O jornalão argentino La Nación, um dos dois maiores diários do país (o outro é o Clarín), estreou em agosto passado um novo caderno cultural – o ‘ADNcultura‘ –, entendido ADN como a sigla em espanhol para DNA (ácido desoxirribonucléico, a macromolécula que contém e transfere características genéticas nos organismos vivos).
Não será exagero considerar a cultura como elemento fundamental do DNA deste tradicional diário, fundado em 4 de janeiro de 1870 pelo general Bartolomeu Mitre (1821-1906), comandante das forças aliadas na Guerra da Tríplice Aliança e depois presidente da Argentina. Misto de militar, jornalista e biógrafo, Mitre foi o tradutor para o espanhol do poema épico Eneida, de Virgílio. Natural que incutisse no jornal que acabara de criar o melhor de suas pretensões culturais.
Como escreveu José Claudio Escribano no artigo ‘A identidade cultural de La Nación‘ (9/8/2007, em espanhol), nas páginas do jornal e nas tertúlias da Redação se podiam perceber ‘indícios de que às vezes só as leis da biologia venciam aqueles debatedores de argumentos robustos, vagamente irônicos e levemente descrentes da Argentina do século 19, mas também filhos dos que na primeira parte do século 20 conformariam uma civilização menos comprometida com as bondades do fitness e muito mais com os prazeres da conversação e da arte da polêmica’.
Artistas e intelectuais sempre tiveram espaço no jornal, tanto como colaboradores como em cargos de direção. Em 1893, para ficar num primeiro exemplo, o poeta nicaragüense Ruben Darío (1867-1916) – ícone do modernismo literário em língua espanhola – foi convidado a integrar-se à equipe fixa do jornal e ali publicou peças memoráveis. Ao referir-se a uma cabeça do poeta entalhada em madeira, obra de 1927 que durante anos esteve exposta na sala dos editorialistas do jornal, Escribano afirma que ‘dirigir a vista a essa cabeça é como olhar um totem que, sem pronunciar palavra, fala de acertos e erros. Hoje parece animada a recordar a consistência que as questões culturais alcançaram em todos os momentos da história de La Nación‘.
Aos sábados
Embora constitutivo de sua alma, a cultura era um elemento disperso nas páginas do jornal. Um primeiro esforço de sistematização deu-se em setembro de 1902, quando La Nación lançou um ‘Suplemento Ilustrado’, semanal, que privilegiava fotografias, cuja tecnologia de impressão era então uma novidade na imprensa diária. A consolidação editorial do tema cultura deu-se apenas em março de 1920, na forma de um ‘Suplemento Cultural’ que circulava aos domingos. Ali escreveram regularmente José Martí, Ernesto Renan, Edmundo de Amicis, Remy de Gourmont, Max Nordau, Juan Valera, Ramón del Valle-Inclán e Émile Zola; mais os argentinos Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Adolfo Bioy Casares e Ernesto Sabato; além dos ‘estrangeiros’ Waldo Frank, Ernest Hemingway, Luigi Pirandello, Stefan Zweig, Alfonso Reyes, Juan Carlos Onetti, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Jorge Edwards, Alfredo Bryce Echenique – para ficar apenas em alguns dos citados no artigo de José Claudio Escribano.
Também pontificaram no suplemento Anatole France, Ludovic Halévy, Victorien Sardou, Pierre Louys, Catulle Mendès, Marcel Prévost, Francis Jammes e Camille Saint-Saëns. Entre os espanhóis, destaque para Miguel de Unamuno e José Ortega y Gasset. Os russos Leon Tolstoi e Maximo Gorki e os britânicos H. G. Wells, Rudyard Kipling, George Bernard Shaw, Hilaire Belloc e G. K. Chesterton publicaram textos ali. Sem falar de Gabriela Mistral, Vicente Huidobro, Pablo Neruda e Mario Vargas Llosa, além dos numerosos escritores, poetas e artistas argentinos que freqüentaram aquelas páginas.
Esta preocupação com a qualidade – e sobretudo com o bom texto – permaneceu no DNA do La Nación e agora manifesta-se na nova versão do antigo ‘Suplemento Cultural’, rebatizado de ‘ADNcultura’. ‘Nada mais democrático que um bom texto. Todos somos autores’, escreve Escribano. ‘Quando Vuelta, a revista que o teve como diretor, completou vinte anos de existência, Octavio Paz, prêmio Nobel de Literatura em 1990, lembrou que `um bom leitor é autor da obra que lê. A leitura revive, literalmente, a obra; e ela, em cada uma de suas ressurreições, é outra e simultaneamente a mesma´.’
‘ADNcultura’ circula aos sábados, e não mais aos domingos, como seu antecessor. Isto porque, neste novo século, hoje os sábados são os domingos de ontem. Tempus fugit.