Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ano novo com cara de velho [final]

Primeiro foram os 20 milhões que ascenderam à classe C nos últimos cinco anos. Agora são ’60 mil novos milionários em apenas um ano’. A mitologia dos números criou mais dois factóides.


A primeira manchete foi trombeteada pela Folha de S.Paulo em 16/12/2007, na primeira página (‘Crescimento tira 20 milhões da classe D/E’). O presidente Lula chegou a citar a estatística em algumas falas do fim do ano. Acreditou na imprensa, é um avanço.


A situação é verdadeira, os fundamentos da economia e os programas sociais chegaram à base da pirâmide. Mas a fonte da euforia não foi um estudo do IBGE, IPEA, Ministério do Planejamento ou alguma universidade. A cifra foi fornecida pelo Datafolha, um dos mais importantes institutos de pesquisa de opinião do país e cuja especialidade é sondar as preferências da sociedade.


Ao comparar amostragens e sondagens dos últimos cinco anos, o Datafolha chegou àquela conclusão que eventualmente será correta – ou até subavaliada – mas a conclusão não constitui um dado estatístico stricto sensu. É estimativa. Ou se preferirmos classificação mais drástica, um chute.


A reportagem da Folha baseou-se em cálculos do Datafolha reforçados por uma consultoria (MB-Associados, empresa privada, isto é, a serviço do mercado), pelo ex-deputado Delfim Netto (notoriamente oficialesco) e pelas histórias de sucesso pessoal de Cleber, César, Susi e Silvio, ‘exemplos de quem melhorou de vida neste ano’ (sic). O diretor-geral do Datafolha, Mauro Paulino, reputado especialista, dá suporte à reportagem com informações sobre os critérios utilizados a partir de um modelo da ABEP (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, entidade privada e cujo nome reclama um complemento – pesquisa de quê?).


Quatro perguntas


Já a extraordinária constatação de que no último ano o país ganhou 60 mil novos milionários também foi trombeteada num domingão em manchete de primeira página, pouco menos de um mês depois, no último fim de semana (13/1/2008). Ainda não repercutiu, provavelmente por falta de tempo e porque gabar-se deste significativo acréscimo no número de milionários pode reforçar a noção de que o país é campeão da concentração de renda e disparidade social.


Apesar do destaque, não se trata de um furo da Folha, mas de uma suíte de matéria do jornal Valor (9/12/08, pág. B-20): ‘Onda de IPOs cria geração de bilionários no país’ (IPOs são ofertas públicas iniciais de ações). Mais densa, menor, menos destacada, apesar de falar em ‘bilionários’ não arrisca na quantificação dos novos nababos. Convém reparar que na matéria de Valor fazem-se restrições – ‘nem tudo são flores no mercado acionário’, conclui.


A manchete-estatística da Folha baseou-se num levantamento do BCG (The Boston Consulting Group) para quem ‘milionários são aqueles que têm mais de um milhão de dólares aplicados no mercado financeiro’. O diretor da BCG no Brasil, André Xavier, diz que para identificá-los ‘especialistas entrevistaram gestores de fortunas de 111 instituições financeiras em 60 países, foi a primeira vez que uma equipe veio pessoalmente ao Brasil para fazer o levantamento’.


De novo estamos diante de um conjunto de maravilhosas pseudo-evidências e uma montanha de perguntas inconvenientes. Pequena amostra, no nível do não-especialista:


1. Um milhão de dólares aplicados em que prazo – quinze dias, um mês, um ano?


2. Estas aplicações foram feitas no mercado nacional ou internacional?


3. A equipe internacional do BCG levou em conta o fenômeno ‘laranja’ (o mesmo milhão rolando em diversas contas)?


4. Uma empresa do mercado financeiro, naturalmente interessada em criar um clima de euforia, seria a mais credenciada para fornecer um dado desta importância? O Banco Central, COAF, Receita Federal e FGV não seriam instituições mais credenciadas para oferecer um quadro confiável sobre a nossa extraordinária facilidade em fabricar ricaços?


Endorfina globalizada


Os dois exemplos, embora escolhidos de edições recentes da Folha, não excluem os demais jornalões nacionais e regionais empenhados em explorar o novo culto das estatísticas e da numerologia. Se é número é bom, esta é a palavra de ordem em nossas Redações. Mesmo que o número seja isolado, fortuito e não faça qualquer sentido.


É evidente que as duas façanhas estatísticas não devem ser atribuídas a algum desejo de agradar aos círculos oficiais. O atual governo não é o que se poderia chamar de ‘namoradinho da mídia’, nem a Folha entraria numa jogada dessas.


Estas injeções de entusiasmo fazem parte de uma cruzada mundial envolvendo jornais e revistas em favor do otimismo; recessão é um fenômeno com diferentes origens, sendo que a psicológica não é para desprezar. A mídia está apostando no ganho fácil. Por essas e outras é difícil vender a noção de crescimento sustentável.


Nos seminários internacionais de mídia, os gurus agora recomendam liberar o público das aflições – bastam as catástrofes naturais, inevitáveis. O raciocínio dos sábios consultores: gente angustiada não quer abrir jornal nem acompanhar os noticiários de TV. É preciso liberar energias e isso só se consegue com surtos de euforia.


A mídia americana não soube antecipar-se ao crash imobiliário do ano passado pelas mesmas razões – preferiu encarar a bolha positivamente. Deu no que deu.


O lado ruim desta endorfina globalizada é que ela inverte tudo: a mídia especializou-se em criar ondas, desligou o desconfiômetro e quem se obriga ao ceticismo é a opinião pública. Deveria ser o contrário.


 


Obamamania vs. Clintonfobia


Jornalistas e intelectuais brasileiros não se empolgaram muito com a campanha eleitoral americana de 2000 quando se enfrentaram Al Gore (vice de Clinton) e G. W. Bush. ‘Farinha do mesmo saco, tudo a mesma coisa’, diziam os formadores de opinião.


Não poderiam influir, evidentemente, mas poderiam motivar-se e motivar seus leitores a acompanhar com mais atenção uma das mais concentradas e visíveis débâcles dos últimos 200 anos. Antes mesmo do 11 de Setembro, na realidade durante a incrível contagem dos votos, ficou evidente que os EUA mergulhariam numa terrível crise moral.


Oito anos depois, o vento virou na direção oposta com o aparecimento de duas surpreendentes candidaturas dentro do Partido Democrata, com enormes chances de derrotar qualquer candidato republicano: uma mulher e um afrodescendente, ambos senadores (Hillary Clinton e Barack Obama).


Acontece que se antes havia apatia, agora há precipitação. A torcida aqui começou antes mesmo do caucus do Iowa. E o escolhido para o oba-oba foi Obama. Compreende-se: o rapaz tem uma biografia fascinante, originalíssima, enorme talento, carisma, firmeza. Mas, como escreveu Gloria Steinem, o preconceito contra a mulher nos EUA é mais arraigado do que contra os negros. E não apenas na esfera política [ver ‘Bella Hillary‘, Estado de S.Paulo (10/1/2008)].


Uma cobertura facciosa, torcida, pode tirar desta disputa alguns dos seus aspectos mais eloqüentes. Mesmo emasculada pelo autoritarismo de Bush, a democracia americana conseguiu produzir duas esplêndidas alternativas e que só a engrandecem.


Show democrático


Tony Blair e Gordon Brown, na disputa pela liderança trabalhista na Inglaterra, quase não se diferenciaram. Nem se diferenciam hoje. A substituição de Jacques Chirac, na França, não ofereceu aos espectadores do exterior a mesma vibração: Sègolène Royal não conseguiu representar o renascimento do socialismo democrático francês e Nicolas Sarkozy mostra a sua real estatura.


A compulsão partisan, partidária, da intelectualidade brasileira (nela compreendidos os jornalistas) pode retirar da disputa dentro do Partido Democrata americano os seus aspectos mais fascinantes.


Obama ou Hillary, um dos dois está condenado a sobrar. Enquanto isso não acontece deveríamos aproveitar todos os lances deste show democrático e apreciar integralmente o aparente renascimento de uma sociedade condenada à mediocrização.


 


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