Ninguém saberia sobre os ataques sexuais a mulheres nos feriados religiosos de outubro de 2006, na cidade do Cairo, realizado por gangues, se não fosse pelos blogueiros egípcios que colocaram o assunto na pauta da mídia, inclusive na agência internacional de notícias Associated Press. Só não publicou o fato quem não considera que o assunto tenha algum valor de notícia para ser comercializado.
Ninguém teria ouvido falar sobre a detenção de um policial egípcio, acusado de molestar sexualmente uma prisioneira, se a informação não fosse mais uma vez disponibilizada em blogs egípcios.
Ninguém conheceria Abdelkareem Nabil Soliman, o jovem condenado a quatro anos de prisão – acusado de publicar conteúdo ofensivo à honra do Islã e do presidente Hosni Mubarak – se o próprio não narrasse seu périplo em seu blogspot e tivesse se tornado, com isso, um símbolo da luta pelos direitos civis e da liberdade de expressão. Assim afirma, em artigo publicado no site Paz Agora, Mona Eltahawy, jornalista egípcia radicada na cidade de Nova York.
Internet ameaçadora
O fato é que os blogueiros árabes há muito estão desafiando os governos ‘intelectualmente blindados’ do Oriente Médio, na definição de Esra’a Al-Shafei, blogueira de 20 anos do Bahrein, co-fundadora da Middle East Youth e da Middle East Interfaith Blogger Network, e que agora dirige a Organização FreeKareen, que objetiva a libertação do companheiro preso.
Mesmo com a entrada, há cerca de uma década, das TVs por assinatura nos países árabes, a maioria dos veículos de comunicação de massa ainda permanece sob controle estatal e com fortes dispositivos de censura. O computador e a internet, invadindo a casa das pessoas, conectaram esses jovens muçulmanos ao outro lado do mundo, preenchendo uma lacuna deixada pela ausência de uma imprensa livre. Fez com que fossem donos de sua própria voz e que pudessem, também, ouvir tantas outras que não a oficiosa. ‘As pessoas não são mais as consumidoras passivas da mídia tradicional’, afirma Ahmed Al-Omran, estudante saudita, que nomeou seu blogspot com o sugestivo Saudijeans. ‘A web nos deu condições de discutirmos assuntos mais livremente’ e conta que embora os governos tentem impor censura aos meios on-line, ela pode, ao contrário de outras, ser facilmente driblada.
Esses blogueiros árabes são o que se conhece como jornalistas-cidadãos. Publicam informações de interesse público, críticas aos governos e discutem tabus de uma sociedade tradicional. ‘Nunca houve um foro público no mundo árabe que tenha servido para ajudar os cidadãos comuns a praticar e fortalecer seus direitos à liberdade de expressão’ afirma Al-Shafei no site Bitterlemons.org. ‘A razão pela qual a internet é tão ameaçadora para os governos árabes é que ela revolucionou os meios de comunicação, tornando virtualmente impossível sua moderação ou controle.’
‘Função civilizatória’
No final de 2006 já havia mais de mil blogs somente no Egito, epicentro desse terremoto midiático. Não sem razão, quase todos se engajaram na luta pela libertação de Kareen Aimer, apelido do jovem preso. Sua prisão é um símbolo da tirania que ainda existe e que tenta calar essas vozes. Em entrevista, por e-mail, é claro, ao webjornal Ponto Eletrônico, Al-Shafei declarou estar temerosa. ‘Este foi o primeiro caso de prisão de um blogueiro. Por isso estamos preocupados.’ Eles temem por sua própria liberdade, o que torna a resolução desse caso ainda mais importante. Impossibilitadas de controlar o fluxo contínuo da informação, as autoridades egípcias encontraram outro meio, mais antigo, de cessar a comunicação: enjaular indivíduos.
Penetrar no universo do jornalismo cidadão, ou participativo, que às vezes aterroriza as mídias tradicionais, é perceber que a internet pode furar bloqueios onde ‘a imprensa ainda não esgotou o seu potencial’, para citar as palavras de Alberto Dines em artigo para este Observatório da Imprensa. Esses jovens islâmicos, desconhecidos dos jornalões ocidentais, discutem em seus concorridos blogs – arriscando os seus próprios pescoços – direitos humanos, liberdade civil, a condição das mulheres muçulmanas, a situação política de seus países, religião e o que mais vier a suas cabeças inquietas.
Toda luta por um ideal é fundamentada na crença de que se pode mudar o mundo. E essas vozes, soltas no mundo virtual e de tão fácil acesso, crêem que, por meio do uso dos meios de comunicação digitais, pode ocorrer uma revolução de costumes no Oriente Médio. O jornalismo na internet pode cumprir sua ‘função civilizatória’ em lugares onde a grande imprensa nem teve a chance de começar.
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Estudante de jornalismo da Universidade Fumec, Belo Horizonte, MG