A crise política revelada pelas manifestações nas grandes cidades brasileiras – e sua eventual solução – pode ser compreendida indiretamente, na leitura cuidadosa dos jornais e na comparação desse conteúdo com amostras de opiniões expostas nas redes sociais digitais.
Claramente, o que estamos assistindo é o resultado de um descompasso entre as ações do Estado e as demandas da sociedade. Embora a aliança partidária que ocupa o poder central há dez anos tenha produzido avanços incontestáveis nas perspectivas de uma vida melhor para a maioria da população, na sequência de reformas iniciadas por governos anteriores, o Brasil não conseguiu superar antigas carências geradas por décadas de políticas públicas equivocadas.
Os elementos para essa análise estão presentes no noticiário de todo dia, como o desta quinta-feira (18/7), embora muitos textos opinativos acabem atuando no sentido de complicar a compreensão do quadro completo. Leia-se, por exemplo, a ampla reportagem do Globo sobre a decisão do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, que determinou uma devassa em 43 empresas de ônibus que integram os consórcios de transportes na cidade.
Vinte e dois dias antes, os mesmos conselheiros haviam arquivado uma investigação sobre o mesmo assunto. Agora, o TCM resolveu obrigar as empresas a tornar públicas sua planilhas, detalhando receitas e despesas, e vai abrir um processo para averiguar a formação de cartel. Trata-se, nada mais, nada menos, de realizar de fato aquilo que os conselheiros são pagos para fazer: fiscalizar os serviços públicos.
Mas o que teria feito com que mudassem de opinião em menos de um mês? O sopro inspirador do espírito santo? Ou a repercussão negativa de uma festa de casamento de R$ 3 milhões, promovida pela família proprietária de uma das maiores empresas de transporte coletivo do Rio, e que foi recebida como uma desfaçatez pela própria imprensa?
Expor as contas que definem o valor das tarifas é o mínimo que um Estado organizado deve fazer.
Quem resiste à reforma
Outro texto interessante, que aparece com mais espaço na Folha de S. Paulo, mas também é publicado, com versões variadas, pelos outros jornais, trata do programa Mais Médicos, que pretende suprir a falta de profissionais no interior do País e nos bairros periféricos das grandes cidades.
Segundo a Folha, candidatos a participar do programa estão desistindo porque, como se trata de bolsa de estudos, a proposta não inclui direitos trabalhistas, como 13º salário e Fundo de Garantia, embora os vencimentos sejam considerados altos.
O Estado de S. Paulo e o Globo tratam o assunto de maneira diferente, destacando que o programa já tem mais inscritos do que vagas, mas observam que há suspeitas de um movimento de boicote organizado. A Polícia Federal está investigando a informação surgida nas redes sociais digitais, indicando que um grande número de médicos estaria fazendo a inscrição para depois promover uma desistência em massa e, com isso, desmoralizar a iniciativa do governo.
Para terminar, mas ainda sem concluir a série de notícias relacionadas à crise, note-se que os jornais dão versões diferentes – o que é saudável – para a decisão da presidente da República de tentar outros caminhos para atender a demanda por uma reforma política.
Na leitura conjunta dos diários, pode-se observar que a chefe do governo estaria buscando apoio fora do Congresso, em entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil e movimentos sociais, para realizar a reforma com os recursos da democracia direta, prevista na Constituição, como os que fizeram valer a Lei da Ficha Limpa.
Para que isso aconteça, porém, será preciso ir à origem da crise, ou seja, refazer a conexão entre Estado e sociedade, que foi esgarçada ao longo dos 25 anos de vigência e remendos à Constituição de 1988.
Uma das iniciativas nesse sentido está em andamento, e pode resultar em mais transparência nas decisões do Parlamento, com o fim das votações secretas para a presidência do Senado.
Mas há também muitos obstáculos no caminho, e o principal deles é exatamente a resistência dos bolsões de fisiologismo que sustentam a política do “toma-lá-dá-cá”, que está na raiz da corrupção e da ineficiência das instituições republicanas. Se for possível fazer um resumo do que está em jogo neste momento, é o caso de se dizer que se trata de substituir projetos de poder por um projeto de sociedade.