testemunho o advogado Vanilson Hesketh, o representante paraense no encontro, que amargou a prisão.
Reproduzo três matérias de A Província com o relato dessas passeatas pioneiras. Talvez sirvam a um paralelo ilustrativo sobre as manifestações de hoje, na democracia, e as de ontem, na ditadura.
I – UMA CORRERIA PELA CIDADE
Usando o slogan “contra o riso – riso, contra a mão – mão”, que não chegou a ser aplicado, os universitários paraenses tentaram, ontem, após uma concentração na Faculdade de Medicina, e sob a coordenação da União Estadual de Estudantes, realizar uma passeata de protesto contra a prisão dos seus colegas em São Paulo, mas foram dispersados por soldados armados da Polícia Militar do Estado, que até à noite continuavam patrulhando as ruas da cidade.
Ao contrário, porém, do que normalmente se verifica no Rio e São Paulo, onde a repressão é feita com disparos, espancamentos e prisões, a passeata dos estudantes paraenses foi dispersada praticamente pelo fator psicológico. A súbita aparição dos policiais armados, de aspecto ameaçador, provocou correria entre os jovens, mas nenhuma prisão ou espancamento. Os soldados tinham ordem para evitar choques violentos, mas deveriam impedir passeatas e comícios de qualquer maneira, se necessário.
Os preparativos
Desde as 15 horas de ontem era grande a movimentação na Faculdade de Medicina da Universidade do Pará, onde os estudantes ultimavam os detalhes para a passeata, coordenada pela UEE. Antes de saírem às ruas, cerca das 16,30 horas, um dos líderes estudantis subiu ao muro na frente da Faculdade e conclamou seus colegas para participarem do movimento. Advertiu para que a passeata fosse “ordeira e organizada”.
Portando faixas e cartazes de protesto, ganharam a rua, obstruindo, de imediato, o tráfego de veículos na avenida Generalíssimo Deodoro. Distribuindo panfletos e aos gritos de protesto contra a dissolução do congresso da ex-UNE, os estudantes – cerca de 300 – prosseguiram lentamente em direção ao Largo de Nazaré. Pretendiam cumprir o seguinte itinerário: Generalíssimo Deodoro, Nazaré, Presidente Vargas, João Alfredo e praça do Relógio, onde seria realizado um comício.
A correria
Agitando as faixas e cartazes, os estudantes se aproximaram da avenida São Jerônico [atual Governador José Malcher], quando, de repente, surgiram dois “tomara-que-chova”, despejando 62 policiais armados, na confluência com a Generalíssimo. Os soldados imediatamente cercaram o prédio da Reitoria da Universidade Federal do Pará, enfileirados, o que provocou pânico entre os estudantes. Os PM portavam cassetetes e revólveres, alguns com metralhadoras.
Alguém gritou “Lá vem a polícia”, quando os soldados partiram na direção dos estudantes, correndo. Foi o suficiente para que a passeata se dispersasse. Largando os cartazes, os estudantes partiram em desabalada carreira para todos os lados, indo de encontro a alguns veículos e provocando freadas bruscas. Várias residências das imediações foram invadidas por jovens em fuga, enquanto os policiais recolhiam as faixas e cartazes abandonados pelos estudantes, que, logo depois, hasteavam uma bandeira negra no muro da Faculdade de Medicina, em sinal de luto.
Comícios relâmpagos
Os estudantes não desistiram da ideia do comício e partiram para a praça do Relógio, chegando quase ao mesmo tempo que a polícia. Depois de guarnecerem os prédios do Palácio do Governo e da Prefeitura, os soldados partiram novamente em direção aos jovens, que empreenderam nova carreira pela João Alfredo. Mesmo perseguidos de perto pelos policiais, ainda realizaram vários comícios relâmpagos em frente à “4.400” [Lobrás, famosa loja de departamentos, já extinta], na esquina da Padre Eutiquio, na esquina da Campos Sales, em frente à Escola de Engenharia [hoje estacionamento da Y. Yamada, na Manuel Barata] e em frente do Café Central [na Presidente Vargas].
Logo tiveram que empreender nova fuga, porque os policiais tinham ordem para impedir qualquer comício. Após a tentativa de comício na esquina da Campos Sales, a maioria dos estudantes se refugiu na esquina da Escola de Engenharia, onde os soldados ficaram na porta, a fim de impedir qualquer reagrupamento. Até a noite os policiais continuavam patrulhando a cidade, não se registrando, entretanto, prisão ou incidente sério.
Nova tentativa
Depois da primeira tentativa da passeata, os estudantes ontem mesmo programaram nova manifestação para hoje. Alegam que a improvisação foi a causa do fracasso da primeira passeata, motivo pelo qual pretendem corrigir os erros cometidos ontem e partirem hoje mais organizados.
II – A TÁTICA DOS ESTUDANTES
Usando táticas de despistamento e correndo, sem pânico, como aconteceu na primeira tentativa, os estudantes voltaram a realizar, ontem, nova passeata de protesto, que foi, novamente, dissolvida pela Polícia Militar, com o emprego de vários grupos e milicianos.
Agindo de maneira diversa da passeata da semana passada, os estudantes convencionaram um local no centro comercial para ponto de reunião (confluência da Santo Antonio com a Presidente Vargas), para onde convergiram em pequenos grupos. Os cartazes, conclamando liberdade para os estudantes presos e “queda da ditadura”, foram levados enrolados, sem despertar, por isso mesmo, suspeitas. E só foram usados depois da saída da passeata, que se dirigia para a praça do Relógio.
Primeiro encontro
O primeiro encontro da Polícia Militar com os estudantes em passeata ocorreu na esquina da Padre Eutíquio com a João Alfredo. Dezenas de milicianos, portando cassetetes, revólveres e metralhadoras, se dirigiram se dirigiram contra os estudantes, que começaram a dispersar, lentamente, alguns enfrentando o aparato policial com vaias e apupos.
Os milicianos, diante da disposição de alguns dos participantes da passeata em enfrentá-los, cobriram o rosto com um lenço e dispararam contra a massa algumas bombas de gás lacrimogêneo, pela primeira vez utilizados em acontecimentos dessa natureza em Belém. Um dos estudantes, em determinada ocasião, atitou uma pedra contra um grupo de policiais. O sargento Bezerra, com um lenço sobre o ferimento,, foi mandado para a corporação em uma Kombi particular, de propriedade da firma Servencin.
Debandada
Refeitos do impacto, os policiais voltaram a atacar os estudantes, que debandaram, alguns em direção à Padre Eutíquio para tomar a 13 de Maio e se homiziar na Escola de Engenharia. Outros retrocederam pela João Alfredo, misturando-se ao povo, o que tornou difícil a ação policial, já que os estudantes (essa foi uma das táticas usadas) não trajavam uniformes das escolas.
Simultaneamente com o pelotão de policiais que se achava na João Alfredo, outro se postava na praça das Mercês, para impedir o prosseguimento da manifestação, que se fazia, já a essa altura, em comícios relâmpagos. Os estudantes se reuniam em pequenos grupos e, após algumas palavras, rapidamente se dispersavam. Além disso, outro pelotão se postava na esquina da 13 de Maio com a Campos Sales, impedindo a passagem de estudantes para a Escola de Engenharia.
Em toda a cidade
Enquanto a polícia se mantinha mais atuante no centro comercial, os estudantes se dispersavam em várias direções, tentando a realização de comícios na praça Maranhão. Daí os estudantes seguiram para Nazaré com a Generalíssimo Deodoro. Nessa avenida, seguindo em sentido contrário à mão do trânsito, faziam os ônibus parar e colocavam neles e nos demais veículos estacionados cartazes com frases pedindo a liberdade para os estudantes presos, universidade para os pobres e acusações contra o regime.
Para a reitoria
Do largo de Nazaré, os grupos de estudantes que ainda persistiam no movimento se dirigiram para a avenida Governador José Malcher. O objetivo era realizar um comício em frente à Reitoria, o que não chegou a ser feito. Os participantes foram dispersados para reunir forças para o “Dia do Protesto”, que será na terça-feira, com a realização de outra passeata, esta de caráter mais amplo. A caminho, os estudantes reuniram, na frente do prédio onde funciona [na praça Maranhão] a Petrobrás, e ali fizeram um comício relâmpago.
Esquema
Atuando em grupos diversos, cujo número atingia a 18, os estudantes agiram ao mesmo tempo em vários bairros da cidade. Cada um dos 18 grupos tinha três pontos de contatos, somente conhecidos pelos respectivos coordenadores. De tal sorte que foram realizados comícios relâmpagos na praça do Relógio, largo do Redondo, largo de Nazaré, Assis de Vasconcelos, Reduto, São Braz, praça do Rosário e vários outros locais.
O esquema armado pelos líderes estudantis, que repousava na realização simultânea de vários comícios em pontos diversos da cidade, tinha como objetivo confundir a polícia, já que toda ação repressiva dos milicianos se concentrava no centro comercial. A Polícia Militar, além de alguns cavalarianos que faziam ronda pelo Boulevard, concentrava um forte contingente na praça Felipe Patroni, de onde sairiam mais tarde para a repressão. Enquanto o movimento não se evidenciava, elementos do DOPS, em várias viaturas e mesmo a pé, percorriam as ruas do comércio, em missão de patrulhamento.
Fecha comércio
Logo depois do primeiro confronto entre a Polícia Militar e os estudantes, na Padre Eutíquio com João Alfredo, elementos do DOPS percorreram as casas de comércio dessa artéria e das transversais, pedindo que fechassem as portas. O pedido, embora acatado por uns, não o foi por outros, tendo vários comerciantes protestado em altos brados contra a medida. Os comerciantes alegavam que não tinham nada a ver com o movimento e não podiam, assim, fechar os seus estabelecimentos, sofrendo dessa forma prejuízos.
“Armas”
Enquanto os elementos da Polícia Militar empregavam o cassetete, revólver, metralhadora e bombas de gás lacrimogêneo, os estudantes utilizavam as mais inusitadas “armas”. Em sacos plásticos portavam petecas, caroços de açaí e pedras, estas, aliás, que não chegaram a ser usadas. As petecas e os caroços de açaí, no entanto, que tinham como objetivo dificultar a corridas dos cavalarianos, cujos animais, nelas pisando, terminavam por cair ao chão, também não foram usados.
Adesão e fim
O movimento realizado ontem pelos universitários contou com a adesão dos vestibulandos e alunos do curso médio, que a ele se integraram já em plena execução.
O movimento estudantil, iniciado pouco depois das 10 horas, já pela parte do meio-dia estava praticamente terminado. A polícia, entretanto, mantinha, em alguns locais, como largo das Mercês, largo do Redondo e praça do Relógio, pelotões de choque, prontos para entrar em ação. Alguns universitários, que, após o encontro com a polícia, se homiziaram na Escola de Engenharia, já às primeiras horas da tarde deixavam esse locais, logo depois de ter saído da esquina da Campos Sales com a 13 de Maio um pelotão da Polícia Militar.
III – A REPRESSÃO EM AÇÃO
Os estudantes paraenses realizaram manifestações no centro da cidade, aderindo, assim, ao Dia Nacional de Protesto pela prisão dos participantes da UNE, em São Paulo, e contra a situação da Universidade. Vários manifestantes foram presos no choque havido na avenida Presidente Vargas com a Polícia Militar do Estado. Foram presos oito rapazes e duas moças, todos estudantes.
O início
Às 14,50 horas começaram a chegar os primeiros policiais na área do comércio, estacionando nas esquinas em pequenos grupos. Um distanciamento maior foi guardado na praça da República. Gradativamente, e distribuídos em pontos estratégicos, armados de metralhadoras, fuzis, cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo e granadas ofensivas, ficaram em compasso de espera. Enquanto isso, as casas comerciais punham-se de sobreaviso, mas o movimento continuava normal.
Por volta das 16m30 horas começaram a chegar pequenos grupos de estudantes, que se distribuíam em “pontos”, desde a praça da República até o largo do Relógio e praça do Pescador. Elementos faziam a ligação entre os grupos, circulando continuamente, enquanto os estudantes, tranquilos, conversavam ou examinavam vitrines. Embora a tensão fosse crescendo, nenhum incidente até então se verificou, a não ser um tipo popular, bêbado, que fazia discursos em frente à Escola de Engenharia.
Os comícios
Cerca de cinco e meia da tarde começou a movimentação, a partir de um incidente entre os guardas civis de serviço no comércio e um ambulante, em situação irregular. Imediatamente os estudantes colocados nas imediações protestaram, dando início a uma série de pequenas concentrações, em grupos de 50, com intensa mobilização, percorrendo a correr a Manuel Barata, a João Alfredo e a Campos Sales, no trecho em que está localizada a Escola de Engenharia.
Os policiais, até então espectadores, iniciaram a repressão, interditando a Campos Sales no referido trecho e invadindo uma loja de eletrodoméstico, a fim de prender manifestantes, que conseguiram fugir.
Ao mesmo tempo, quatro estudantes dentro de um táxi foram detidos, provocando protestos de uma jovem e um rapaz nas imediações, que também foram presos, sendo conduzidos, como os demais, para o Quartel da Polícia Militar do Estado, para prestar depoimento e proceder-se ao exame de corpo de delito.
Na avenida
Com a dispersão imediatamente havida, os estudantes convergiram ordenadamente, em grupos de cinco a 10, para a Presidente Vargas. Enquanto isso, pichavam, com frases e slogans, carros, muros e o próprio asfalto, e espalhavam panfletos mimeografados. Com o movimento comercial em parte paralisado e já cerrando suas portas em face da situação e do adiantado da hora, cerca de 500 estudantes começaram a gritar – “UNE, UNE” – e desenrolaram faixas e cartazes, interrompendo o trânsito na avenida, à altura da Manuel Barata, e subindo a Presidente Vargas até a Aristides Lobo.
Durante quase 10 minutos, permaneceram em idas e vindas constantes, em meio aos carros que transitavam, sendo aplaudidos pelo povo, que ocupavam as escadarias do prédio dos Correios e Telégrafos e adjacências.
A atuação da polícia
Nesse momento, aos gritos de “a polícia vem pela Manuel Barata” e “a polícia está descendo a rua”, os jovens se reuniram no centro da avenida e se mantiveram em coro, até que, surgindo da rua Manuel Barata, os PM atiraram bombas de gás lacrimogêneo e granadas ofensivas (que apenas causam barulho e fumaça), provocando intensa correria.
Os estudantes procuraram refúgio em todas as casas das proximidades, invadindo o edifício do Palácio do Rádio, secundados pelos policiais, que, à força física e com cassetetes, conseguiram retirar uma parte, realizando outras prisões. Apesar disso, a grande maioria dos manifestantes e populares permaneceu nas imediações, observando. A polícia ocupou o centro da avenida e se concentrou na calçada do edifício, atingindo um carro ali estacionado e quebrando-lhe o vidro traseiro.
Nesse momento, os policiais recuaran até a calçada fronteira, realizando novas prisões e, a cada uma, provocando ajuntamento, logo dispersado.
Os presos
Conduzidos ao quartel da PM, que estava de prontidão, com cerca de 80 homens, comandados pelo major Bahia, foram presos os estudantes Ruy Antonio Barata, Roberto (cujo sobrenome não foi identificado), José Monteiro, Margarida Mello, Luís Lima, José Puty, havendo mais uma jovem da Escola de Química e três estudantes não identificados. Todos eles, depois de feito o exame de corpo de delito e depoimento, seriam postos em liberdade, até 24 horas de ontem.
Economia ocupada
Nesse meio tempo, enquanto se procedia reunião das lideranças, os estudantes de Economia resolveram ocupar a Faculdade até a liberdade dos colegas presos, havendo prenúncios de novas mobilizações estendendo-se a outras unidades da Universidade.
Sabe-se que, devido à soltura dos estudantes, as mobilizações talvez fossem interrompidas até decisão em contrário dos líderes.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)