Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um verde, rubro de indignação

A área ambiental é, naturalmente, a mais impregnada pela correção política. Não poderia ser diferente: há três décadas os ‘verdes’ diferenciam-se do conjunto de partidos graças a um recorte muito especial que nada tem a ver com os paradigmas tradicionais da política.


São os novos românticos vindos diretamente das fileiras do movimento ‘Sturm und Drang’ (Tempestade e Paixão, fim do século 18). Combinam com maestria utopismo, ética, pacifismo, racionalismo científico, despojamento, estoicismo, determinação, solidariedade, transparência, espírito público, amor à natureza e devoção à humanidade.


Há verdes religiosos e ateus, místicos e cientistas, conservadores e progressistas, xiitas e moderados. Alguns são geógrafos, biólogos, astrônomos, antropólogos e historiadores. Alguns olham a vida com lentes macro, outros preferem a visão micro, algumas almas conservam-se hippies, outras se preocupam apenas com as taxas de colesterol e a celulite.


Bater bumbo


Os verdes nem sempre vestem-se de branco e nem sempre usam bijuteria indígena; têm suas tribos, seitas, idiossincrasias e diferenças. Mas são seres especiais, raramente confrontados ou questionados.


Também erram. Erraram na Alemanha quando convenceram seus compatriotas a aposentar o programa de energia nuclear. E aparentemente estão errando no Brasil.


No seu artigo semanal no Estado de S.Paulo (segunda, 30/4, pág.A-4), o jornalista-ambientalista Marcos Sá Correa põe a boca no trombone ou, melhor, bate o seu bumbo com um vigor que não é usual dentro do conglomerado ecológico.


Por mais verde que seja, um jornalista não pode abdicar de ficar rubro de indignação. A seguir, o seu artigo.


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Para que mais um Instituto Chico Mendes?


Marcos Sá Correa (*) # copyright O Estado de S.Paulo, 30/4/2007


A ministra Marina Silva quer ficar na história do ambientalismo brasileiro como inventora do aparelhamento post mortem. Esse é o primeiro resultado concreto da Medida Provisória 366, que liofilizou o Ibama, entregando os parques nacionais e outras reservas naturais da União, além das ‘políticas de uso sustentável dos recursos naturais’ e as reservas extrativistas, ao aconchego do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.


‘Abaixo o amazonismo político do Ministério do Meio Ambiente!’, berrou instantaneamente na internet, diante da notícia, o gaúcho José Palazzo Truda, padroeiro das baleias francas na costa brasileira. Truda está se transformando num caso singular de ambientalista que, neste País, ainda protesta. O resto anda na muda, talvez por haver tanta ONG prestando ao ministério de Marina Silva serviços ambientais terceirizados.


‘Nada tenho contra o saudoso Chico Mendes’, esclarece Truda em seu manifesto, prestando as homenagens protocolares ao ‘cidadão ilustre e sindicalista histórico com preocupações ambientais’. Mas nem por isso admite que se engula calado a idéia de pôr ‘num órgão público federal o nome próprio de um ex-aliado político da ex-ministra Marina Silva, apenas para fazer proselitismo’. Acertou na mosca azul. Há, nesse culto oficial a Chico Mendes, um indisfarçável zumbido autocongratulatório.


Discutido desde outros governos, inclusive em foros de guarda-parques, o projeto de um instituto para cuidar especificamente das unidades de conservação apareceu, de surpresa, no último arrasta-pé da ministra Marina Silva com o presidente Lula. No caso, estão na dança as barragens do Rio Madeira. Mas o Brasil inteiro conhece essa coreografia. Lula empurra para um lado, puxa para o outro. E a ministra acaba acertando o passo com o presidente.


Eles são amigos. Que se entendam. Pelo visto, Marina Silva, neste governo, pode fazer tudo o que quer, menos o que Lula não queira. E ela devia querer muito o Instituto Chico Mendes, chocado em segredo, como se uma parte de sua equipe tivesse ciúmes da outra. Ao sair a medida provisória, nem os funcionários mais qualificados do ministério sabiam explicar a quê ela veio.


Nas suas encarnações passadas, o desmembramento serviria para tornar a administração mais burocrática (leia-se: mais técnica) e menos política (leia-se: menos orientada partidariamente) das unidades federais de conservação. Na concepção da MP 366, parece torná-la mais política e menos burocrática. Em princípio, as melhores verbas – as que vêm de multas por desastres ecológicos, por exemplo – irão para o Instituto Chico Mendes. Ou, como diz a medida provisória, ‘ato do Poder Executivo disciplinará a transição do patrimônio, dos recursos orçamentários, extra-orçamentários e financeiros, de pessoal, de cargos e funções, de direitos, créditos e obrigações, decorrentes de lei, ato administrativo ou contrato, inclusive as respectivas receitas do Ibama para o Instituto Chico Mendes’.


O que isso significa só se saberá em outros capítulos. E eles têm tudo para sofrer atrasos. Presume-se que o Instituto Chico Mendes, se repetir oficialmente o racha que informalmente vigorava lá dentro desde 2003, ficará com os amigos, os aliados e os correligionários do gabinete. Ao Ibama restarão os funcionários de carreira. Mas, primeiro, será preciso reestruturar o que, em quase 20 anos de existência, nunca chegou a se estruturar de verdade, encaixando todos os cacos de extintas autarquias que o governo José Sarney empacotou no Ibama. E o País já sabe como o governo Lula faz estruturações e reestruturações. Basta ter visto suas reformas ministeriais.


Para começo de conversa, haverá mais bagunça na boa e velha mixórdia do Ibama. Depois, só vendo. Por isso, à falta de informações verossímeis, seria a hora de deixar o instituto para discutir mais tarde, se ele não se chamasse Chico Mendes. Seu nome é, em si, um atestado de sectarização indébita na administração pública. Institucionalizar uma ala do ambientalismo que, até virar hegemônica da noite para o dia na posse de Lula, era francamente minoritária e não tinha um programa que tivesse passado pelo filtro do longo prazo, o único capaz de dizer se, na natureza, a última palavra em conservação da natureza de fato funciona.


Antes que o ramal amazônico do socioambientalismo chegasse ao governo, o que lhe sobrava em mártir faltava-lhe em prática. Entre outros motivos porque Chico Mendes morreu cedo e descobriu meio tarde a ecologia. Teve menos de dois anos para amadurecer seus projetos ambientais. Na dúvida, consulte-se o site do Comitê Chico Mendes, criado logo depois de seu assassinato, em dezembro de 1988.


Lá está registrado que, pela primeira vez, em janeiro de 1987, ‘entidades ambientalistas dos Estados Unidos e membros da Unep (órgão do meio ambiente ligado à ONU) visitam Chico Mendes em Xapuri, conhecendo sua luta’. Em março, ele vai ‘a Miami para participar da conferência anual do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) a convite de ambientalistas’.


Em 27 de março, ‘tem uma audiência com o chefe da Comissão de Verbas do Senado americano’. Em 28 de março, ‘denuncia ao Congresso americano as políticas de desenvolvimento financiadas pelos bancos internacionais, como o caso do Pólo Noroeste em Rondônia e o projeto de asfaltamento da Rodovia 364, trecho Porto Velho-Rio Branco, financiado pelo BID, uma ameaça aos habitantes da floresta (índios e seringueiros)’.


Até esse ponto, seus 21 anos de militância sindical não deixaram no site uma única palavra sobre meio ambiente. A política que está aí foi, em sua maior parte, gerada na sua morte, tragédia que o Brasil não pode esquecer e, por isso mesmo, não deve lembrar como aquilo que ela não foi. Aliás, já existe um Instituto Chico Mendes, que se define como de ‘Pesquisa e Responsabilidade Socioambiental’. Ele anuncia para breve ‘novas atualizações’ na internet e mantém no ar, como última notícia, uma ‘festa junina solidária’, realizada na cidade de Quatro Barras, em 8 de junho do ano passado, quando ‘as crianças puderam se divertir com a piscina de bolinhas, cama elástica e touro mecânico’.


O exagero das homenagens pode levar a memória de Chico Mendes a se confundir com as coisas que, em seu nome, se fizeram depois, como festas juninas. E, como disse Truda, propondo rebatizar a nova autarquia como Instituto Brasileiro de Conservação da Biodiversidade, ela corre o risco de virar um ‘monumento paroquial à devastação da Amazônia, que o governo dos amigos de Chico Mendes não se importam em conter’.


(*) Jornalista