Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Brasil exigirá respeito à privacidade na rede

O governo brasileiro não tinha uma política unificada para a internet, disse aoEstado o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo. Vários órgãos cuidam de aspectos específicos da rede, mas a denúncia de espionagem de telefonemas e transmissão de dados de empresas e de pessoas do Brasil pelos EUA mostrou a necessidade de maior articulação.

Agora, a reação do governo segue três frentes: levantar na Organização das Nações Unidas uma discussão sobre a governança da rede mundial de computadores, investir mais em infraestrutura de rede no país e garantir o livre uso da internet com respeito à liberdade individual. Nessa última área, técnicos analisam com lupa as políticas de privacidade de sites como Facebook e Google para ver se as autorizações contidas nelas estão ou não de acordo com a legislação brasileira. O governo também quer obrigar esses sites a manter cópias de dados no Brasil. A seguir, os principais trechos da entrevista com o ministro das Comunicações.

“Uma parte dessa espionagem torna-se bisbilhotice”

A revelação da rede de espionagem vai mudar a internet?

Paulo Bernardo– Estamos verificando que essas denúncias representam uma grave ameaça a essa imagem que a internet tem, de ambiente livre e democrático, onde você pode exercer o seu direito de escolha. Ao se manter essa tendência de controlar tudo e saber tudo o que as pessoas estão fazendo – até mesmo o conteúdo do seu e-mail -, nós podemos ter uma reversão e as pessoas vão começar a se policiar, se autocensurar. Teremos, com isso, uma situação não de liberdade, mas de autocensura. Isso é inaceitável.

O que fazer?

P.B.– Isso não vai ser resolvido no Brasil. O problema é que a internet tem regras de governança exclusivamente ditadas pelos EUA, por meio de uma entidade privada ligada ao Departamento do Comércio. Temos defendido que é preciso ter governança multilateral e multissetorial. Países e sociedades têm que estar representados. Mas os EUA resistem muito e barram qualquer tentativa de discussão em fóruns internacionais.

Parece que há uma discussão difícil pela frente. Como conciliar liberdade e segurança?

P.B.– Não sou contra ter segurança na internet, assim como você faz vigilância em aeroportos, em fronteiras. Mas você não faz isso devassando a vida das pessoas. Várias pessoas falam: “Se você está na internet, você está em um ambiente público.” Uma coisa é você compartilhar aquilo que você faz em ambiente público na internet. Outra, que não é normal, é que alguém leia seus e-mails. Essa separação entre a vida pública e a vida privada tem de ser feita também na internet. Uma coisa é ter segurança para todos, outra coisa é permitir que se faça uma devassa na vida pública. Até porque tem uma parte dessa espionagem que se torna bisbilhotice.

“Com essas denúncias, vimos que lá [nos EUA] eles entregam tudo”

O senhor esteve com o embaixador dos EUA, Thomas Shannon. Eles estão mostrando disposição em cooperar ou estão reticentes?

P.B.– As duas coisas. Na conversa, o embaixador deu elementos para concluirmos que eles não estão negando que aconteça (a espionagem). Há uma coleta de informações no nível de metadados, que são informações agregadas sobre telefonemas e e-mails. Há processamento desses metadados e, eventualmente, se entra de forma mais aprofundada nessas informações. Ora, se ele pode ver os metadados e depois, se precisar, ver a gravação, tem de ter a gravação de tudo. Se vai ver o conteúdo do e-mail, é porque tem cópia.

Como relativizar o domínio dos EUA na rede?

P.B.– O nível de concentração de empresas americanas de internet é colossal. Além disso, como os datacenters são todos quase que invariavelmente situados nos EUA, você está sempre se comunicando com servidores americanos. Criamos incentivos a datacenters no Brasil e tiramos todos os impostos para a compra de equipamentos. Mas eu acho que vamos ter de obrigá-los a armazenar os dados aqui.

Por quê?

P.B.– Por um motivo também de soberania nacional. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) esteve investigando um caso de lavagem de dinheiro e pediu para o Google cópias de um e-mail, mas não conseguiu porque os dados ficam guardados nos EUA. Com essas denúncias, vimos que lá eles entregam tudo. Aqui, alegam que não podem entregar. O ideal seria a empresa manter o registro aqui, para que os dados estejam disponíveis se a Justiça brasileira pedir. Isso não estava originalmente no marco civil da internet, mas agora estamos discutindo essa inclusão.

“O conselho consultivo acata se quiser”

O governo discute também um anteprojeto de lei sobre segurança de dados. O que vai propor?

P.B.– Mesmo antes de as denúncias de espionagem atingirem o Brasil, eu já tinha enviado ao ministro (da Justiça, José Eduardo) Cardozo a minha avaliação de que nós precisaríamos acelerar o aperfeiçoamento da legislação. Essa lei trata de armazenamento e proteção de dados pessoais. Deve estar pronta entre 10 e 15 dias e deve ser enviada ao Congresso no segundo semestre. É um texto mais abrangente que abarca também os dados eletrônicos.

Os sites têm políticas de privacidade com as quais é preciso concordar para ter acesso aos serviços. Então, eles têm autorização para compartilhar dados, não?

P.B.– A maioria das pessoas nem lê direito aquilo, mas sabe que alguém ganha dinheiro com os dados. Ali, está sendo dada uma autorização às empresas (para ter acesso aos dados), mas não acredito que as pessoas pensem que o conteúdo dos e-mails será lido, ou pior, que será entregue a uma agência de segurança dos EUA. Também duvido que a legislação brasileira considere que a autorização de pegar dados também sirva para fornecê-los a terceiros. É uma coisa a se pensar, em se fazer uma legislação que fale: “Olha, não é válida uma autorização que seja tão ampla que possa se voltar contra os direitos dos usuários.” Estamos avaliando se as cláusulas estão de acordo com a norma brasileira.

Quando o sr. fala que a sociedade civil deveria participar da governança da internet, o que tem em mente?

P.B.– No Brasil, temos o Comitê Gestor da Internet, no qual o governo tem assento, mas é minoria. Talvez pudesse ser algo desse tipo. A verdade é que o organismo americano é muito fechado. Ele tem um conselho consultivo, que acata se quiser.

“O Brasil paga US$ 650 milhões pelo trânsito de informações com os EUA”

Há chances de os europeus apoiarem a iniciativa do Brasil de tornar o controle da internet algo multilateral?

P.B.– Acho que sim. Em Dubai (conferência da União Internacional de Telecomunicações, em dezembro de 2012), a Europa se dividiu. Vários países votaram com a nossa proposta (de criar um organismo multilateral para a internet), mas houve pressão e alguns recuaram. Acho que esses acontecimentos podem ensejar uma mudança de opinião. Com certeza, o que ocorre aqui no Brasil, com a opinião pública pressionando, está ocorrendo na Europa.

No geral, como o governo pretende agir nesse caso da espionagem?

P.B.– Posso definir três eixos do que o governo brasileiro quer fazer. Um é investimento em infraestrutura para ter mais acesso e mais qualidade na internet. O segundo eixo é garantir o livre uso da internet com direito à liberdade individual, com a ressalva de que tem de ter segurança institucional. Outra coisa é reformar a governança internacional, porque além de tratar da questão da espionagem, isso é capaz de baratear e tornar mais rápida a nossa internet.

Como isso ocorreria?

P.B.– Hoje, os computadores centrais da internet são todos no Hemisfério Norte: dez nos EUA, dois na Europa e um no Japão. Cada clique que damos demora alguns milissegundos para ter uma resposta, porque a informação vai e volta. Sem contar que a internet não é de graça. O Brasil paga, no trânsito de informações com os EUA, cerca de US$ 650 milhões.

“Não temos uma política consolidada e é o momento de termos isso”

Quanto seria possível economizar?

P.B.– Se tivéssemos um servidor raiz aqui, com certeza reduziria para um terço.

O governo dos EUA ofereceu a vinda de técnicos para cá, mas o governo brasileiro ainda avalia se é o caso. Por quê?

P.B.– Nós vamos discutir o que com esses técnicos? Vem um cara da NSA (Agência de Segurança Nacional, na sigla em inglês) explicar como funciona o sistema deles? Não estamos interessados. Se querem fazer uma comissão de alto nível para discutir problemas da internet, aí sim, é outro assunto.

Mesmo se propuserem cooperação como a que têm com países europeus, em que o próprio governo captura dados e compartilha?

P.B.– Com certeza não, porque a sociedade brasileira não concordaria. Cooperação tecnológica, com certeza. Brincar de Big Brother, não dá.

O governo criou um grupo de trabalho para discutir a espionagem. Houve algum avanço?

P.B.– Vamos mandar outro relatório para a Presidência da República e Itamaraty. Nossa expectativa é a de que isso ajude a subsidiar um novo pedido de explicações. E, com certeza, vamos desdobrar isso em uma discussão em organismos internacionais. A verdade é que o governo não tinha uma política unificada. Vários ministérios incidem sobre essa questão da internet, mas não temos uma política consolidada e é o momento de termos isso, de estabelecer como o governo responde a situações como essa.

É intenção buscar algum tipo de censura aos EUA pelos organismos internacionais?

P.B.– Não. O que tenho notado que a presidente quer fazer é definir a posição do Brasil e propor à ONU o que achamos que deveria ser feito.

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Lu Aiko Otta e Eduardo Rodrigues, do Estado de S.Paulo