Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Mais poder aquisitivo e pouca qualificação cultural – 2

Não estava propenso a uma segunda versão do artigo anterior (edição 429 do OI). Minha acanhada inteligência também levou algum tempo para constatar a inutilidade em rebater textos de ‘leitor-comentarista’. A razão é simples: não se modifica a percepção de quem avalia o autor seja lá do que for; seja lá de quem seja. O ‘leitor-comentarista’ é sempre ‘adesista’: ou ele adere ao articulista, ou ele tenta ‘eliminar’ o autor. Raramente, o equilíbrio produz diálogo fértil.

Por outro lado, achei curioso que, na mesma semana em que tratara da relação entre poder aquisitivo e nível cultural, no artigo referido, encontrasse, na edição dominical de O Globo (22/4/2007), uma entrevista com o educador francês Jean Hébrard, atual inspetor-geral do Ministério da Educação da França cujo vínculo maior com o Brasil decorre do fato de ter uma filha casada com brasileiro, e residente no Brasil, o que lhe permite tanto, a despeito do sotaque, falar português, quanto haver desenvolvido certa familiaridade com os problemas da sociedade brasileira. A matéria, com o título de ‘É educação ou Exército na rua’, remete à legenda: ‘Para educador francês, ensino de má qualidade compromete a democracia brasileira’.

Uma cultura desvalorizada

Ao acompanhar a mencionada entrevista, o modesto articulista foi reconhecendo o que se denomina de ‘afinidades de estados mentais’. No limiar da entrevista, afirma Jean Hébrard:

‘Foi um erro dos anos 50 repartir o mundo entre duas escolas: a particular e a pública. Porque o que faz a democracia num país é a possibilidade de todas as crianças estarem aprendendo na mesma escola. O lugar onde se partilha uma cultura comum é absolutamente essencial numa democracia. A separação das crianças em dois mundos que não se encontram vai acabar num desastre [grifo nosso]. Temos um desafio semelhante nos Estados Unidos e na Europa: como promover uma educação que seja social, numa democracia moderna?’

Adiante, arremata o entrevistado: ‘A coisa mais importante é dar à população pobre a melhor cultura possível, e não uma cultura desvalorizada’. Tal sentença remete à seguinte constatação: ‘Minha filha se casou com um brasileiro, vive aqui. E vejo que ela está se abrasileirando porque pôs o filho na escola particular. Eu disse-lhe: você foi da escola pública na França a vida toda.’

A maquiagem e o rosto real

Hérbard toca no ponto nevrálgico da questão brasileira: a fragilidade de nossa democracia, em razão da discriminação radical situada na origem do processo, ou seja, o abismo entre dois modelos educacionais, fato que se agrava por conta do caráter degenerativo, seja na rede pública, seja na rede particular. De ambos, emerge contingente populacional em estado de penúria intelectual. Para esse quadro fantasmagórico, não se apresenta governo algum (municipal, estadual e federal) interessado efetivamente em alterá-lo. Hébrard, com o intuito de ser mais claro, afirma:

‘É preciso que a escola reaja, seja capaz de fazer uma proposta nova de cultura, que una a sociedade. Eu vejo que o Brasil não gosta de construir sua própria história. Não é o futebol que faz uma nação, é a história. E a história, na escola, foi completamente abandonada. Assim, o orgulho de ser brasileiro não tem sentido. O que é o Brasil? É um país que tem uma história muito interessante, com a colonização, a escravidão, a imigração. Não se pode deixar apenas a TV Globo mostrar uma imagem espetacular dessa história (…) Somente a escola permite a visão crítica daquilo que a TV apresenta.’ [grifo nosso]

Nas angulações críticas do entrevistado, longe de se constatar qualquer imagem preconceituosa quanto ao Brasil, colhe-se, ao contrário, um olhar esperançoso, porém, sob a contaminação da criticidade:

‘Eu sempre digo, na Europa, que o Brasil será um dos maiores países do mundo em duas gerações. Mas um país pode ser o maior para o bem ou para o mal. O Brasil precisa escolher se será um bom país. Não é somente a economia que dá papel de líder a uma nação [grifo nosso], é também a qualidade, o modelo de sociedade que vai apresentar ao mundo.’

Não se esperam adesões às afirmações de Hérbrard; aposta-se apenas na possibilidade de um exercício mais reflexivo (e menos apaixonado) a respeito dos reais desafios que a sociedade brasileira tem de enfrentar. Para tanto, em nada favorece o perfil acrítico presente em certas hostes da população brasileira, que parece anestesiada pelo fascínio diante de uma figura carismática cuja visão de país não ultrapassa os níveis do imediatismo. Há longas décadas, o Brasil é refém de programas mais preocupados com a maquiagem do que com o rosto real das pessoas.

Rasgar a fantasia

Foi interessante ler, na Folha de S. Paulo (edição de 22/04/2007), matéria referente ao patrimônio dos bicheiros e ‘bingueiros’, atualmente presos. Refiro-me à matéria ‘Anísio possui um triplex com quarto blindado no Rio’ (a matéria não é assinada; é apenas indicada como ‘da sucursal do Rio’ – fl. A-16). O que chama atenção, na referida matéria, é algo precedido pelo título ‘Piscina com beija-flor’. Reproduzo a passagem:

‘Sua cobertura triplex com ampla vista para o mar pertenceu a Roberto Marinho (1904-2003), que a usava nas festas de Réveillon. Anísio comprou-a em 2004 e a inaugurou oficialmente no último dia do ano. (…) O edifício tem um apartamento em cada um dos 13 andares. A novelista Glória Perez mora no sexto. O primeiro, onde mora uma filha de Anísio, está em nome de Fabíola Oliveira, mulher do bicheiro há 18 anos.’

Na ‘geléia geral brasileira’ (expressão inaugurada por Décio Pignatari), a reportagem sugere cruzamentos, pelo menos, insólitos. Enfim, esse parece o destino de um enredo novelístico, típico de um certo ponto abaixo da linha do Equador. Quem vai explicar o quê?

Enquanto não houver coragem para rasgar-se a fantasia, tudo parecerá encantadoramente belo… como as imagens apolíneas que só o padrão digital é capaz de fornecer a seus fiéis espectadores. Triste sociedade é aquela que, numa ponta, cultua a tela de TV e, em outra, segue, sem nenhuma filtragem, os caminhos ‘abertos’ por um ‘pai generoso’ e ‘simpático’. Que tal o resgate etimológico da palavra ‘simpatia’? É possível que ela revele algo perturbador…

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA – Rio de Janeiro)