Indignado com a publicação de uma biografia não autorizada, o cantor Roberto Carlos recorreu ao Poder Judiciário paulista. O processo criminal foi extinto em razão de um acordo através do qual o biógrafo e a editora concordaram em retirar a obra de circulação. [Ver, neste Observatório, ‘Justiça aceita censura da biografia do cantor‘; ‘Um precedente muito perigoso‘; ‘O Rei Roberto Carlos, de novo‘]
Qualquer pessoa tem direito subjetivo de tentar preservar sua honra e imagem. Ambas são asseguradas pela Constituição de 1988. O direito subjetivo de recorrer ao Judiciário para preservar o direito à honra e imagem também. Portanto, ninguém pode crucificar o Roberto Carlos. Ele tem todo direito de tentar impedir a publicação ou circulação de biografia que considera ofensiva. Também tinha o direito de tentar obter a condenação criminal dos supostos ofensores.
Ao receber a pretensão do Roberto Carlos, entretanto, o Judiciário deveria fazer cumprir toda a legislação nacional e internacional em vigor.
A Constituição de 1988 garante o direito à liberdade de consciência, de expressão e de divulgação de produção artística ou intelectual. Portanto, o autor da biografia também tem direito de escrever e de divulgar seu trabalho. Mais que isto, a própria sociedade tem direito difuso de consumir as informações veiculadas na referida biografia, porque a censura prévia é proibida.
Judiciário errou
O Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Convenção Americana de Direitos Humanos. Estes dois diplomas internacionais garantem de maneira ampla o direito à circulação de informação, à liberdade de criação e divulgação das produções do espírito humano (sejam científicos ou artísticos). O parágrafo 2, do art. 5, da Constituição de 1988 prescreve que as normas internacionais que se referem aos direitos e garantias individuais devem ser respeitadas pelas autoridades brasileiras. Portanto, não há dúvidas de que, ao proferir suas decisões, o Poder Judiciário tem a obrigação de respeitar os diplomas internacionais citados.
Para autorizar o processamento da demanda envolvendo o Roberto Carlos e seu biógrafo, o Judiciário deveria colocar na balança diversos valores igualmente tutelados pela Constituição (direito à imagem do cantor, direito à liberdade de criação e difusão da obra intelectual do autor, direito da sociedade à informação veiculada na biografia). Mais que isto, deveria levar em consideração os aspectos internacionais da demanda, pois o biógrafo e seus leitores têm direitos da personalidade assegurados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Convenção Americana de Direitos Humanos.
O Judiciário deu andamento à ação criminal do cantor. Entendeu, portanto, que seu direito à preservação da honra e imagem deveriam prevalecer. Errou feio. Ao invés de permitir o andamento de uma ação que visava claramente a censurar o livro através da intimidação do autor e da editora, o Judiciário deveria indeferir o processamento do feito. Até porque o biografado poderia obter indenização pelo uso de sua imagem através de ação civil.
Intimidação judicial
Roberto Carlos é uma personalidade pública. Sua exposição na mídia é constante. Sendo assim, não pode se dizer invadido em sua privacidade em razão de uma biografia que pode até ser escrita com base em informações colhidas em jornais. Sua notoriedade coloca em evidência o direito dos cidadãos a ler o trabalho intelectual do biógrafo.
O acordo que retirou o livro de circulação pôs fim à demanda. O biógrafo e a editora concordaram com a censura do livro. O receio de uma condenação criminal deve ter pesado mais para a celebração do acordo do que o convencimento de que Roberto Carlos tinha razão. É por isto que a sentença homologatória do acordo não põe fim à questão. Referida decisão viola os direitos internacionais dos cidadãos brasileiros interessados na circulação do livro censurado. Na prática, qualquer interessado pode ir à Corte Internacional de Justiça e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos requerer a condenação do Brasil por causa do ocorrido. Na verdade, até o autor e o editor poderiam sustentar nas cortes internacionais que celebraram o acordo em razão da intimidação judicial. Assim seja…
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Advogado, Osasco, SP