Fidel Castro e Cuba dominaram os jornalões de domingo (20/1). Como os grandes veículos estavam representados na comitiva do presidente Lula a Havana na semana passada, e como domingo era o dia da renovação da Assembléia Nacional cubana, alguns profissionais, além de cobrir o encontro de presidentes, aproveitaram a viagem – que não é barata – para cobrir o outro fato.
Mas quem deu um show de competência jornalística foi a Folha de S.Paulo com a reportagem de Letícia Sander [ver abaixo] sobre os dois boxeadores repatriados para Cuba durante os Jogos Pan-Americanos no Rio, em julho passado. A repórter localizou os pugilistas, entrevistou-os e produziu um texto sóbrio, pungente, arrasador sobre o terrível castigo imposto aos dois quase-desertores: não fazem nada o dia inteiro. Não podem treinar, não podem lutar, só podem fazer exercícios na rua para não ganhar peso.
O estranho repatriamento dos pugilistas num avião venezuelano e a promessa de que não sofreriam represálias deixou o governo brasileiro muito mal na ocasião. Agora, diante da dolorosa revelação da Folha, o governo Lula fica ainda em pior situação: é cúmplice deste novo gulag imposto a dois jovens atletas impedidos de exercer o direito de escolher onde e como querem viver.
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Pugilistas cubanos estão há seis meses fora dos ringues
Letícia Sander # copyright Folha de S.Paulo, 20/1/2008
É manhã de quarta-feira em Havana, capital de Cuba, e Guillermo Rigondeaux Ortiz está em casa no bairro de Altahavana com a mulher, o filho e a mãe. Um dos melhores boxeadores do mundo não faz nada de especial. Acabara de se despedir de Erislandy Lara Zantaya, também pugilista e companheiro de tardes desocupadas. Os dois acabam de completar seis meses afastados dos ringues, sem trabalho, numa rotina sem sobressaltos, que se resume à espera e indefinição.
Rigondeaux, 27 anos, bicampeão olímpico dos pesos-galo (até 54 kg), e Lara, 24 anos, campeão mundial dos meio-médios (até 69 kg), estão proibidos de treinar com a equipe nacional de pugilistas cubanos, são evitados pelos antigos colegas e até hoje aguardam uma definição sobre o futuro, sem sinais da cúpula do regime que antes os badalavam.
‘É uma tortura psicológica’, define Farah, 31, cubana que, também sem trabalho, compartilha a angústia do marido, Rigondeaux. ‘Ele não estava acostumado a não fazer nada. Se sente muito mal’, disse ela à Folha na quarta passada.
A saga dos dois começou em julho do ano passado, quando abandonaram a seleção cubana durante os jogos Pan-Americanos no Rio, foram repatriados depois de alguns dias no Brasil e acabaram acusados por Fidel Castro de terem tentado se vender ao profissionalismo por um punhado de dólares.
Eles dizem que não foi isso que aconteceu. Seis meses depois do ocorrido, diante da família e com esperanças de serem perdoados e voltarem a treinar, os dois ainda se referem à experiência no Rio sem muita disposição em esclarecer. E poupam o governo de críticas, talvez evitando dificultar ainda mais as coisas.
Questionados se tentaram fugir do regime comunista e ficar no Brasil, eles dizem que não. Foram ameaçados? ‘Não’, dizem. Familiares sofreram pressão? ‘Também não’, repetem. Então o que os fez abandonar o Pan-Americano e passar mais de dez dias sumidos no Rio? ‘Foi uma indisciplina’, responde Rigondeaux, sentado em uma poltrona vermelha na sala de menos de 30 metros quadrados da casa em que mora com a família em Havana.
Tido até há pouco como herói nacional cubano, ele recebe a Folha de bermuda jeans, camiseta preta, chinelos e boné. De estatura baixa, magro e quieto, sua imagem à primeira vista não remete a de um campeão do pugilismo, não fossem as obturações de ouro nos dentes da frente e as mais de cem medalhas e 20 troféus espalhadas pela estante e paredes da sala. Ele desconversa sobre os dias no Rio e repetidas vezes menciona que nunca cogitou deixar Cuba. ‘Já viajei muitas vezes, nunca tentei nada disso’, diz, apontando para as paredes que comprovam vitórias em lugares como Venezuela, França, Rússia, Austrália, Tailândia, Grécia e Reino Unido.
Sem trabalhar desde que voltou a Cuba, Rigondeaux só tem hoje um compromisso fixo diário, a corrida de cerca de duas horas que faz pela manhã, disciplina de quem precisa manter os 54 quilos da categoria galo e não quer desistir do esporte, mesmo há tanto tempo sem treinar e dependente de um perdão para voltar a fazê-lo. Após a revolução de 1959, a prática profissional do boxe foi abolida em Cuba.
Longe do guarda-chuva do Estado, o pugilismo inexiste em Cuba e convites aceitos por atletas para deixarem o país são tidos como uma traição ao regime. Durante muito tempo, principalmente quando a ilha era cliente da antiga União Soviética, o boxe cubano não viveu grandes desafios para manter os seus atletas no país.
Teofilo Stevenson tornou-se um lendário peso-pesado cubano não só pelas vitórias, mas também por ter rejeitado propostas milionárias para que se tornasse profissional e fosse embora de Cuba. Virou ídolo do regime.
Mas a realidade mudou. Nos últimos anos, cerca de 150 desportistas cubanos aproveitaram as competições no exterior para fugir. Um exemplo do temor castrista: diante da possibilidade de novas deserções após o episódio do Pan, Cuba proibiu que sua equipe nacional fosse a Chicago participar do Mundial de boxe, em outubro. Nesta mesma competição, Yuriorkis Gamboa, desertor do país caribenho que desenvolve a carreira na Europa, embolsou entre US$ 10 mil e US$ 15 mil.
Rigondeaux nega fazer parte desta turma, mas na conversa com a sua família fica clara a insatisfação com o tratamento reservado pelo regime a um atleta que define ele mesmo como ‘o melhor do mundo’.
‘Protestar? Para quem? Temos que nos acostumar… Se protestar, há problema’, diz Farah, diante do silêncio do marido, e apontando para a carcomida pintura das paredes da casa.
Mesmo sem um passado glamouroso em Cuba, tudo o que Rigondeaux deseja hoje é recuperá-lo. Antes do Pan, ele permitia à família uma vida sem luxos, mas tranqüila na ilha.
O governo lhe cedeu uma casa modesta de três quartos em área residencial de Havana, a cerca de meia hora do centro de treinamento de boxe.
O salário, diz ele, chegava a 450 pesos cubanos mensais (cerca de US$ 20). Pouco, muito pouco, mas dentro da média cubana para médicos, por exemplo. E havia a promessa de em breve começar a ganhar um extra de US$ 300, uma espécie de prêmio por já ter sido duas vezes campeão olímpico.
Todas as sextas, buscava uma espécie de cesta básica, com arroz, feijão, carne, galinha e outros itens, também proporcionados pelo Estado. Em Cuba, saúde e educação são gratuitas.
Rigondeaux continua morando na mesma casa e recebendo mensalmente os 450 pesos cubanos. Mas não há sinal da gratificação em dólar e o que o preocupa é até quando a situação vai perdurar. ‘Na prática, não temos casa. Guillermo é bicampeão e não tem uma casa’, reclama Farah.
A semana é especialmente difícil para Rigondeaux e Lara. Enquanto eles esperam o tempo passar em Havana, os demais pugilistas cubanos estão na província de Holguín para o Torneio Nacional Playa Girón, um dos mais importantes de Cuba e tido como teste para os atletas, às vésperas das Olimpíadas de Pequim.
‘Estou assim [faz sinal de braços cruzados]’, afirma Rigondeaux, num dos raros momentos da conversa em que demonstra irritação.
Rigondeaux não tem o mesmo estilo de Lara, que, também sem trabalho, passa as horas em Havana circulando sobre uma moto com adesivo da coelhinha símbolo da Playboy, usa jeans e camisetas apertadas e duas argolas douradas nas orelhas. Lara mora com a mulher, Miriam, e dois filhos na casa da mãe da sogra, uma modesta residência de dois pisos, dividida por tios, primos, e outros familiares. Acorda às 5h todos os dias para correr, fala ainda menos que Rigondeaux e também continua recebendo seus 450 pesos cubanos e a cota de comida, mesmo sem treinar.
‘Ser campeão olímpico é a meta de Lara. Se não puder fazer isso, acredito que terá um infarto’, diz Miriam, que estava grávida quando os boatos sobre a deserção do marido chegaram à sua casa. Segundo ela, Rigondeaux e Lara ficaram por três dias numa espécie de casa de hospedagem do governo de Cuba assim que voltaram do Rio. Conversaram com autoridades, negaram a ambição de desertar e reafirmaram o desejo de ficar e lutar em Cuba. Foram então, para casa – Lara, Miriam e o pequeno Roberlandy, de 2 meses.
Enquanto os atletas estavam no Rio, familiares de Rigondeaux e de Lara foram procurados repetidas vezes por autoridades. Negam que tenham sido pressionados, mas não escondem a apreensão que viveram.
Rigondeaux se despediu da Folha pouco depois de mostrar com orgulho fotos do filho – Guillermo, cinco anos –, com os punhos cerrados tal qual um boxeador. ‘Será um novo campeão?’, pergunta a reportagem. ‘Se eles [o regime] deixarem…’, responde Rigondeaux, em momento franco de reação ao seu exílio em casa, agravado pela falta da possibilidade de recomeçar que os exilados possuem.