Quem sintoniza o rádio hoje no Brasil pode achar que os plurais foram abolidos da língua portuguesa. Parece ter sido implantada uma novíssima gramática que desconhece fronteiras de gênero musical e regras de conjugação verbal. Mais popular embaixador da atual música brasileira, dono de meio bilhão de visualizações no YouTube, Michel Teló promoveu um atentado à sintaxe visível a olho nu já no título: “É Nóis Fazer Parapapá”.
Gusttavo Lima, líder da lista latina da revista Billboard, emplacou “As Mina Pira”. O sertanejo Sorocaba, compositor que mais arrecadou em 2012, oficializou o fim do “você” (em “O Que Cê Vai Fazer”) e ainda tirou onda de sua habilidade linguística. Em “Imagina na Copa”, mandou: “E o nosso inglês tá bonito, tá bacana / Tô fluente igual o Joel Santana / Eu vou sempre empurrando com a barriga / Vou fazer um intensivão só pra pegar as gringas” (sim, ele canta o “s” de “gringas”, mesmo atrapalhando a rima).
No rap e no funk, quem dá a bola quadrada é Neymar, habitué dos novos clipes. Se na Espanha ele se aventurou mais no catalão do que Messi, aqui gravou com a banda Ao Cubo um rap que anuncia: “Liga nóis canta assim”. O jogador também promoveu McRodolfinho, que declama: “Traz bebida pras gatona, deixa elas malucona”. (As letras recentes, aliás, fazem Vinicius de Moraes, poeta do uísque on the rocks, e Zeca Pagodinho, cantor das paratis e das geladas, parecerem abstêmios, tamanha a centralidade que o álcool tomou.)
Camões sambaria miudinho
Quem não quiser se arriscar a sentir saudade da nova língua de Brown deve evitar o funkeiro Neguinho do Kaxeta, portador de versos como “Eu tinha alguns bailinho marcado” e “Ô novinha vem com nóis, nóis damo condição”. O KLB, banda de sucesso entre adolescentes e eleitores, não viu problemas em aniquilar a matemática e a conjugação do verbo mais basilar da língua: “Cada dez palavras que eu falo onze é você.”
O filósofo Wilhelm von Humboldt dizia que a linguagem espelha o pensamento. Por essa lente, vê-se em outra galáxia o tempo em que o drama cognitivo da música era desenhar o abajur cor de carne do inglês Ritchie ou destrinchar o tchan para mentes uspianas.
Ficou longe a época em que a música, mesmo a mais elitizada, produzia exemplos escolares. Caso do concretismo biológico de “O Pulso”, dos Titãs. Da propositalmente desconjugada “Inútil”, do Ultraje a Rigor. De “Corrente”, de Chico Buarque, nas salas mais filosóficas. Da destreza com que Cartola, que parou de estudar no primário, desfilava pela segunda pessoa do singular.
Morto há mais de 400 anos, Camões sambaria miudinho para entender a vivíssima língua que o tem como referência. Nesses mares nunca dantes navegados, as mina pira.
******
Roberto Dias é secretário-assistente de Redação da Folha de S.Paulo