Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

As afoitezas do jornalismo esportivo

No crepúsculo de março último, jornais, revistas e emissoras de rádio e TV de todo o país proclamaram o Palmeiras como o primeiro clube campeão mundial de futebol. Quem logrou decifrar o noticiário, entendeu que a Fifa, entidade máxima do ludopédio, reconhecera a versão de 1951 da Copa Rio, realizada no Brasil, como um torneio planetário.


Entusiasmados com os discursos laudatórios do jornalista e publicitário Milton Neves, da Rede Record de Televisão, ou com as páginas festivas do diário Lance!, os palestrinos puseram-se a celebrar a conquista, ainda que o time capengasse no Campeonato Paulista.


Para os torcedores, não havia dúvida. O Palmeiras conseguira, finalmente, ingressar na galeria dos melhores do mundo, na qual já tinham lugar os rivais Corinthians, São Paulo e Santos.


O criterioso Estado de S.Paulo declarava, em sua versão digital: ‘Palmeiras apresenta ofício da Fifa e é campeão mundial’. No UOL, a Folha noticiava: ‘Fifa confirma Palmeiras como primeiro campeão do mundo’.


Sem assinatura do presidente


O documento supostamente comprobatório da decisão era um fax enviado à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) pelo secretário-geral da Fifa, Urs Linsi, em 9 de março. Expunha o seguinte, em livre tradução:




‘Depois de detalhada pesquisa, temos o prazer de anunciar que a Fifa concorda com vossa proposta e aceita a Copa Rio 1951 como a primeira copa oficial de clubes do mundo.’


Em sua carta, o secretário-geral ainda incumbia a CBF de organizar os ritos da designação diretamente com o Palmeiras.


Para os mais atentos, no entanto, causou estranheza que o documento não tivesse a assinatura de Joseph Blatter, o presidente da Fifa. Além disso, o site da entidade, sempre completo e atualizado, não fez referência à decisão. Quem navegou pelas páginas dedicadas aos campeões mundiais e intercontinentais também não foi capaz de encontrar qualquer menção ao Palmeiras.


‘Não embarcamos nessa’


Em meio à festa, alguns poucos profissionais deliberaram checar as informações diretamente com os cardeais do Vaticano do futebol. O jornalista Paulo Vinicius Coelho (PVC), por exemplo, passou a telefonar diariamente para a assessoria de imprensa da Fifa. Durante semanas, conforme noticiou em seu blog, o pessoal do Media Department não confirmou nem desmentiu o reconhecimento do título.


Até que, na quinta-feira (26/4), PVC, este observador e outros colegas receberam mensagens eletrônicas parecidas, cujo teor certamente tirou o sono dos fanáticos palmeirenses e da imprensa desavisada. Segundo a Fifa, numa primeira fase o assunto foi tratado em nível administrativo pelo secretariado-geral. Na seqüência, explica:




‘Em vista de sua importância, o assunto será submetido ao Comitê Executivo da Fifa. A próxima reunião será realizada em Zurique, em 27 de maio próximo.’


A notícia gerou um debate sobre os critérios que guiam a produção noticiosa nas editorias de Esporte. O repórter Thiago Salata, do diário Lance! e setorista no Palmeiras, não considera que a imprensa tenha realmente ‘comido uma bola’. Segundo ele, o fax enviado por Linsi à CBF era suficiente para emprestar credibilidade à notícia. ‘Se há algum equívoco, deve-se a um desencontro de informações na própria Fifa’, sustenta. Para Dagoberto Azzoni, do Jornal da Tarde, as matérias do Grupo Estado indicaram, desde o início, que a oficialização do título dependeria de uma confirmação da entidade.


Mais enfático, o tarimbado Juca Kfouri afirma que sempre desconfiou da informação. ‘O PVC, eu e outros poucos jamais embarcamos nessa’, argumenta. ‘Coloquei o comunicado da Fifa no meu blog, depois de destacar, no dia anterior, que o site da entidade não registrava o Palmeiras como campeão.’


Repassando a batata quente


Com raras exceções, é fato que a cobertura esportiva enveredou pelo caminho da celebração farrenta, descuidando da checagem das informações, ainda que sobrassem indícios de que se tratava de uma decisão não-definitiva.


Os jornalistas Paulo Galdieri e Rodrigo Bueno, da Folha de S.Paulo, figuram entre os raros profissionais que puderam escapar do ufanismo e da imprudência da mídia esportiva. Em texto publicado na sexta-feira (27/4), por exemplo, lançam luzes sobre fatos que boa parte da imprensa desprezou. Explicam que a Fifa reconhece somente três clubes como campeões de torneios mundiais realizados sob sua chancela: Corinthians, São Paulo e Internacional (RS). De fato, os demais ‘campeões mundiais’, incluídos em sua galeria histórica, fazem parte de outra categoria. São os vencedores da Copa Intercontinental e da Copa Toyota (ambas disputadas entre o campeão sul-americano e o campeão europeu).


Galdieri e Bueno marcaram outro tento ao oferecer ao leitor detalhes do lobby alviverde para que a reivindicação fosse analisada pela Fifa. No ano passado, conselheiros palmeirenses teriam pedido a Aldo Rebelo (PCdoB-SP), então presidente da Câmara dos Deputados, que estabelecesse um canal de contato com Joseph Blatter. Consultado sobre o assunto, o presidente da Fifa teria atirado a batata quente no colo de Urs Linsi, o ‘homem do fax’, que a repassou ao presidente da CBF.


Para ganhar a adesão de Ricardo Teixeira à causa, segundo os repórteres, o Palmeiras contou com o providencial auxílio de três torcedores ilustres: o próprio Rebelo; o governador de São Paulo, José Serra (PSDB); e o presidente da Federação Paulista de Futebol, Marco Pólo Del Nero. Em troca, a trinca teria garantido apoio ao mais ambicioso projeto de Teixeira: realizar no Brasil a Copa do Mundo de 2014.


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PS [incluído às 20h39 de 1/5]: Talvez movidos pela paixão clubística, alguns leitores aparentemente não prestaram devida atenção ao parágrafo que trata da referência aos campeões mundiais.


A correta matéria de Paulo Galdieri e Rodrigo Bueno, da Folha de S.Paulo, retrata a visão da FIFA sobre a natureza dos campeonatos ditos mundiais. Não se expõe ali a opinião técnica dos colegas, muito menos a minha.


Dessa forma, como escrevem os jornalistas, a FIFA reconhece três campeões de torneios realizados sob sua ‘chancela’. São aqueles organizados por ela, com a presença de clubes de todos os continentes, e não somente do campeão sul-americano e do campeão europeu. 


Para quem tem dúvidas, sugere-se consultar aqui a página da FIFA relativa a seus torneios mundiais. O site da entidade também lista os campeões de outros torneios oficiais, agora por ela reconhecidos. Na página, aparece claramente a categorização: Intercontinental Cup, Toyota Cup, Fifa World Club Championship e Fifa Club World Cup. Ver aqui


No que tange ao Corinthians, especificamente, o clube enquadra-se na categoria de campeão mundial do primeiro torneio realizado sob a ‘chancela’ da Fifa. Além das páginas dedicadas ao tema no site da entidade, a Fifa enviou a este observador mensagem detalhada de confirmação, reproduzida no blog do colega Juca Kfouri. (W.F.Jr.)

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Jornalista, São Paulo, SP