No Fantástico de domingo (22/4) – provavelmente depois de ouvir seu consultor de língua portuguesa, Sérgio Nogueira – a TV Globo traduziu para Furacão o nome da operação Hurricane, desencadeada pela Polícia Federal, que levou à prisão de graúdos como jamais se vira, entre os quais um ministro do Superior Tribunal de Justiça.
Em sua coluna publicada aos domingos em diversos jornais, entre os quais O Globo e Folha de S.Paulo, o jornalista Elio Gaspari ironizara a denominação:
‘Chamar uma operação policial de `Hurricane´ é um furacão de macaquice. Se é assim, o ministro [Tarso Genro] passa a chamar-se Tarso Son-in-Law. Parecerá chinês, mas continuará a ser Genro’.
Depois que as escolas de ensino médio vêm fracassando no ensino da língua-mãe, a língua portuguesa tornou-se disciplina ministrada por meio de colunas em jornais, em revistas, em portais da internet, em livros sérios e em outros que semelham auto-ajuda.
De todo modo, é certo que a imprensa adotou o caminho de ensinar a escrever. Aos leitores, com colunas especializadas; aos jornalistas, com manuais de redação. Não falta arrogância a alguns veículos. A Folha de S.Paulo, por exemplo, mexeu nas regras de acentuação e, por conta própria, aboliu o trema. Por enquanto, estão intocáveis os acentos nas proparoxítonas e assim o quelônio aparentado com o jabuti continua a ter seu nome escrito com o indispensável acento: cágado.
Clima e mitologia
A fonte etimológica de hurricane e de furacão é a mesma, o taino hurakán. Para nós é furacão porque antes de chegar ao português fez escala no castelhano. Para os de língua inglesa é hurricane pelas mesmas razões que cachorros de donos ingleses não fazem au-au, pois o melhor amigo do homem, no mundo inteiro, late na língua de seu dono. Ou ao menos ele registra o latido de acordo com as normas de sua respectiva língua: a dele e a do cachorro, pois sabe-se que o cachorro entende a língua do dono, seja ele português, chinês, inglês ou árabe.
O taino era falado por antigos habitantes das Antilhas, dizimados pelos brancos. Dizimar já significou matar dez por cento das tropas inimigas, uma mortandade sem fim, mas, com o avanço das armas de destruição, dizimar perdeu o sentido original e consolidou outro: o de destruir em grandes proporções.
O Brasil segue perdendo muitas línguas, das quais não haverá registro: em recente levantamento, havia línguas na Amazônia que tinham apenas um falante. Quando ele morre, leva os segredos de sua língua com ele.
Criativa na denominação de suas operações, a Polícia Federal, nem bem tinha assustado o país com a Hurricane, revelou o que descobrira com a Têmis: a venda de sentenças judiciais. Jornalistas que precisam de um manual de redação para escrever, agora precisam também de outros suplementos educacionais. Desta vez, os campos de pesquisa estão limitados às metáforas do clima e da mitologia (Têmis, deusa grega da Justiça). A mitologia clássica é velha conhecida da Polícia Federal. Já designaram operações Afrodite, Eros, Ícaro, Artemis e Euterpe, entre outras deidades.
Luz dos livros
Apesar de as duas operações ganharem manchetes da imprensa, outras também foram deflagradas e não obtiveram repercussão. Foi o caso da operação Lacraia, que desbaratou uma quadrilha que falsificava escrituras de propriedades rurais. A lacraia, um lacrau pequeno, deve seu nome ao árabe alaqrab, escorpião.
Lia-se no sítio da Polícia Federal, na sexta-feira (20/4):
‘Depois de prontos, os papéis eram envelhecidos em fornos microondas, que acabaram substituindo a velha técnica que utilizava caixas com grilos (razão do termo grilagem de terras). As escrituras das terras, que na maioria eram de propriedade da União ou não existiam fisicamente, serviam de garantia na obtenção dos empréstimos bancários’.
Que outras polícias se mirem no exemplo da Polícia Federal, deixem de perseguir mocréias e partam para cima daqueles que impunemente devastam a imensa reserva ética do povo brasileiro, tão bem resumida nesta frase de João Guimarães Rosa no Grande Sertão: Veredas:
‘Pobre tem de ter um triste amor à honestidade’.
No portal da Polícia Federal, endossos unânimes à sua atuação, de que é exemplo esta mensagem:
‘Parabéns pelo trabalho! Pena que a Justiça solta enquanto os senhores investigam e se arriscam. (a) Getulio Fenet’.
De todo modo, para que a imprensa possa noticiar corretamente as operações da Polícia Federal, é indispensável voltar aos livros. Há realidades no mundo que só podem ser entendidas à luz de livros.
******
Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde coordena o Curso de Letras; www.deonisio.com.br