Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma geração de bons documentaristas

Uma nova geração de documentaristas está mudando a cara do setor Audiovisual de Mato Grosso. Pelo menos duas produções lançadas no último ano merecem o olhar atento do público: A Cruz do Padre João, de Rodrigo Vargas, e Em Trânsito, de Elton Rivas. Coincidência ou não, ambos foram produzidos por jornalistas. Escancaram aquela cadência peculiar que os profissionais da imprensa têm para contar histórias. E ambos foram produzidos por jornalistas socialmente comprometidos. Talvez por isso não cometam pecados vulgares como endeusar personagens de importância bastante duvidosa na nossa história.

Também por coincidência, ou não, ambos tratam da questão agrária em Mato Grosso – e ambos se posicionam claramente do lado dos que lutam incansável e historicamente pela terra. Ambos são protagonizados por legítimos representantes do povo – pelos ‘de baixo’, como diria Raymond Williams, um dos fundadores dos Estudos Culturais. E, coincidência ou não, ambos reafirmam uma bela acepção para o conceito de cultura, furtada ‘antropofagicamente’ da Antropologia: a de que a cultura, mais do que produções artísticas, deve ser encarada como ‘todo um modo de vida’.

Em A Cruz do Padre João, Rodrigo Vargas lembra uma das mais tocantes histórias produzidas nesse Mato Grosso de tantas desigualdades sociais: o assassinato do padre João Burnier, na região do Araguaia (MT), durante a ditadura militar. Burnier estava na localidade para visitar o bispo D. Pedro Casaldáliga quando foram informados de que duas mulheres, envolvidas na luta pela terra, estavam sendo brutalmente torturadas na delegacia local. Os dois religiosos correram para lá. Irritado, um policial mirou em Casaldáliga. Acertou Burnier. A população da cidade, inconformada, cercou a delegacia. E, num ato de extrema coragem, destruiu o prédio.

A saga dos irantxes

O que impressiona no documentário, entretanto, é a forma simples e astuta que Rodrigo utilizou para contar essa história. Baniu do script qualquer possibilidade de dar voz às tradicionais ‘fontes oficiais’, que tanto regem a vida de tantos jornalistas. Nada de promotores, chefes de polícia, advogados ou mesmo religiosos. Quem conta a história de A Cruz do Padre João são os sem-terra, os despossuídos, o povo simples do Araguaia que sentiu na pele a necessidade de lutar pela terra e pela vida em época de tanta repressão. Impressiona também o fato de que Rodrigo assina sozinho a produção praticamente ‘artesanal’ da obra. Foi diretor, roteirista, cinegrafista, produtor. Foi, enfim, um apaixonado pela arte de contar histórias que não se rendeu às mazelas de um mercado ainda bastante fechado para novatos.

Elton Rivas, por sua vez, narra a saga dos irantxes, o povo de uma entre as muitas etnias indígenas mato-grossenses que perderam suas terras para a soja e sua cultura para as igrejas. Expulsos de suas terras originais na década de 50, os irantxes viveram em uma missão jesuíta durante muitos anos até serem obrigados a retomar sua rotina interrompida pelo contato com os brancos. Encontraram suas terras transformadas em lavouras de soja. Aculturados, católicos, vestidos e viciados em TV, os índios hoje brigam para reaver a cultura, a língua e a terra de seus antepassados.

Regional pode não ser ‘estreito’

Ao contrário de Rodrigo, Elton conseguiu acesso aos recursos da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. E soube aplicá-los muito bem. A qualidade técnica do documentário é irrepreensível. O diretor até se utiliza das chamadas ‘fontes oficiais’, em entrevistas com um antropólogo e com um padre jesuíta, inclusive colocados em evidente contradição. Mas quem protagoniza o documentário são os próprios índios, que contam emocionados a triste e sangrenta saga da ocupação das terras do estado – que não existe nos livros oficiais de história de Mato Grosso.

Na esteira desses dois documentários, pipocam muitos outros de igual grandeza. Que venham mais. Coincidência ou não, os dois documentários provam que é possível trabalhar o regional sem ser necessariamente ‘estreito’. Afinal, ambos só poderiam ter sido feitos em Mato Grosso e por pessoas que conhecem o que há de mais especial e mais velado na história do Estado. Entretanto, são capazes de emocionar pessoas de bem de quaisquer lugares do mundo.

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Professora e coordenadora da assessoria de imprensa da UNIC – Universidade de Cuiabá