Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A cobertura da guerra urbana

O programa Observatório da Imprensa na TV, exibido na terça-feira (24/4), debateu a situação de risco em que se encontram os jornalistas que fazem a cobertura da violência nos grandes centros urbanos. As trocas de tiros ocorridas na madrugada e manhã da terça-feira (17/4) no bairro do Catumbi, no Rio, deixaram os repórteres encurralados pela balacera. Reportagens sobre ações policiais contra o narcotráfico transformaram-se na prática em coberturas de guerra. Jornalistas que cobrem a violência estão correndo risco de vida . Como encarar essa realidade?


No editorial que abre o programa [ver abaixo], Alberto Dines lembrou o confronto do Catumbi e disse que a batalha que interessa à mídia agora é outra: o caso dos magistrados envolvidos com o escândalo das máquinas caça-níqueis e bingos. Afirmou que as guerras podem ser diferentes, mas o inimigo é um só: o crime organizado.


Participaram do debate, em São Paulo, o comentarista da TV Record Percival de Souza; nos estúdios da TVE, no Rio, o editor-chefe do jornal O Dia, Alexandre Freeland, e o editor regional do SBT, Paulo Nogueira.


Medir o risco


O tiroteio do Catumbi deixou 13 mortos e 4 feridos; outras chuvas de balas na Zona Oeste da cidade, no mesmo dia, levaram a 19 o número de óbitos. E o que faz fotógrafos, repórteres e cinegrafistas arriscarem a vida pela notícia? O cameraman Junior Alves, do SBT, disse em entrevista gravada que o cinegrafista – nome-código ‘águia’ – tenta sempre capturar a melhor imagem, mas é necessário medir as conseqüências quando vai se posicionar num local para filmar. ‘Já fui baleado de raspão na boca por causa dessa minha imprudência de profissional de imagem’, contou.


A repórter Mônica Puga, também do SBT, comentou em sua entrevista que há 3 ou 4 anos as coberturas de trocas de tiros eram praticamente diárias: ‘Trabalhei num jornal em que fazíamos isso todo dia, e todo dia corríamos risco de vida’.


Em junho de 2002, o jornalista Tim Lopes, da TV Globo, foi torturado e assassinado por traficantes do Complexo do Alemão quando fazia uma matéria sobre corrupção de menores em bailes funk. O fato chocou a opinião pública e levou empresas de comunicação a tomarem medidas preventivas. Hoje, carros blindados e coletes a prova de balas são comumente utilizados pelas equipes de reportagem.


Paulo Motta, editor da editoria Rio do jornal O Globo, afirmou em seu depoimento que o limite de atuação do jornalista durante uma situação de risco é decidido pelo repórter e pela equipe. ‘Eles estão ali vivenciando a situação, eles é que sabem medir o verdadeiro risco ou o não-risco’, disse.


‘Premissas essenciais’


Dines abriu o debate perguntando a Paulo Nogueira se o telespectador valoriza o esforço de cobertura ou se as trocas de tiros já se tornaram algo banal. O editor do SBT lembrou que o apresentador havia feito uma pergunta emblemática no editorial: ‘Quem ainda lembra do Catumbi?’. E disse que o evento poderia ser lembrado como algo inédito, mas isso não acontecia por causa da repetição exaustiva das imagens.


Nogueira lembrou que esse tipo de ‘espetáculo televisivo’ estava completando 20 anos. E que a primeira matéria desse tipo foi feita no morro Dona Marta, no bairro do Botafogo, quando pela primeira vez a guerra entre dois traficantes entrou nos lares. ‘Os riscos da profissão cada vez aumentam mais’, lamentou, para acrescentar que tudo faz parte de um aprendizado diário.


Dines sublinhou que Nogueira havia tocado uma questão muito importante: a entrada desse tipo de violência nos lares. E fez alusão à guerra do Vietnã, afirmando que ela só havia começado de verdade quando entrou nos lares americanos, por intermédio dos telejornais – o que, aliás, foi decisivo para o acordo de paz. Pediu para Alexandre Freeland explicar o que o jornalista poderia fazer para mostrar ao telespectador que já se havia chegado a uma situação-limite.


O editor-chefe do Dia disse que a chave é tornar a notícia mais densa e fazer as conexões críticas necessárias. Elogiou a comparação feita por Dines entre os traficantes e os magistrados: ‘Num jornal temos a obrigação de fazer essas conexões’.


Freeland comentou que o risco de morte dos jornalistas não acontece apenas durante as suas reportagens, mas também no dia-a-dia em virtude da violência urbana do Rio de Janeiro. ‘Temos que fazer um esforço cotidiano para evitar a glamourização desse trabalho para não cair na armadilha de achar que é normal essa rotina de risco’, disse. ‘E buscar algumas premissas essenciais como carro blindado e colete a prova de bala.’ Freeland louvou a iniciativa do Sindicato dos Jornalistas do Rio, que no ano passado criou um curso de treinamento para jornalistas cariocas envolvidos nesse tipo de cobertura.


Jornalista inimigo


Dines lembrou que o jornalista Percival de Souza – integrante da equipe fundadora do Jornal da Tarde, de São Paulo – era o mais experiente dos presentes ao debate. E perguntou: qual é diferença na cobertura de antigamente para os dias de hoje? O crime terá ficado mais organizado e atingido um patamar de poder militar?


‘Perto dos nossos jovens colegas sou um dinossauro jornalístico’, exagerou Percival. ‘Acompanho a evolução do crime e a cobertura da imprensa há quatro décadas.’ Ele disse que antes não havia os riscos que existem hoje: ‘Não se poderia conceber a possibilidade de andar num veículo blindado ou muito menos de usar um colete a prova de balas. Houve uma fantástica transformação.’ Observou ainda que o caso de Tim Lopes foi o divisor de água nos padrões da cobertura policial, e fez com que os riscos passassem a ser muito mais calculados. Lamentou que a violência não tenha diminuído desde a morte de Tim – só fez piorar.


No início do segundo bloco do programa, Dines citou o caso do jornalista Joel Silveira, que cobriu no teatro de operações da Itália a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Nessa ocasião ele teria recebido uma ordem do seu chefe Assis Chateaubriand: ‘Seu Joel, o senhor está proibido de morrer!’. O apresentador lembrou o comentário gravado por Paulo Motta, no início do programa, quando este afirmou que a decisão sobre o risco é do repórter, e não o editor. ‘Como você vê o Joel Silveira, o Chateaubriand e o comentário do Paulo Motta?’, perguntou Dines a Paulo Nogueira.


Nogueira discordou de Motta. Afirmou que existe o bom senso, mas que muito do que é feito nas ruas vem das decisões da Redação. Comparou a função das chefias com a de um jogador de meio de campo, que está ali para impedir que o ímpeto prevaleça e que situações de risco sejam mal analisadas. ‘Com a ajuda da Redação e com diálogo, eles sabem que nunca serão cobrados por uma imagem que tenha colocado em risco a vida deles’, disse Nogueira, sobre as equipes de rua. ‘Mas, ao mesmo tempo, vivemos o dilema de ter a obrigação de informar, e através de imagens mostrar a dramaticidade [do fato].’


Dines recordou o caso da veterana repórter de polícia Albeniza Garcia, que chegou a ter fontes junto a traficantes. E indagou a Freeland: ‘Hoje em dia ainda é possível que um jornalista suba o morro para obter sua informação?’


O editor-chefe do Dia disse que Albeniza é um exemplo para todos os jornalistas policiais, mas que, com o caso de Tim Lopes, uma coisa havia se tornado muito clara: o tráfico de drogas vê os jornalistas como inimigos, pois sabe que a mídia pode ‘entregar’ os criminosos e levá-los à prisão. ‘Houve um recuo nas redações, um amadurecimento’, disse Freeland.


Outra realidade


O apresentador comentou que a violência ocorre de maneira diferente no Rio e em São Paulo: a periferia do Rio está dentro da cidade, enquanto em São Paulo está isolada; o caráter dos confrontos no Rio é campal, mais freqüente e mais visível, ao contrário de São Paulo. E perguntou para Percival como age a imprensa paulista nesse tipo de cobertura.


Percival disse que, de fato, a situação é bem diferente nas duas cidades, mas que em São Paulo a violência também existe. Citou o caso de uma equipe de jornalismo da Record que foi obrigada a correr dos criminosos, e logo em seguida foi fotografada pelos bandidos com um telefone celular. ‘É uma ousadia incrível’, disse. O jornalista disse ainda que recentemente fez uma transmissão ao vivo do centro de São Paulo, mas teve de pedir escolta policial para poder trabalhar com segurança. ‘São Paulo tem pontos em que é necessário tomar cuidado com o crime organizado’, lembrou.


Dines questionou Paulo Nogueira: ‘Qual o papel da polícia em relação à mídia? Ela protege, ajuda?’ Nogueira disse que isso era difícil porque a preocupação da polícia é a mesma dos jornalistas: buscar sobrevivência e proteção. ‘Infelizmente essa é a realidade’, lamentou. De acordo com alguns manuais de guerra, explicou, o ideal é não ficar atrás da polícia, o alvo, embora a atitude dos jornalistas ainda seja a de procurar proteção junto aos policiais.


O apresentador disse que houve um tempo em que os bandidos procuravam apoio da sociedade, e perguntou a Freeland o que havia mudado. O editor do Dia afirmou que o não-pertencimento a uma determinada comunidade, a baixa faixa etária e o consumo de drogas impedem que os bandidos pesem as conseqüências dos seus atos.


Responsabilidade social


No terceiro bloco, Dines comentou que a maior parte da imprensa encontra-se em São Paulo, mas que mesmo assim o foco dos acontecimentos está no Rio. E perguntou a Percival se o fato de a imprensa paulista mostrar esses acontecimentos circunscritos apenas ao Rio não coloca o problema do narcotráfico distante da população de São Paulo e de outros estados.


Percival esclareceu que o problema é nacional, e que em seu livro Sindicato do crime mostra como isso acontece em diversas partes do país. ‘O problema não está circunscrito a um lugar, embora especificamente em um lugar esteja mais latente’, disse. Observou que cada vez mais se exige que a imprensa mostre o crime em todas as suas facetas. De acordo com ele, o Brasil precisa de uma mudança de rumo em todos os sentidos: Poder Judiciário, Ministério Público, Polícia Militar, Polícia Civil, o sistema prisional etc. ‘Essas coisas não estão funcionando como deveriam e é por isso que a criminalidade violenta está intimidando cada vez mais os habitantes dos grandes centros urbanos’, explicou.


Durante a participação dos telespectadores, foi perguntado a Alexandre Freeland: ‘Com tanta violência, o que leva um jornalista a optar pela editoria de Polícia?’ Freeland comentou que essa tendência começa na faculdade, quando o estudante se espelha em profissionais que enfrentaram conflitos – do que são exemplo Joel Silveira e Percival de Souza. ‘O que não se poderia imaginar é que o conflito fosse chegar até você. O confronto está batendo na nossa porta.’ Freeland disse que o gosto e o envolvimento do jornalista com a cidade move seu cotidiano. E suas pautas.


Uma telespectadora de Niterói afirmou que o fato de noticiar ações e siglas de grupos organizados fazia com que os bandidos se vangloriassem do crime. E perguntou se não seria o caso de dar a notícia sem exaltá-los, ou omitir o nome das facções a que eles pertencem. Paulo Nogueira respondeu que todo jornalista tem medo de fazer publicidade ao invés de noticiar, mas que era contra omitir nomes de associações criminosas porque isso priva o leitor de informações. E lembrou que a notícia deve ser dada sempre de forma crítica.


Freeland interveio e disse que o fato de divulgar nomes de facções é muito importante para o serviço Disque-Denúncia. ‘A mídia e os jornais são usados – e muito bem usados – nesse sentido’, disse. Citou o exemplo do bandido Marcinho VP, que concordou em dar entrevistas à imprensa, foi personagem do livro Abusado, do repórter Caco Barcelos, e por causa de sua superexposição foi preso.


No último bloco do programa, Percival observou que a responsabilidade social do jornalista é muito grande porque a população está pedindo ajuda à mídia – mas que se deve pensar antes de tudo na segurança pessoal e na família. Paulo Nogueira ressaltou a importância da participação das empresas jornalísticas no fornecimento do material de segurança para que o jornalista possa exercer sua atividade. E Freeland disse que os sindicatos de jornalistas podem ser uma boa solução para que o profissional discuta suas dificuldades de maneira sincera. Mas chamou atenção para a forma banal com que, por vezes, a mídia trata a morte. (K.C. com Luiz Egypto)


***


Os novos correspondentes de guerra


Alberto Dines


[Editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 414, exibido em 24/4/2007]  


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa. Alguém ainda lembra que exatamente há uma semana, o bairro do Catumbi, no Rio de Janeiro, era palco de uma batalha campal entre traficantes e policiais? Quando se está numa guerra, poucos lembram das batalhas isoladas. Morreram 13 criminosos e três populares foram feridos por balas perdidas.


Hoje a mídia está envolvida em outra batalha: a punição dos magistrados envolvidos no escândalo das máquinas caça-níqueis e bingos. Na verdade, o que aconteceu na semana passada – e o que está acontecendo agora – mostra muito claramente que, embora as batalhas sejam diferentes, a guerra e o inimigo são exatamente os mesmos: o crime organizado.


Os repórteres que estão acompanhando a batalha jurídica para enquadrar os magistrados corruptos estão protegidos, não correm risco de morrer. Mas os repórteres que acompanham as ações policiais contra o narcotráfico transformaram-se em correspondentes de guerra.


Linha de frente


O telespectador, confortavelmente instalado em sua casa, às vezes ouve alguns tiros nos telejornais mas não percebe que está assistindo à dramática transformação do jornalismo de cidade em jornalismo de guerra. Quando se ouve falar em tráfico de influência para livrar delinqüentes, é preciso ter em mente que o tráfico de influência não é tão inofensivo como se imagina. Ele começa com um abraço e uma propina e termina com uma rajada de metralhadora.


Esta edição do Observatório da Imprensa vai mostrar o que significa estar na linha de frente contra o crime organizado.