A imprensa não vem dando muita atenção a um fato importante para a sociedade brasileira, especialmente para todos os que prezam a liberdade de ler e de escrever, particularmente biografias: a vergonhosa vitória obtida por Roberto Carlos, por meio de um acordo sinistro que, se satisfez as partes em conflito, não pode satisfazer de jeito nenhum os habitantes da Galáxia Gutenberg. [Ver, neste Observatório, ‘Justiça aceita censura da biografia do cantor‘; ‘Um precedente muito perigoso‘; ‘O Rei Roberto Carlos, de novo‘]
Pelo acordo judicial, celebrado sexta-feira (27/4), depois de cinco horas de audiência, na 20ª Vara Criminal da Barra Funda, em São Paulo, a editora Planeta tem dois meses de prazo para entregar 10.700 exemplares do livro Roberto Carlos em detalhes, biografia não-autorizada do rei, da autoria do jornalista e historiador Paulo Cesar Araújo.
Pelo acordo, o jornalista fica impedido também de comentar o livro ou dar entrevistas sobre seu conteúdo. Há mais: a Planeta tem que recolher todos os livros já vendidos ou postos em consignação nas livrarias. Não poderá sequer alegar que não poderá fazer isso, pois Roberto Carlos poderá comprar os livros que estão no mercado e a editora terá que lhe ressarcir as despesas.
Dedicatória oportunista
A síntese mais objetiva do imbróglio foi feita por Pascoal Soto, diretor editorial da Planeta: ‘Isso nos faz lembrar os tempos obscuros do nazismo’.
O autor da biografia do rei fez uma última tentativa para manter o livro nas livrarias: excluir do livro os 5% que desagradaram o cantor, mas a proposta foi igualmente recusada.
Roberto Carlos em Detalhes (504 páginas) estava nas livrarias (em algumas ainda deve estar) desde dezembro de 2006. Ainda no mês do lançamento, o distinto público soube, pela própria boca do rei, em entrevista coletiva, que ele não tinha lido e não tinha gostado do livro.
Ele não leu e não gostou, e pagam o pato os que leram e gostaram, ou leram e não gostaram – ou, pior ainda, não poderão dizer se vão gostar ou não, pois estarão doravante impedidos de ler. Este é o imbróglio. É censura? Não é! Não houve nenhum ato autoritário. O rei não gostou do livro que não lera e recorreu ao Judiciário. O ato é, pois, legal.
Esta é uma história ainda mais inusitada porque nem tudo o que é legal é legítimo. Nem tudo o que é legítimo, é legal. A lei não tem a abrangência que os legisladores gostariam que tivesse. Por exemplo: todos nascem iguais perante a lei, declaram lindos diplomas legais, acrescentando que todos têm os mesmos direitos etc. As leis imaginam um mundo perfeito e não são poucos os que se referem a atos jurídicos perfeitos.
Perante a lei, todos podem ser iguais, mas perante a vida, não. Mesmo perante a lei, a diferença passa a ser a qualidade dos advogados. Nem vamos imaginar o pior: a recente venda de sentenças, reveladas pela Operação Furacão, tratada no artigo anterior para este mesmo Observatório [ver ‘PF é criativa para dar nomes às operações‘].
Sou de opinião que devemos ampliar e aprofundar o exame do imbróglio. Quem sabe possamos desparoquializar o debate, estudando o caso à luz, por exemplo, de surradas estratégias de poder de personalidades conhecidas como celebridades.
Roberto Carlos chegou aonde chegou porque se formou cantor e compositor numa sociedade que, mesmo amordaçada por instrumentos ditatoriais, jamais lhe negou acolhida na mídia e em muitos outros lugares onde seu talento pôde vicejar. Politicamente insosso, ao contrário de figuras de seu porte, como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros, passou todos os anos de chumbo sem dizer um único ‘não’ aos atentados contra as liberdades, por mais fraquinho e inaudível que fosse.
Quando as liberdades foram recuperadas sem sua ajuda, exalou que Debaixo dos caracóis dos teus cabelos era velada solidariedade a Caetano Veloso, que amargava o exílio em Londres. Era? Não dissesse! Pois disse fora de hora, quando nada mais poderia comprometê-lo. Soou oportunista. E como fez falta sua voz quando o Brasil revelado por Batismo de sangue arrostava sofrimentos dentro e fora dos cárceres, no exílio ou na pátria.
Ovos da serpente
O livro Os dois corpos do rei, do judeu-alemão Ernst Kantarowicz, referência indispensável no estudo das idéias políticas medievais, examina com ousadia a arrogância dos reis que se consideravam acima de qualquer suspeita, de qualquer poder, principalmente acima do Parlamento, como foi o caso do rei inglês Carlos I, que entretanto se deu mal, pois acabou não apenas deposto, mas executado no cadafalso.
São desconcertantes as voltas que o mundo dá. Adolf Hitler gostava dos livros de Kantarowicz. Hermann Goering também, pois chegou a comprar um exemplar de Kaiser Friedrich der Zweite (publicado originalmente em Berlim, em 1927) para dar de presente a ninguém menos do que Benito Mussolini.
Mas é em Os dois corpos do rei que encontramos estes versos atribuídos a Carlos I:
‘Com meu próprio poder, minha majestade feriram;/ Em nome do Rei, o próprio rei destronaram./ Eis como o pó destrói o diamante’.
Roberto Carlos levou a sério demais sua majestade simbólica e se julgou acima de qualquer mortal, não podendo sequer ser biografado. E, pior do que isso, deu, com a força que o imbróglio tem, uma ajuda sinistra a outras forças que impedem que biografias sejam feitas.
A biografia, gênero literário rarefeito entre nós, tem bons, mas poucos autores. Não há perigo algum de as coisas melhorarem depois dos resultados que obteve no Judiciário.
Precisamos examinar melhor o assunto. A serpente está botando ovos em muitos lugares. Chocá-los é uma questão de tempo.
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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde coordena o Curso de Letras; www.deonisio.com.br