Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quem tem medo das cotas?

Sou militante do Movimento Negro do Paraná e do Conselho Estadual de Educação. A Universidade Federal do Paraná, assim como algumas outras do Brasil, aprovou uma política de cotas para ingresso na universidade de negros, índios e alunos oriundos de escolas públicas, numa reunião do Conselho de Ensino e Pesquisa em 6 de maio. Mandei um artigo, evidentemente a favor dessa política de ação afirmativa, a vários jornais. Nenhum publicou uma linha sequer. A Gazeta do Povo, um dos maiores destas plagas, todo dia sai com matérias contra as cotas, mas não é capaz de dar divulgação ao meu texto. Estão passando para a opinião pública uma idéia de que todo mundo é contra as cotas.

A 116 anos da Abolição da escravatura, o povo negro vive um verdadeiro apartheid; do total de crianças em idade escolar fora da escola, somamos 87% desse conjunto; quando nos reportamos aos salários, uma abissal diferença se evidencia: enquanto os homens brancos recebem uma média de 6,3 salários mínimos, os homens negros recebem 2,9 e a mulher negra, 1,7; no que diz respeito ao IDH , em 2002 o país ocupava a posição de número 74 no ranking geral; entretanto se for considerada apenas a população branca, o Brasil sobe para a 49ª posição; já se considerarmos apenas a população negra, caímos para o 108º lugar na tabela mundial, dado mais do que eloqüente da trágica situação da população negra neste país. Olhando para a universidade brasileira, vemos menos de 3% de negros nela e cerca de 2% entre os formados (dados IBGE e Ipea-2001).

A porta na cara, a porta da rua

E, ao menor movimento em busca de um política de cotas para ingresso de negros nas universidades, logo vêm argumentos do tipo ‘a questão é de fundo econômico e quando o país crescer os negros crescerão junto’; ‘é preciso que o governo melhore a escola pública básica, aí então todos os que estudam nela, sejam brancos ou negros, entrarão no ensino superior por seus próprios méritos, pela porta da frente’, dizem, plenos de toda a certeza, do alto de suas confortáveis posições.

Entretanto, a história do desenvolvimento capitalista deste país conspira contra tais assertivas. O Brasil foi o país que apresentou, no século 20, a maior média de crescimento no mundo. Em que isto mudou a situação do povo negro? Somos uma das mais fortes economias industriais do globo, muito pouco tempo atrás, a 8ª economia. Em que isso garantiu mais vagas nas universidades para os negros, mais postos de destaque, mais visibilidade na mídia, mais cadeiras no parlamento etc.? Setores da esquerda brasileira, depois de haverem galgado todos os degraus da formação escolar, e com isso amealhado boas posições e vida confortável, nos dizem: cotas para negros na universidade? Alto lá (que nos soa como um halt)! Esta é uma luta de todos os pobres e oprimidos, sejam brancos, negros, índios ou amarelos. Num futuro Estado igualitário, todos estes problemas desaparecerão.

Tudo bem, mas até lá, como querem que assistamos passivamente à humilhação a que nosso povo é diariamente submetido? A porta na cara, a porta da rua, a porta fechada, a porta dos fundos. Ser pobre é um problema; ser pobre e negro são dois, na aparência, e são muitos, na essência. Tratar destas questões como se fosse tudo a mesma coisa é como tentar subir numa escada sem degraus; não se chegará a lugar algum. Talvez Buñuel, no campo da ficção, fosse mais feliz. Já nos limites impostos pela realidade, é missão impossível.

Do Proer à imigração

Aliás, aquela certa esquerda que alardeia apoiar-se em Marx para apontar aos negros, como única solução, a instituição de uma futura sociedade socialista, faz uma interpretação positivista e economicista de Marx. Engessam o pensamento marxiano e acabam, mesmo não querendo, contribuindo com a manutenção dos vergonhosos índices socioeconômicos que põem os negros nos últimos lugares da enorme e cada vez maior fila de excluídos deste nosso amado Brasil. Ignoram que mesmo numa sociedade socialista os conflitos e as distinções de raça, etnia, gênero e credo continuarão ainda por muito tempo existindo. Estes são valores culturais profundamente arraigados que somente com o debate por dentro dos movimentos específicos e incorporação honesta de suas demandas, e não com atalhos que passam pelo lado de fora, que margeiam as questões postas, poderemos edificar novos padrões de convivência que, mantendo as diferenças, guarde o respeito pelo outro, pela diferença do outro.

E aqui reside a questão. Os negros, neste momento, põem à mesa questões substanciais que dizem respeito à sua sobrevivência . Estamos superando o dilema hamletiano do ‘ser ou não ser’ que, por largos anos, marcou a militância negra em busca do reconhecimento de que existíamos e pensávamos com estatutos culturais próprios; colocamos agora, em cena, na mesa, novas e velhas demandas; agora é também uma questão de ter ou não ter; ter empregos, ter moradia, ter educação etc. São as políticas afirmativas que tentarão recuperar parte do terreno perdido, que tentarão estabelecer um patamar aceitável de igualdade. São discriminações positivas, como tantas que já houve neste Brasil para atender interesses das elites.

Quem não se lembra do Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Sistema Financeiro Nacional), medida provisória redigida na madrugada de 4 de novembro de 1995 e publicada rapidamente já na segunda-feira subseqüente, abrindo as burras do Banco Central para socorrer os bancos quebrados? Só naquele passe de mágica os banqueiros abocanharam (oficialmente) 32 bilhões de dólares. E o que dizer dos ‘auxílios de emergência’ a grandes fazendeiros, quando algum problema ameaça o lucro esperado? E o perdão das dívidas dos usineiros, largamente utilizado em governos anteriores a Lula? E o processo imigratório que sucedeu-se à abolição da escravatura? Os europeus convidados a ‘embranquecer’ o país tiveram terras, e as melhores, viagens ultramarinas subvencionadas, facilidade nos créditos agrícolas e outras benesses, não foram, por acaso, discriminações positivas, não foram cotas específicas para facilitar a inserção daqueles imigrantes no país?

Inclusão de todos

Por que quando falamos em políticas afirmativas para negros a gritaria do alto, de baixo, da direita à esquerda? Interessante perceber que nesse instante lembram-se de que ‘é preciso melhorar o nível da escola pública’; que ‘não há estrutura nem política de garantia de permanência desses ‘indivíduos’ na universidade, como disse recentemente um prócer da Universidade Federal do Paraná (interessante, em vez de cidadãos, indivíduos…) Que o ‘aluno de ingresso via cota será um aluno marcado, pobrezinho…’; que ‘com a instituição das cotas a universidade estará oficializando o racismo’ e outras barbaridades do gênero.

É preciso que fique claro que o movimento negro não vê a cota como aquele antigo ungüento Ferrabrás, que curava ‘tudo’. Cota é uma política paliativa, e por isso mesmo não podemos desfocá-la da luta geral pela melhoria da escola pública, das condições de vida de todo o povo trabalhador e do combate a todo tipo de segregação, seja de etnia, gênero ou classe. Aliás, é o que vimos fazendo há muito tempo. Entendo ser nossa luta atual, um desdobramento das memoráveis lutas dos quilombolas aqui no Brasil ou da resistência heróica liderada pela rainha Nzinga, contra a dominação portuguesa, em Angola (1582-1663).

Em todos os momentos, nossa luta sempre foi de inclusão de todos os que sofriam, fosse no passado africano, fosse no infame regime escravocrata do Brasil Colônia ou nos atuais subúrbios e favelas onde só a solidariedade entre todos os pobres tem tornado possível, contra tudo e contra todos, a sobrevivência desses enormes contingentes de homens, mulheres e crianças, esses deserdados da terra, na feliz expressão de Franz Fanon, seja aqui, no Caribe, na América Central ou na América do Norte.

Universidade mais democrática

Para aqueles que têm afirmado, aberta ou veladamente, que com a entrada dos negros cairá o nível da universidade, uma notícia nada ‘alvissareira’. Segundo informes das instituições que já adotam a política de cotas, os alunos negros tiveram melhor desempenho até do que estudantes de outras etnias. Isto não quer dizer que negros são melhores alunos. Digo apenas que, além de preconceituosa, a presunção de baixo nível intelectual do aluno negro não tem encontrado amparo na realidade. É só um preconceito, portanto.

Não poderia encerrar este artigo sem duas notas mais. Primeiro, louvar a iniciativa de uma instituição privada, a Unibrasil, de Curitiba, que já há três anos adota a política de cotas para ingresso de estudantes afro-descendentes e com bolsas que chegam a 80% do valor da mensalidade. E, em segundo lugar, a determinação e a coragem do reitor da UFPR, professor Carlos Augusto Moreira Júnior, que não só abriu o debate das cotas na universidade como visitou pessoalmente escolas públicas da capital, com sua equipe de pró-reitores, para debater com alunos das escolas públicas, checando a justeza e o alcance das políticas por ele defendidas.

O movimento negro não pode deixar de reconhecer este exemplo. Em 6 de maio, o Conselho de Ensino e Pesquisa da UFPR aprovou um plano de metas que institui políticas de ações afirmativas garantindo o sistema de cotas para ingresso de negros, índios e estudantes oriundos de escolas públicas; estou seguro de que teremos uma universidade melhor, mais democrática e um jeito mais saudável de se tratar as diferenças e, por que não dizer, a reparação de um pouco de tudo o que o povo negro já fez por esta terra, absolutamente de graça, posto que para cá foram arrastados nossos antepassados, na ignóbil e vil condição de escravos.

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Professor do Colégio Estadual do Paraná, Curitiba