Alguns meses atrás, em outubro de 2007, o governo deu um pequeno susto nas emissoras de televisão. Venceu o prazo de concessão de diversas outorgas de canais, incluindo os das grandes redes – Globo, Record, SBT e Bandeirantes –, e a Casa Civil da Presidência da República foi encarregada de coordenar o processo de renovação. Pela tradição, esse processo seria conduzido pelo Ministério das Comunicações e obedeceria a uma rotina meramente burocrática, sem causar qualquer problema às empresas concessionárias, muito menos algum risco delas perderem alguma outorga. No entanto, certamente por conta das pressões da sociedade por uma nova forma de tratar esse assunto, a Casa Civil recebeu a atribuição e decidiu endurecer com as emissoras, apresentando exigências inéditas para considerar a renovação.
O que pediu a Casa Civil de tão inédito e de tão assustador? Simplesmente que as emissoras demonstrassem, à luz do que é disposto na Constituição Federal e na legislação ordinária, se cumpriram aquilo que se esperava delas, durante o período de concessão vencido. Sua programação atendeu, prioritariamente, a finalidades educativo-culturais? Incentivou-se a produção independente? Houve fomento à programação regional? Respeitaram-se os valores éticos e sociais da pessoa e da família? Alguma emissora monopolizou o mercado ou algum grupo delas formou oligopólio? As emissoras respeitaram o percentual máximo de publicidade (25% do tempo total da grade)? Respeitaram o percentual mínimo de jornalismo (5%)? A Casa Civil pediu informações sobre tudo isso e mais: exigiu provas, documentação.
Previsivelmente, houve um grande espanto quando as exigências foram apresentadas. As emissoras de TV brasileiras não estão acostumadas a dar satisfações ao governo sobre o que fazem, nem mesmo quando o assunto é a concessão pública que receberam. Tanto assim que é usual as outorgas expirarem e as emissoras seguirem operando normalmente, às vezes por anos, antes de regularizar a sua situação jurídica. Na verdade, o prazo de concessão sempre foi uma mera formalidade, porque jamais algum empresário do ramo ou gestor governamental considerou, por um segundo que fosse, a hipótese de uma outorga não ser renovada. Uma vez ganha, outorga de radiodifusão é patrimônio perpétuo, no Brasil.
De modo que, quando apareceu, de repente, um órgão de governo fazendo perguntas e pedindo documentos para renovar concessões, obviamente isso causou desconforto e preocupação. Com apoio do ‘seu’ ministério, o das Comunicações, as emissoras alegaram que não tinham condições de reunir e apresentar a tempo uma documentação tão vasta, cobrindo um período de concessão de 15 anos. E passaram a aplicar a conhecida tática protelatória, que adotam sempre que alguma determinação legal surge para incomodá-las.
Regras… cumpridas!
A tática venceu, mais uma vez. Na semana passada, segundo informa o boletim Tela Viva News, o governo chegou a um acordo interno sobre a renovação das concessões. O Ministério das Comunicações ponderou que não era possível cobrar das emissoras o respeito às exigências constitucionais, uma vez que elas não foram regulamentadas em lei, e a Casa Civil acatou o argumento. No acordo fechado, ‘as emissoras se comprometem a declarar (mas não provar) que cumpriram os princípios da Constituição e comprovarão que suas programações atendem aos percentuais exigidos pela regulamentação, por meio de suas grades diárias atuais’, diz o repórter Samuel Possebon, ‘Com isso, o processo pode ir ao Congresso, onde, se houver questionamentos, mais informações podem ser exigidas pelos parlamentares’.
É o famoso ‘jeitinho’ em ação no país das leis relativas, as que ‘pegam’ e as que ‘não pegam’, sem contar as que jamais pegarão porque sequer serão regulamentadas. As emissoras terão apenas de declarar – e não comprovar – que cumpriram as obrigações constitucionais, porque estas não estão regulamentadas em lei ordinária. Não estão, todos sabemos, porque a radiodifusão e os parlamentares a seu serviço impedem, obstinadamente, a aprovação da Lei Jandira Feghali, que justamente regularia o artigo 221 da Constituição, instituindo os percentuais legais de produção independente e programação regional nas grades de TV. Mas isso, é claro, não vem ao caso. As emissoras também não terão o incômodo de provar que, ao longo de 15 anos, cumpriram o restante da legislação de radiodifusão. Basta que a sua grade atual esteja ajustada ao que a lei determina.
Se essas são as regras, as emissoras seguramente declararão que cumpriram, sim, os dispositivos constitucionais, mesmo não regulamentados, e que obedecem piamente à legislação ordinária de radiodifusão. Não é razoável imaginar que dirão outra coisa. Assim sendo, fiquem informados os cidadãos da República Federativa do Brasil: as emissoras de TV, ao montarem a sua programação, dão preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promovem a cultura nacional e regional; estimulam a produção independente; regionalizam a produção cultural, artística e jornalística; respeitam os valores éticos e sociais da pessoa e da família; não praticam monopólio nem oligopólio; etc. etc. etc. Elas declaram isso, o Poder Executivo endossa e o Legislativo que tenha outro entendimento, se quiser, para deliberar sobre a renovação das outorgas.
Força e convicção
Não é uma beleza ser concessionário de um serviço público nessas condições? O sujeito ganha a concessão, faz com o ela o que quer por 15 anos, não presta contas e ganha fácil a renovação por outros 15 anos. Maravilha. Mas vamos conter a ironia que essa situação inevitavelmente inspira em quem não participa da festa. Vamos considerar que, a despeito da pizza saída do forno governamental, desta vez houve algum avanço, bem ou mal. A Casa Civil ao menos lembrou ao país que os concessionários de radiodifusão têm satisfações a dar, sobre as outorgas que recebem. E eles não tiveram como dizer que também isso é ‘censura’, como dizem de tudo que se faz para colocar a TV sob controle democrático da sociedade.
Olhemos para o futuro. O Congresso Nacional vai apreciar as renovações com essas regras definidas pelo Executivo? Muito bem: o país que discuta naquele foro, o centro do poder cidadão, se as emissoras estão quites ou não com seus deveres constitucionais e legais. A cidadania que pressione os parlamentares para regulamentarem tudo que está pendente na legislação de comunicações. Que estabeleça as regras para a vigência do próximo período de concessão. E que exija transparência na prestação de contas, desde o primeiro dia, para que daqui a 15 anos não se pretexte que é muito documento para reunir.
É facilmente demonstrável que as emissoras estão em débito com aquilo que declaram estar quites. A programação regional nas redes comerciais limita-se a um mínimo de jornalismo e algumas outras atrações, raríssimas, perdidas nas madrugadas, manhãs ou tardes, jamais no horário nobre. A produção independente não é parceira regular de emissora alguma. Não existe qualquer preferência à finalidade educativo-cultural na programação, salvo nas emissoras públicas. Há áreas de conteúdo, como a programação esportiva, que estão totalmente monopolizadas, a ponto de uma grande rede comprar os direitos de transmissão de campeonatos não para exibi-los, mas apenas para impedir que a concorrência o faça. Enfim, a legislação é amplamente desconsiderada.
Se a cidadania quer alterar esse quadro, cabe a ela mobilizar-se. A radiodifusão e o governo não farão isso de moto-próprio. A primeira não tem interesse e o segundo não quer encrenca com quem fala ao grande público, com quem influencia o eleitorado. Ambos tendem a acertar-se discretamente, a resolver todos os problemas longe dos olhos da multidão. Também do Legislativo não se deve esperar grande coisa, enquanto os seus líderes forem, todos eles, radiodifusores ou aliados desse setor.
Restam, apenas, os cidadãos, sua convicção e sua força. Se conseguirem se articular, se mantiverem o governo e o Congresso sob pressão permanente, as coisas acabarão por mudar. Pode levar outros 15 anos, mas mudarão.
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Jornalista