Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um ensaio sobre o mês de junho de 2013

Estabelecer uma sequência lógica dos fatos e entender o que representa o levante popular iniciado há pouco mais de um mês, no dia 6 de junho de 2013, é tarefa complicada, especialmente se levarmos em conta que tudo ainda é muito recente e os desdobramentos estão ocorrendo. Comecei a trabalhar neste texto por volta do dia 15 de junho e, a cada dia, novos acontecimentos mudavam o rumo das minhas ideias e novas possibilidades surgiam ao longo do processo. Impossível ater-me a duas, três páginas. Tal fenômeno não se repete anualmente e era preciso registrar cada aspecto que possa, no futuro, auxiliar numa melhor compreensão do momento atual. Eis minha visão sobre o tema.

O início

O Brasil vive um momento histórico. Após alguns protestos isolados, no início do mês de junho, por conta do aumento no preço das passagens de ônibus em algumas capitais, entre elas o Rio de Janeiro, Goiânia e São Paulo, o país depara com uma onda generalizada de manifestações por todo o território nacional. Na capital paulista, epicentro dos recentes acontecimentos, os atos começaram no dia 6 de junho, uma quinta-feira, em razão do aumento de R$ 0,20 (vinte centavos de real) no preço da passagem de ônibus.

Protestos por conta do aumento na tarifa do transporte público não chegam a ser bem uma novidade em terras brasileiras. As primeiras ações pelo transporte gratuito em São Paulo começaram ainda em 2004, inspiradas em iniciativas ocorridas em Salvador (Revolta do Buzú, em 2003) e Florianópolis (Revolta da Catraca, em 2004). A bem da verdade, de acordo com uma publicação na página Arquivo Estadão, no Facebook, mantida pelo jornal O Estado de S. Paulo, as manifestações por conta do aumento de tarifa no transporte público remontam à década de 1950, quiçá antes disso. Com a manchete “A Cidade Conflagrada Pelo Aumento de Tarifas; Choques Entre a Polícia, Agitadores e Populares(sic)”, o jornal noticiava o protesto contra o aumento da tarifa de ônibus e bondes, que deixou quatro mortos no dia 31 de outubro de 1958. No canto esquerdo inferior da página, a foto de um ônibus em chamas. Dito isso, voltemos aos protestos atuais.

Sim, o motivo inicial do levante popular foi o aumento de R$ 0,20 no preço da passagem de ônibus na capital paulista. Considero esse fator determinante para os desdobramentos que estamos presenciando atualmente. O “irrisório” valor do aumento, somado à depredação do patrimônio público durante os protestos, motivaram uma série de críticas vindas da imprensa, analistas e parte da opinião pública, incluindo o autor deste texto. Como expoente das críticas feitas aos manifestantes podemos colocar Arnaldo Jabor. O comentarista da rádio CBN foi contundente em sua análise dos protestos em São Paulo no dia 13 de junho. Com o título “Revoltosos de classe média não valem 20 centavos”, Jabor exagerou no tom e, quatro dias depois, na segunda-feira (17), utilizando o mesmo espaço diário que tem na CBN, retratou-se com um mea culpa intitulado “Amigos, eu errei. É muito mais do que 20 centavos.”

Convém registrar que o Jabor não foi o único formador de opinião a manifestar-se contrário à motivação dos manifestantes paulistas, tampouco as Organizações Globo, da qual a rádio CBN faz parte, foi a única a adotar um tom crítico no início dos protestos. O fato é que foram justamente essas críticas que motivaram uma mudança crucial no tom dos atos públicos. Os populares passaram a adotar como mote a frase “Não é só por 20 centavos [de real]”, despejando uma série de reivindicações, frustrações, anseios e, por que não, esperanças em cima dos governantes. Começava ali um movimento que iria tomar conta do país.

#VemPraRua

O dia 13 de junho marca o instante em que a população brasileira deu os primeiros indícios daquilo que viria a ser, e ainda está sendo, o maior levante popular desde o impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em 1992. Houve protesto em São Paulo naquele dia 13, o quarto não consecutivo (os três primeiros foram nos dias 6, 7 e 11), mas, ao contrário das manifestações anteriores, as cidades de Maceió, Natal, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Santarém e Sorocaba também registraram protestos que pediam desde a redução da tarifa de ônibus, casos do Rio de Janeiro e Porto Alegre, por exemplo, até coisas mais gerais, como o fim da corrupção, o boicote à Copa das Confederações e, acredite, a saída de Hulk e entrada de Lucas no escrete canarinho.

Nos dias subsequentes, foram registradas manifestações em algumas cidades, incluindo Brasília, onde houve protesto no dia 15 de junho por ocasião da abertura da Copa das Confederações, com o jogo entre Brasil e Japão. A bem da verdade, um outro protesto foi organizado nas imediações do Estádio Nacional Mané Garrincha no dia 14, véspera do jogo, mas, ao que tudo indica, foi uma ação de grupos locais e não possui o menor vinculo com as manifestações que estão aqui sendo analisadas. O fato é que cerca de 500 pessoas saíram, no dia do jogo, das proximidades da rodoviária do Plano Piloto em direção ao estádio. Houve confronto com a polícia, que dispersou os populares com bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, além de spray de pimenta e balas de borracha.

O dia 17 de junho de 2013 destaca-se em todo esse processo pela significação dos atos realizados em vários pontos do Brasil. A adesão iniciada no dia 13 ganhou dimensão verdadeiramente nacional e levou às ruas centenas de milhares de pessoas, espalhadas por cidades como São Paulo (65 mil), Brasília (5 mil), Rio de Janeiro (100 mil), Belo Horizonte (30 mil), Fortaleza (50 mil), Vitória (ES) (20 mil), Curitiba (10 mil), entre outras, além de municípios de vários Estados da Federação. Outros protestos foram realizados posteriormente, incluindo uma grande mobilização nacional no dia 20, onde 1,25 milhão de pessoas, de acordo com matéria do Portal G1, participaram de protestos em várias cidades. Porém, a imagem protagonizada em Brasília, no dia 17, quando centenas de pessoas ocuparam a área externa do Congresso Nacional, inclusive a famosa rampa e as bacias que compõem a edificação, parecem ter mostrado ao país que, de fato, algo novo estava acontecendo.

Internet: a verdadeira cabeça do movimento

Um fator determinante para a propagação dos protestos por todo o território nacional foi a internet. É sabido que as manifestações são organizadas/agendadas via Facebook e propagadas por diversas outras redes sociais. Meu foco será no desdobramento desse “fator determinante” e o que ele trouxe de novo em comparação a outros protestos que já ocorreram no Brasil.

Nos últimos anos, as redes sociais cresceram tanto em número de usuários quanto em número de opções (Facebook, Twitter, Instagram, Google + etc). Com a chegada das classes C e D, em grande parte devido à popularização dos smartphones, e também da camada mais envelhecida da população, motivada pela simplificação da interface e aprimoramento da navegação, essas redes sociais passaram a agregar os mais diferentes pontos de vista sobre os mais variados temas. Bastam apenas algumas poucas horas em uma dessas redes sociais para notar o imenso volume de informações despejadas a cada minuto pelos usuários; todo mundo tem algo a dizer e essas redes proporcionam um espaço adequado para tais manifestações pessoais.

Um argumento utilizado por pessoas contrárias aos protestos é de que os descontentes teriam “esperado os estádios ficarem prontos para, só então, começarem a reclamar”. Quem frequenta o Facebook, por exemplo, nota perfeitamente a fragilidade de tal argumento, posto que várias pessoas já vinham manifestando sua insatisfação com a condução das obras para a Copa do Mundo 2014. O que houve foi apenas a inclusão dessa insatisfação na pauta das manifestações que tomaram as ruas, o que foi propiciado justamente pela ausência de uma única bandeira por trás do movimento.

Ainda com relação ao papel fundamental dessas redes sociais, no que diz respeito a mobilização dos manifestantes, gostaria de estabelecer comparação com uma experiência que vivi em 1999, mais especificamente no dia 26 de agosto. Naquele dia, Brasília foi palco de uma das maiores manifestações que a cidade já viu. Os números variam de acordo com a fonte, mas, segundo o jornal Folha de S.Paulo, cerca de 75 mil pessoas lotaram a Esplanada dos Ministérios naquele dia; eu era uma delas. A “Marcha dos 100 mil”, como ficou conhecida na época, foi realizada por entidades da sociedade civil, sindicatos e por partidos políticos da oposição (na época, liderados pelo PT).

Destaco dois pontos sobre aquela passeata: a ausência de uma continuidade, posto que não houve grandes desdobramentos, apesar do imenso volume de pessoas e do discurso unificado estabelecido pelos organizadores (centralização das lideranças); e a estratégia utilizada pelos mesmos [os organizadores] para atraírem o maior número possível de “manifestantes”, disponibilizando dezenas de ônibus por todo o DF, os quais transportavam gratuitamente quem quisesse ir à Esplanada (convocação de populares a esmo e falta de identificação com o movimento).

No caso dos protestos atuais, essa lógica não se repete. Os manifestantes não possuem uma liderança central e não criaram uma agenda coesa de reivindicações (descentralização das lideranças). Não obstante, os mesmos dispensaram qualquer ajuda/apoio oferecido por partidos, sindicatos ou algo que os valham (convocação espontânea e baseada no princípio da afinidade). Em vários protestos houve inclusive hostilidade com militantes de partidos como o PSTU ou PCdoB, com manifestantes gritando palavras de ordem para que baixassem as bandeiras, pois os mesmos “não os representavam”. Trata-se da exponenciação do bordão “Feliciano não me representa”, o qual transformou-se em “Ninguém me representa”.

No entanto, afirmar que os revoltosos não possuem uma liderança central não significa dizer que não possuam liderança alguma. O Movimento Passe Livre, criado durante uma plenária no Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre, é uma delas. O Anonymous BR, grupo de hackers e ativistas (hacktivists, em inglês), que se descrevem como “uma ideia que não pode ser contida, perseguida nem aprisionada”, é outro que desempenha esse papel de liderança. Alguns vloggers e blogueiros também têm produzido vídeos e textos que exercem certa influência, especialmente nos mais jovens, mas, note-se, porém, que nenhum desses grupos citados conclamam para si a condução desse levante que estamos presenciando nos últimos dias.

O fetiche da ditadura e a glamourizarão do confronto

Durante a manifestação do dia 15 de junho, no Distrito Federal, uma faixa trazia a inscrição “Libertem nossos presos políticos”, em referência a um grupo de manifestantes que havia sido preso em um protesto em São Paulo dois dias antes. Ora, que pedissem a libertação dos jovens detidos, mas os classificarem como “presos políticos”, demonstra uma confusão mental latente. O caso torna-se ainda mais emblemático quando adicionamos o fato de que, no mesmo instante em que a faixa era erguida do lado de fora do Estádio Nacional Mané Garrincha, dentro dele, uma ex-presa política, a presidente Dilma Rousseff, era vaiada por mais de 60 mil pessoas antes do início da partida entre Brasil e Japão.

Outro indicador desse fetiche pelos anos de autoritarismo são as constantes bravatas contra a “velha mídia”, em especial a Rede Globo. O repórter Caco Barcellos, notoriamente um dos melhores profissionais do país, foi agredido verbalmente por um grupo de manifestantes que tentaram impedi-lo de trabalhar. Em outro protesto, uma unidade móvel da Record foi completamente incendiada. Tudo isso sob o pretexto de que “a mídia não mostra a verdade”, mesmo discurso propagado pela velha e desgastada esquerda socialista, rejeitada pelos próprios manifestantes. Para ilustrar o quão esdruxula é essa perseguição aos veículos de comunicação, um idiota, com o perdão do termo, chegou ao absurdo de publicar um vídeo com uma reportagem da Record, a qual mostrava uma médica aos berros protestando contra a falta de estrutura no hospital onde trabalha, e o intitulou “Isso a mídia não mostra: (…)”! Como é? Isso a mídia não mostra?! Outro exemplo são os vídeos onde aparecem a informação “Assistam antes que seja censurado”. Pergunto: censurado por quem? Existe um órgão no Brasil que vasculha a rede mundial de computadores e censura vídeos? Trabalho com internet há vários anos e vi o nascimento do YouTube, mas desconheço tal setor do governo.

Além dos exemplos citados, poderia enumerar dezenas de comentários/alardes feitos, principalmente por usuários de redes sociais, sobre um possível golpe de estado, mas não o farei. Tenho a convicção de que tais temores são tão ridículos que não merecem uma análise mais profunda, mas sim, o desprezo.

Com relação à violência praticada pelos dois lados (Estado e população), vale ressaltar que o Brasil é um dos poucos países democráticos a contar com uma polícia militar no sistema de segurança pública. Via de regra, essa categoria policial só atua no âmbito interno das forças armadas e o Conselho de Direitos Humanos da ONU já pediu a extinção da PM brasileira, uma das forças policiais “mais violentas do mundo”, de acordo com a organização. Outro fator importante é a diferença entre manifestantes e vândalos. Os manifestantes já deram provas suficientes de que não corroboram com os atos de depredação e saques ao comércio praticados por alguns grupos. Porém, é preciso deixar claro que a fronteira é tênue e existe uma intersecção entre os dois grupos. Quero dizer, com isso, que existem manifestantes exaltados, que provocam vandalismo, e vândalos travestidos de manifestantes, que também provocam vandalismo, porém, no segundo caso, essa depredação do patrimônio público e privado geralmente é acompanhada por saques.

Infelizmente, os protestos já deixaram vítimas fatais pelo caminho. A primeira ocorreu no dia 20 de junho, quando o motorista de uma caminhonete atropelou, propositalmente, um grupo de cerca de 12 manifestantes em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Marco Delefrati, de 18 anos, morreu na hora. De lá para cá, outras mortes foram registradas, entre elas a de duas manifestantes em Cristalina, no Goiás, e um jovem em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Além disso, as manifestações continuam a registrar confrontos com policiais, geralmente provocado por grupos isolados. Ainda sobre Belo Horizonte, houve um grande confronto nas proximidades do Estádio Mineirão, no dia 27 de junho, por ocasião do jogo Brasil e Uruguai, válido pela semifinal da Copa das Confederações. A polícia havia acordado com representantes dos manifestantes que a passeata não invadiria o que se conhece por “perímetro Fifa”, e assim foi feito. Tudo transcorreu calmamente até que um grupo decidiu provocar a PM. Cerca de 100 pessoas foram detidas.

Deixo aqui registrado o meu completo repúdio às agressões contra os que compraram ingressos para a Copa das Confederações. No DF, torcedores foram agredidos verbal e fisicamente por manifestantes que os chamavam de “alienados”. Em outro caso, imagens de torcedores correndo desesperados no meio do confronto entre policiais e manifestantes, enquanto se dirigiam ao jogo Brasil x México, na Arena Castelão, em Fortaleza, também me provocaram indignação. É o povo agredindo o próprio povo. E não cabe aqui o argumento de que somente a elite pôde ir aos jogos, porque não foi isso que as imagens mostraram ao longo da competição. Além do mais, a verdadeira elite política e econômica chegou aos estádios por meio de entradas exclusivas. Como prova disso, cito o gasto de R$ 2,8 milhões feito pelo governo do Distrito Federal em camarotes e ingressos VIP para o jogo de abertura, gasto que é objeto de ação do Ministério Público do DF, que pede a devolução desse montante aos cofres públicos, pois julga que a atitude do governador Agnelo Queiroz (PT) configura a utilização de cargo público para autopromoção, o que violaria o princípio da impessoalidade da administração pública.

Além de Agnelo, também pode servir de exemplo o presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), que usou um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para levar a noiva, parentes dela, enteados e um filho ao jogo da seleção no Maracanã no domingo (30). Um jato C-99 da FAB foi buscar a turma em Natal, terra do deputado. Decolou às 19h30 de sexta-feira (28) rumo ao Rio de Janeiro e retornou no domingo, às 23h, após o jogo. Alguém realmente acredita que o deputado entrou no estádio ao lado dos torcedores que compraram seus ingressos?

Afinal, o que querem os manifestantes?

Existe uma teoria conhecida como “cascata de informação” (information cascade, em inglês) que ajuda a entender a mobilização em massa da população brasileira. Em linhas gerais, a teoria é utilizada para explicar a propagação de uma atitude (protestar) entre diversos agentes (setores da sociedade que aderiram aos protestos) sem que haja um entendimento pleno do contexto por parte dos atores secundários (a falta de foco ou unidade no discurso). É o caso das manifestações de apoio aos paulistanos no início da onda de protestos pelo país, por exemplo. Pessoas em diversos cantos do Brasil saíram de sua zona de conforto para irem as ruas em apoio às manifestações e em repudio aos exageros cometidos pelas forças de segurança. Nesse meio tempo, aproveitaram para expor também as suas demandas. É justamente essa segunda parte dos acontecimentos que a teoria da cascata de informação não nos ajuda na compreensão do fenômeno em sua completude.

Para facilitar o entendimento desse processo, procurei estabelecer uma sequência de fatos que culminaram na situação atual do país. O que vem após o destaque “momento atual” são previsões minhas e podem, ou não, virem a se confirmar:

Marcos do levante popular Dia O que houve?
Início dos protestos por conta do aumento das passagens 06 de junho Primeiro protesto na capital paulista por conta do aumento de R$ 0,20 na passagem de ônibus
Críticas da imprensa e parte da opinião pública 13 de junho Apesar do fato de que a imprensa já vinha criticando os protestos, considero a fala do Arnaldo Jabor emblemática
Mudança no tom das manifestações (“Não é só por R$ 0,20”) 13 de junho Quarto protesto em São Paulo (os três primeiros foram nos dias 6, 7 e 11), mas, ao contrário das manifestações anteriores, as cidades de Maceió, Natal, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Santarém e Sorocaba também registraram manifestações
Início da adesão popular em solidariedade aos manifestantes 17 de junho A adesão sinalizada no dia 13 ganhou dimensão verdadeiramente nacional e levou às ruas centenas de milhares de pessoas, espalhadas por capitais como São Paulo (65 mil), Brasília (5 mil), Rio de Janeiro (100 mil), Belo Horizonte (30 mil), Fortaleza (50 mil), Vitória (ES) (20 mil), Curitiba (10 mil), entre outras, além de municípios de vários estados da federação
Tentativa de apropriação ou associação ao movimento por parte de grupos organizados, sindicatos, partidos e afins 19 de junho Houve outras tentativas anteriores, mas a divulgação da nota, assinada pelo presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Rui Falcão, convocando os militantes a saírem às ruas serve bem como marco para essa aprorpiação
Consolidação da adesão popular; seguida de posterior reflexão por parte dos mesmos e, como consequência, o início da inserção de demandas pessoais nos protestos 20 de junho 1,25 milhão de pessoas, de acordo com matéria do Portal G1, participaram de protestos em diversas cidades do país
Descaracterização do movimento inicial e consequente consolidação da apropriação, com a predominância de protestos bem organizados e com foco definido 1º de julho

 

 

 

(Momento atual)

Início das manifestações de caminhoneiros, bloqueando 22 rodovias federais, e organização das entidades de classe ligadas aos médicos brasileiros contra o plano do governo federal de liberar profissionais estrangeiros para atuarem no país sem a revalidação do diploma
Acomodação dos protestos e início do período de estabilização da ordem pública e restauração da normalidade —–  
Consolidação do processo de estabilização, com a ocorrência isolada de protestos —–  
Início de um novo paradigma social no país —–  

 

O sétimo momento que identifico nessa linha de acontecimentos mostrada acima, no qual inseri a observação “momento atual”, é o de consolidação da apropriação da onda de protestos por parte de outros grupos, com interesses diversos. Essa apropriação pode ser bem ou mal intencionada, dependendo do caso. Um exemplo emblemático que nos ajuda a entender melhor esse processo é a manifestação realizada no distrito de Campos Lindos (Marajó), em Cristalina (GO). Os protestos começaram numa segunda-feira (24/06) e, já no primeiro dia, duas mulheres morreram atropeladas por um motorista que furou o bloqueio montado pelos moradores, com o intuito de interditar a BR-251, que corta a região.

A morte das duas manifestantes em Campos Lindos repercutiu em vários noticiários nacionais, misturando-se às notícias dos demais protestos. No entanto, por ter residido e trabalhado na cidade por cerca de cinco meses, em 2008, tenho o conhecimento de que a região já enfrentou atos semelhantes e que parte da população local briga há anos pela emancipação do povoado. É bom que se diga que não há nada de mau nos protestos em Cristalina. Apenas utilizei esse exemplo para ilustrar o momento atual da onda de manifestações no país e demonstrar o quão tênue é a linha que separa os manifestantes iniciais dos que estão aproveitando a ocasião para retomarem antigas demandas ainda não atendidas, ou mesmo tirar proveito da situação. Feita a ressalva, voltemos à questão inicial proposta neste subtítulo.

Sim, a solidariedade motivou boa parte da adesão popular aos atos isolados que tiveram início no começo do mês de junho. No entanto, ao saírem às ruas, os manifestantes também trouxeram suas idiossincrasias e insatisfações para os protestos. Em pesquisa recente encomendada pela Rede Globo e realizada pelo IBOPE, foi traçado o perfil desses manifestantes. Alguns números podem ser destacados para ilustrar essa pluralidade de agendas propostas pelos milhares de integrantes desse movimento sem cabeça e sem unidade, mas não menos significativo e forte por conta disso.

Os pesquisadores perguntaram “quais são as reivindicações que levaram você [manifestante] a participar dos protestos”. Se levarmos em consideração somente a primeira resposta de cada entrevistado, 37,6% disseram transporte público, 29,9% citaram o ambiente político e 12,1% mencionaram a saúde pública como principal motivo para protestar, ficando o restante dividido em contrários à PEC 37 (5,5%), por uma melhor educação (5,3%), os gastos com as Copas do Mundo e das Confederações (4,5%), violência policial (1,3%), segurança pública (1,3%) e outras motivações que não chegaram a atingir 1%, como a falta de ciclovias (0,1%) e a luta pelos direitos indígenas (0,1%).

Em resumo, os manifestantes, por não possuírem necessariamente um vínculo ideológico, social ou econômico, replicam o que costumeiramente fazem nas redes sociais, nos almoços de domingo ou nas mesas de boteco: opinam sobre o que bem entendem. É como acertadamente escreveu um jovem em seu cartaz: “Saímos do Facebook!” De que forma, então, dialogar com um movimento tão disforme e singular como esse?

A resposta do governo

Antes de analisar a resposta dada pelo poder público, é preciso estabelecer o que vem a ser 'governo' no contexto desses protestos. Basicamente, 'governo' é qualquer cargo eletivo, de vereador a presidente da república, passando por senadores, deputados federais e estaduais. Além desses, podemos incluir ministros (esfera federal) e secretários (esferas estadual e municipal). Esclarecido esse ponto, pode-se afirmar que a resposta dessa entidade 'governo' foi lenta e descoordenada. Enquanto os protestos ficaram restritos a algumas cidades do país, motivados pelo aumento do valor da passagem de ônibus, o foco se manteve nos governos estaduais e prefeitos de suas respectivas capitais. Foi preciso que o movimento eclodisse nacionalmente para que, só então, esses governos começassem a agir e acendesse a luz amarela no Palácio do Planalto.

Em São Paulo, o prefeito Fernando Haddad (PT) negava-se a ceder aos protestos, enquanto o governador Geraldo Alckmin (PSDB) afirmava que a PM paulistana atuava de forma “correta e com o único intuito de manter a ordem pública”. Foi somente no dia 19 de junho, após a intervenção da presidente Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula, que conversaram com Haddad e o “convenceram” a voltar atrás, foi que o prefeito de São Paulo decidiu derrubar o famigerado aumento de R$ 0,20. Coincidentemente, no mesmo dia, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB), também retrocedeu na decisão de aumentar a tarifa de ônibus na capital carioca. Outras 15 cidades, entre elas Goiânia e Cuiabá, também reduziram as tarifas. No entanto, como foi dito na época, R$ 0,20 iniciaram os protestos, mas R$ 0,20 não iriam contê-los.

Após a redução das tarifas em várias capitais, o foco voltou-se para o governo federal e para o Congresso Nacional. A primeira grande vitória foi o adiamento da votação da PEC 37, anunciada no dia 20 de junho pelo presidente da Câmara, deputado Henrique Alves (PMDB-RN). Já no dia 21, a presidente da república fez um pronunciamento à nação, o qual, por si só, já mereceria uma análise. Nele, Dilma manifestou apoio aos protestos e demonstrou relativa sintonia com o movimento que ainda toma conta das ruas, afirmando que o momento deve ser aproveitado para acelerar as mudanças que, a bem da verdade, estão de fato acontecendo no país. “Se aproveitarmos bem o impulso desta nova energia política, poderemos fazer, melhor e mais rápido, muita coisa que o Brasil ainda não conseguiu realizar por causa de limitações políticas e econômicas. (…)”. Em suma, a presidente condenou a violência nos protestos, convocou os “chefes dos outros poderes” para “somarem esforços” e sinalizou algumas ações, entre elas a elaboração do Plano Nacional de Mobilidade Urbana e a proposta de destinação de cem por cento dos recursos do petróleo para a educação. Tudo dentro do esperado.

Desde o pronunciamento do dia 21 de junho, podemos estabelecer a seguinte cadeia de eventos: no dia 24, a presidente, em reunião com todos os governadores e prefeitos de capitais, anunciou um pacto com cinco itens, entre eles um plebiscito para uma reforma política "ampla e profunda"; No dia 25, a PEC 37, ao invés de adiada, foi rejeitada pela Câmara; já no dia 26, o Senado aprovou projeto que torna a corrupção crime hediondo; no dia 27, o governo federal consultou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a respeito do plebiscito sobre a reforma política, demonstrando celeridade nas ações; e, no dia 28, a Polícia Federal prendeu, por ordem do Supremo, o deputado Natan Donadon (PMDB-RO), o primeiro a ser encarcerado por determinação do STF desde a Constituição de 1988. Findado o histórico mês de junho, já no dia 1º de julho, a presidente Dilma reuniu-se com todos os 39 ministros para discutir novas ações, sinalizando uma mudança de comportamento claramente motivada pelas manifestações que tomaram conta do país, posto que tal reunião ministerial não estava prevista na agenda do governo. Cabe mencionar também conquistas junto aos governos estaduais, como a abertura do diálogo para a implantação do passe livre em algumas unidades da federação, a aprovação de uma CPI para investigar o transporte público em São Paulo, entre outras.

O papel da imprensa

Os veículos de comunicação desempenharam um papel importante ao longo de todo esse processo. Alvo de duras críticas por conta do viés negativo da cobertura dos primeiros protestos no início de junho, a grande mídia se viu obrigada a mudar o tom, passando de uma visão puramente depreciativa das manifestações para uma postura mais factual e, posteriormente, analítica, procurando relatar os protestos de uma forma mais abrangente, contemplando desde as reivindicações das ruas até os atos isolados de vandalismo, sempre buscando diferenciar entre os que se manifestavam pacificamente e os que procuravam o confronto com policiais e demais agentes de segurança.

A capa do jornal Folha de S.Paulo do dia 7 de junho noticiava o primeiro protesto na capital paulista. Com o título “Vandalismo marca ato por transporte mais barato em SP”, a foto em destaque, que mostrava a avenida 23 de Maio bloqueada por fogueiras e tomada por populares, trazia em sua legenda: “Manifestantes liderados pelo movimento passe livre, ligado a estudantes, ao PSOL e ao PSTU, queimaram catracas de papelão”. Dez dias depois, a mesma Folha de S.Paulo destacava as manifestações do dia 17, marco do movimento, com o título “Milhares vão às ruas ‘contra tudo’; grupos atingem palácios”, a foto em destaque, que mostrava dezenas de pessoas ocupando a área externa do Congresso, trazia a seguinte legenda: “Em Brasília, aos gritos de ‘o Congresso é nosso’, manifestantes quebram cordão de isolamento da PM e invadem a laje da sede do Legislativo; segurança do Planalto foi reforçada”.

Ora, fica evidente a mudança no tom da cobertura. No entanto, ao contrário do que alardeiam os críticos, essa mudança é absolutamente normal. Existe uma brincadeira entre membros da imprensa que versa sobre a questão da cobertura jornalística. De acordo com a piadela, a função dos jornalistas seria a de “separar o joio do trigo e publicar o joio”. Com isso quero dizer que, pelo critério usual de noticiabilidade, o confronto rende mais destaque do que o ato pacífico; a violência atrai mais atenção do que a calmaria. Nas palavras de Nelson Rodrigues, “o mundo visto da redação de um jornal é realmente hediondo”.

É claro que houve alguns erros graves, como o comentário do Jabor, já citado no início do texto, bem como o episódio tragicômico envolvendo o apresentador do programa Brasil Urgente, da TV Bandeirantes, José Luiz Datena, quando o mesmo procurou de todas as formas influenciar em uma pesquisa sobre os protestos, mas acabou sendo vencido pelos que apoiavam o movimento. Feitas as ressalvas, considero correta a cobertura da imprensa. Afirmo isso com base na realidade dos meios de comunicação no país. É evidente que existem interesses financeiros por traz desses grandes grupos. Não cabe aqui uma análise mais profunda desse aspecto, sob pena de tornar esse ensaio ainda mais extenso, mas é bom mencionar que grande parte da receita dos grupos de comunicação que atuam no país vem justamente de contratos publicitários com governos e prefeituras. Essa dependência atinge principalmente os veículos de pequeno e médio porte e chega a ser a regra em cidades do interior, onde veículos existem com o único intuito de promover certos grupos e denegrir outros. Nas grandes cidades e capitais, esse terreno é mais nebuloso e essa relação entre veículos e governos vai da promiscuidade explícita ao oposicionismo descarado. No entanto, a imprensa tem sua razão de existir e presta enormes serviços à população e ao país.

Isso não quer dizer que a mídia não possa ser criticada. Sim, vivemos em uma democracia e todos têm o direito de manifestar sua insatisfação com seja lá o que for, inclusive a imprensa de uma forma geral ou algum grupo específico de mídia. Em entrevista ao portal Terra, o representante da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, André Borges, defendeu esse direito dos manifestantes. "Eles têm o direito a se manifestar contra a mídia. A mídia mente sobre as manifestações. Ela também precisa fazer uma autocrítica, a revolta é contra o sistema". "Eles não podem agredir, mas podem expulsar, sim", acrescentou Borges. O programa “Observatório da Imprensa”, veiculado no dia 25 de junho, pela TV Brasil, foi exclusivamente dedicado a avaliar a cobertura dos protestos e recomendo-o a quem não pôde assistir. Contudo, como disse anteriormente, incendiar veículos de empresas de comunicação ou mesmo agredir repórteres durante os protestos é inaceitável, seja por parte dos manifestantes, seja por parte dos policiais.

Como registro, deixo aqui os números apresentados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) no dia 28 de junho. De acordo com a entidade, até aquele momento, 52 jornalistas haviam sofrido algum tipo de violência, sendo 34 agressões e ameaças pela polícia, 12 por manifestantes e seis prisões. Esses números continuam a crescer.

Análise final

Junho de 2013 chegou ao fim. Como afirmei anteriormente, tudo ainda é muito recente e os desdobramentos estão acontecendo, enquanto o movimento ganha novos rumos. A velocidade com que todo esse processo foi deflagrado gera espanto e dificulta a vida de qualquer um que queira debruçar-se sobre o assunto. Como disse, estamos no momento em que alguns grupos procuram associar-se ao movimento das ruas, o que já provocou uma certa descaracterização de alguns atos.

No dia 27 de junho, uma manifestação da UNE reuniu cerca de 3 mil estudantes, vindos de 13 estados, os quais pediam mais investimentos na educação. A tática adotada pela UNE foi a de disponibilizar ônibus para os estudantes, semelhante a adotada pelos organizadores do protesto de 1999, citado no subtítulo “Internet: a verdadeira cabeça do movimento”. Longe de querer condenar o protesto da UNE, mas essa também pode ser vista como uma tentativa de apropriação do movimento das ruas, posto que os mesmos não tinha programado nenhum ato para o mês de junho, de acordo com o próprio site da entidade. Ainda nessa linha da apropriação do momento atual, na segunda-feira (1º de julho), manifestações de caminhoneiros, que pedem a redução no preço do diesel e isenção do pedágio em estradas federais, bloquearam 22 rodovias federais e causaram transtornos e prejuízos em todos os estados, além de acidentes fatais. O governo federal suspeita que a paralisação tenha sido coordenada por empresários do setor de transportes e determinou que a Polícia Federal abra inquérito para investigar o movimento. A prática é conhecida como 'locaute'.

Enquanto surgem pelo país novas frentes de protestos, como a dos médicos que protestam por melhores condições de trabalho e contra a liberação para que profissionais estrangeiros atuem no país sem passar pela revalidação do diploma, uma marcha no Distrito Federal, organizada pelo Facebook, contou com pouco mais de 400 pessoas na noite do dia 1º de julho. Uma integrante do grupo demonstrou indignação pelo fato de 17 mil pessoas terem confirmado presença por meio da rede social, o que não se confirmou nas ruas. Esse exemplo demonstra que a onda de protestos está seguindo seu curso e ganhando novos contornos.

O governo federal adotou a reforma política como tábua de salvação e é certo que algum tipo de consulta popular deve ser realizada, provavelmente ainda esse ano, seja por meio de plebiscito ou referendo, o que ainda está em discussão. É possível afirmar que o cenário político foi literalmente chacoalhado pelo movimento popular que tomou as ruas em junho. Os saques são completamente condenáveis e injustificados. Porém, a depredação do patrimônio público e até mesmo do privado, apesar de também condenáveis, precisam ser compreendidas como efeito colateral indissociável da aglomeração que se viu nas ruas. Citando somente acontecimentos recentes, desde a “Primavera Árabe” (2010) até os protestos na Turquia (2013), passando por movimentos como o “Occupy Wall Street” (2011), a violência e o confronto entre manifestantes e forças de segurança sempre estiveram presentes, seja em maior ou menor grau.

No ápice das manifestações, a crítica que se fazia, inclusive por apoiadores dos protestos, era a falta de foco provocada pela falta de liderança e pela falta de uma pauta clara de reivindicações. Como disse a manchete da capa da Folha de S.Paulo, do dia 17 de junho, “Milhares vão às ruas ‘contra tudo’”. O que me intriga é o espanto provocado por essa característica. O Brasil, de uma forma geral, não tem lógica. Por que, então, os atuais protestos haveriam de ter? O cineasta Glauber Rocha, ícone da rebeldia e da vanguarda do cinema nacional, filmou, em 1966, a posse de seu amigo José Sarney, então com 35 anos, no governo do Maranhão. Hoje em dia, Sarney representa tudo o que há de sórdido e pernicioso na política. O próprio Arnaldo Jabor, antes perseguido pela censura e considerado um subversivo, agora é taxado de reacionário. Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente e líder do PSDB, um partido notadamente de direita, atualmente defende a descriminalização das drogas. Essa “confusão” atinge também a esquerda brasileira.

A velha militância de esquerda, composta pelos integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), não serve mais como refúgio para os insatisfeitos ou mesmo para os satisfeitos que se recusam a ignorar as mazelas do governo petista. Siglas como PSTU, apesar de potencialmente nocivas, não devem ser levadas (ainda) a sério. Já a militância do PCdoB e do PT, no entanto, atualmente compõe a linha de frente do terceiro escalão da administração pública no país (governo federal) e nos estados que governam. Longe de querer aqui colocar a “presidenta” Dilma na condição de vítima, é preciso registrar que ela governa, desde o início, na condição de refém dessa militância, liderada pelo ex-presidente Lula.

Dilma precisa lidar com a distribuição endêmica de cargos instituída na gestão de seu mentor, além de ser obrigada a abrir mão de sua principal característica, que é a da meritocracia. É sabido por todos que Dilma é rígida na forma de trabalhar e afirmo, sem receio de errar que, caso lhe fosse possível, montaria um ministério significativamente diferente do que possui hoje, mas o fato é que ela não pode. Lula controla a militância e essa militância é capaz de tudo para defender o indefensável. Como defender José Dirceu, João Paulo Cunha ou José Genoíno, todos condenados pelo Supremo Tribunal Federal? Como defender a aliança com Paulo Maulf, com direito a foto em que Lula, Haddad e Maluf aparecem sorrindo, durante a eleição para a prefeitura de São Paulo? Como defender um governo que tem como ministro um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella (PRB), que, em discurso registrado por câmeras, agradeceu aos governos Lula e Dilma por terem “melhorado a renda dos mais pobres” gerando, como consequência, “o aumento na arrecadação com o dízimo”?

A militância do PT e do PCdoB cumpre cegamente o papel de blindar as ações equivocadas ou mal intencionadas do governo e procura desmoralizar a todo instante as manifestações nas ruas. Quando não desmoraliza, por meio de seus militantes, o Partido dos Trabalhadores procura apropriar-se do movimento, como no comunicado assinado pelo presidente do PT, divulgado no dia 19 junho, em que o mesmo defende “a presença de filiados do PT, com nossas cores e bandeiras neste e em todos os movimentos sociais” com o objetivo de “impedir que a mídia conservadora e a direita possam influenciar, com suas pautas, as manifestações legítimas”, numa clara tentativa de associar-se ao clamor das ruas.

Note-se que mais uma vez surge a “mídia conservadora” no discurso ultrapassado da velha esquerda. Cabe ressaltar que estamos falando de uma nota assinada pelo presidente do partido que governa o país há quase 11 anos! Ora, se a “mídia conservadora” é golpista, também o é incompetente, posto que o PT já governa há mais de uma década. Não se enganem: a justa insatisfação dos atuais manifestantes com os grandes grupos de mídia é completamente distinta da esquizofrênica mania de perseguição demonstrada pela militância de esquerda. Em tempo, o comando nacional do PT conclamou, no dia 04 de julho, a militância petista “a assumir decididamente a participação das manifestações de rua em todo o país, em particular no dia nacional de luta com greves e mobilizações”, programada pelas centrais sindicais para a próxima quinta-feira (11).

Pesquisas de opinião têm apontado significativa queda da popularidade da presidente Dilma, mas isso não quer dizer muito no que diz respeito ao cenário político nacional. A onda de protestos pode ter gerado ótimos frutos, mas não há tempo hábil para o surgimento e consolidação de novas forças políticas. Em outras palavras, as eleições de 2014 não devem trazer grandes mudanças nas fotos que aparecem nas urnas a cada quatro anos. Pessoalmente, acredito que o ex-presidente Lula foi um grande estadistas e tenho orgulho de tê-lo tido como presidente. Figura contraditória, genial a sua maneira, orador nato e, sem dúvida, alguém que ama seu país e carrega em si a bondade. Se não acreditasse nisso, não teria votado nele por três vezes (1998, 2002, 2006). No entanto, Lula deixou-se corromper em alguns pontos ao longo do processo.

Com as manifestações, rompeu-se um ciclo e estamos presenciando o início de um novo paradigma social. Estabeleceu-se uma terceira via no país. Ao contrário do que tenta impor a militância de esquerda, o fato de alguém ser contrário ao governo Dilma, ou mesmo criticá-lo, não torna ninguém necessariamente partidário da direita ou “golpista”, como alguns chegam a tachar quem critica as ações do governo atual. A esquerda erra e acerta assim como todos; não são os guardiões da ética e da boa gestão, ao contrário do que pensam. Os partidos de direita também acertam e erram como todos e também não têm o direito de tentarem associar-se aos manifestantes. Inegável a evolução do Brasil, principalmente na área social, alcançada durante o governo do Lula. Assim como incontestável é a importância de Fernando Henrique Cardoso, com a criação do Real e outras ações que tomou durante seu governo, entre elas o início do processo de privatizações, tão criticado pelo PT, quando oposição, e copiado, uma vez que chegaram ao poder.

Pluralidade é a palavra-chave para decifrar o momento atual. Em seu pronunciamento no dia 21 de junho, Dilma afirmou que “precisamos oxigenar o nosso sistema político”. Concordo plenamente. O que esse movimento traz de novo é justamente a abertura do debate. A massa não pede a queda do governo. Isso é bravata de poucos e deve ser compreendida como tal. Em essência, a massa pede simplesmente um país melhor. Pede mais transparência, honestidade, comprometimento, enfim, pede o básico. Essa onda de protestos tornou-se uma grande aula a céu aberto, onde os jovens puderam ter contato com a mobilização social. Os problemas do país não desaparecerão num passe de mágica, mas os protestos de junho foram um ótimo passo nessa direção. Já começam a surgir críticas no meio dos próprios manifestantes com relação a uma suposta “banalização” dos atos. Alguns populares estariam distorcendo o propósito inicial e consumindo bebidas alcoólicas, glamorizando o grito das ruas, enfim, estariam transformando os protestos em “uma grande festa”. E o que há de errado nisso? É claro que existe o limite do bom senso e do ridículo, mas toda geração tem sua cota de alienados. Se os não politizados da atual geração de jovens querem fazer festa em um protesto, que os deixemos livres para fazê-lo.

Um anarquista tem tanto direito de utilizar um computador importado para pesquisar sobre Bakunin no Google quanto uma patricinha tem o direito de utilizar o Instagram para “sensualizar” em uma manifestação. Um descontente tem tanto direito de protestar nas ruas quanto um torcedor tem de ir a um estádio assistir a uma partida de futebol. Erguer um cartaz em um protesto é tão significativo quanto cantar a capela o hino nacional nos estádios, como fez a torcida brasileira durante a Copa das Confederações. Que saiam às ruas as lésbicas, os gays, os héteros e os indecisos. Que gritem os pobres, os ricos, os magros, os gordos, evangélicos, católicos, ateus, budistas e por aí vai. Aproprie-se você também do movimento que tomou as ruas. Vale tudo! Manifeste-se ou assista à Sessão da Tarde, não importa. Querem foco nos protestos? Eis aqui a uníssona mensagem da população brasileira: quanto mais liberdade, melhor.

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Rodrigo Ramthum é jornalista, Brasília, DF