Há coisas, na política e na imprensa, que chamam a atenção pelo caráter um tanto surreal. Há quem diga que se trata não de surrealismo, mas de parcialidade ou ausência completa de objetividade. Mas prefiro crer que os jornalistas e colunistas envolvidos no fato que vou narrar não sejam desonestos, nem estejam maculando premeditadamente as regras sagradas do jornalismo. Tendo à estupefação, não à acusação.
Pois bem, vamos aos fatos.
A Secretaria de Educação do Paraná comprou, no final de 2006, por licitação, mais de vinte mil aparelhos de televisão para serem instalados nas salas de aulas de suas escolas. São televisores de 29′, tela plana, com algumas especificidades: entrada USB para leitura de pen drive e de cartão de memória, capacidade de projetar imagens congeladas sem distorção, dispositivos de segurança etc. A proposta é que os professores possam gravar aulas em forma de filmes, slides, aproveitando imagens coletadas na internet etc. Para isso, os mestres recebem, cada um, um pen drive. Outros governos também estão tomando a mesma iniciativa.
Os aparelhos foram comprados a R$ 860,00 a unidade. Na época, houve um grande questionamento acerca do preço, alegava-se que havia no mercado aparelhos mais baratos.
Licitação questionada
Apurei, após consulta, que as empresas que vendem esse tipo de produto não possuíam em estoque semelhante aparelho. Tive o cuidado de ir a uma dúzia de lojas – pois se dizia que em qualquer uma se achariam televisores mais em conta – e telefonar para algumas empresas. Os preços fornecidos variaram de R$ 1.250,00 a R$ 1.500,00, por conta do custo da adaptação do aparelho, diziam os vendedores. Nas lojas, o televisor mais barato de 29′ e tela plana que encontrei custava algo em torno de R$900,00, sem as tecnologias citadas. Não possuo mais a documentação das consultas, mas o preço nas lojas pode ser verificado nos jornais da época. A garantia oferecida era sempre a tradicional, de um ano.
Então, não parece ter havido superfaturamento, pelo menos levando em conta os argumentos dos que questionavam o negócio. Minha apuração forneceu esse indício. Qualquer um poderia ter apurado isso e tenho certeza de que muitos jornalistas e políticos o fizeram.
Houve também o questionamento sobre a licitação. Ocorre que a empresa que vendeu os aparelhos foi uma das principais contribuintes para a campanha de reeleição do atual governador. Ninguém, porém, conseguiu consubstanciar a acusação de favorecimento. Nada ainda foi provado e, nunca é demais lembrar que, financiadora de campanha ou não, a tal empresa vendeu por um preço baixo o televisor.
Denúncia furada
Tudo indica que foi um bom negócio, realizado há pouco mais de um ano, mas foi fechado por um governo com uma empresa que o apoiou na campanha. A oposição se assanhou e, desde então, vem tentando descobrir algum indício de irregularidade. Como já foi dito, ninguém foi capaz disso até o momento. No entanto, bem que se tenta, ainda que de forma atabalhoada.
Há aproximadamente um mês, quase um ano após a compra, um deputado, líder da oposição, vai à internet e consegue comprar um aparelho semelhante por um preço menor: R$749,00. Isso levou os oposicionistas, incluindo alguns jornais e jornalistas, à loucura: estaria provado o superfaturamento.
Novamente fui apurar os fatos. Acessei o mesmo sítio de vendas no qual foi comprada a televisão e constatei o menor preço. No entanto, me chamou a atenção a garantia oferecida: a tradicional, de um ano. O governo havia, pouco antes, explicado que a garantia oferecida para seus televisores era de três anos. Verifiquei o quanto isso alteraria o preço: de R$749,00, saltava para R$1.030,70. Recorri também a anúncios de televisores de tela plana de 29′: em dezembro de 2007, já se conseguia comprar um aparelho desses, simples, sem os acessórios tecnológicos dos televisores comprados pelo governo, por pouco mais de R$600,00, os mesmos que custavam R$900,00 um ano antes. Uma desvalorização de algo em torno de 30%, que atinge todos os aparelhos eletrônicos. Se tomarmos o preço de R$1.030,70 e aplicarmos esse percentual de desvalorização desses produtos, teremos o preço de R$1.339,91, que está na faixa do encontrado em minha apuração de um ano atrás.
Qualquer um poderia ter se dado a esse trabalho básico de apurar o fato e, novamente, tenho certeza de que muitos políticos e jornalistas o fizeram. Uma matéria do jornal O Estado do Paraná, publicada no dia 18 de dezembro, corrobora esta minha convicção. Lá está escrito: ‘O líder da oposição sustentou que seu aparelho também tem três anos de garantia. Mas uma consulta ao site feita por O Estado mostrou que o valor de R$ 749 garante o produto por um ano. Ao ampliar o prazo para três anos, o preço do produto é alterado para o valor apontado pelo líder do governo (R$1.030,70).’ O jornalista apurou e constatou o fato que mostra que é difícil levar a sério uma denúncia posta nestes termos. Parabéns a ele, ou a ela. Fez bem o seu trabalho.
O leitor não é bobo
Causa estupefação o fato de que o mesmo jornal cujo jornalista apurou a improcedência da denúncia afirma, desde então, diariamente, em sua coluna política, que o deputado haveria comprado uma TV mais barata, o que comprovaria o superfaturamento, sem qualquer dado novo além do fornecido pela denúncia manca. Surrealismo, puro delírio ou a má-fé contida na expectativa de que uma mentira, repetida várias vezes, se torne verdade?
Apurar um fato é simples. Nem sempre é fácil, mas o princípio é simples: há que se checar a procedência de uma afirmação, uma denúncia ou uma explicação para um determinado acontecimento. O jornalista do Estado do Paraná apurou e publicou o resultado de sua apuração. Aparentemente, o colunista político não leu o próprio jornal e não apurou nada. Se fosse somente ele a agir assim, tudo bem, mas há outros, de renome na imprensa local, que demonstram o mesmo proceder.
Alguns leitores podem ser bobos, mas não todos. Tratar um fato como o exposto acima da forma tosca como vem sendo feito, é algo que não pode ser levado muito a sério. Parece uma negação delirante da realidade, como a do deputado que afirmou que a TV que comprara tinha a tal garantia de três anos, fato desmentido pela matéria do Estado do Paraná e por qualquer um que apurasse a notícia.
Transgressão da verdade
A imprensa tem um papel fundamental no regime democrático. Serve para que o cidadão fiscalize o poder público. Repercutir denúncias é fundamental. No entanto, há que se considerar, em primeiro lugar, os fatos. Suspeitas devem ser tratadas como suspeitas, não como verdades comprovadas e, quando desmentidas, devem ser tratadas como inverdades. Inverter essa lógica é, no mínimo, surrealismo.
Consultando o dicionário do mestre Antônio Houaiss, constato que surreal é algo que ‘denota estranheza, transgressão da verdade sensível, da razão, ou que pertence ao domínio do sonho, da imaginação, do absurdo’. Ora, haverá melhor explicação para a transgressão da verdade do que negar os fatos? Pode haver, sim. Mas nos remeteria à ‘ação maldosa, conscientemente praticada; deslealdade, fraude, perfídia’, ou seja, segundo o mesmo Houaiss, à má-fé. No entanto, prefiro a hipótese surrealista. Ela admite a esperança de que, passado o surto, se restabeleça o bom senso.
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Psicólogo, jornalista e mestre em Comunicação