Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nova história oficial a cada década

O carro-chefe da imprensa progressista acaba de completar a sua primeira década. Parabéns efusivos.

Mas neste lapso de tempo ainda não conseguiu contar a sua biografia. Quando foi lançado em abril de 1997, o mensário Caros Amigos afirmou no editorial que fora criado pelo grupo que o editava, sem qualquer participação de outros jornalistas.

Dez anos depois, quem desmente o primeiro editorial é o próprio editor, Sérgio de Souza, numa entrevista a propósito da efeméride. Inspirado talvez em Gunther Grass, resolveu remexer na memória: mencionou outros jornalistas que participaram da criação do projeto e cujos nomes evaporaram-se da primeira versão da história oficial.

Agora, na nova versão, aparece um detalhe – o título da publicação não é do suposto grupo fundador. Estamos avançando: nos próximos 10 ou 20 anos certamente aparecerão outros esquecimentos.

Para poupar os leitores de tamanho suspense e contribuir para a conclusão da ‘biografia autorizada’, aqui vão algumas achegas.

Plataforma editorial

Tudo começou em 1996, na Vila Madalena (à época um bairro sossegado, barato, muito procurado por jornalistas). A mídia estava desvairada, entregue ao delírio do marketing e dos brindes (este Observatório da Imprensa havia surgindo naquele ano). José Carlos Marão (ex-Jornal da Tarde, ex-Realidade, ex-Quatro Rodas) queria reunir um grupo de jornalistas experimentados, expulsos das redações porque já tinham cabelos grisalhos, capazes de enfiar-se na empreitada de produzir uma publicação inteligente, forte, mas não apelativa.

As reuniões realizaram-se na sede da Editora Casa Amarela (era maior, melhor aparelhada com a vantagem de ter ao lado um salão onde serviam-se excelente petiscos, umas &outras e aos sábados portentosa feijoada). Participavam João Noro e Sérgio de Souza (da Casa Amarela), Marão, este observador, Matthew Shirts, o designer Hélio de Almeida e Juca Kfouri (importados de outras vizinhanças). Roberto Freire não estava presente às primeiras reuniões.

Este observador, recém-chegado de Portugal, mostrou um formato alternativo (Berliner, papel off-set branco), um título e, sobretudo, um estilo: para provocar debates e estimular a redação de textos menos burocratizados, as matérias seriam redigidas na forma de cartas, endereçadas sempre aos ‘Caros Amigos’ – na verdade, uma seção de Cartas à Redação, ampliada e vitaminada, preparada por jornalistas da equipe, eventualmente por outros profissionais ou mesmo leitores.

Foi aprovada uma plataforma editorial (existe uma cópia ) baseada na combinação do não-engajamento político com reportagens incisivas. O ‘progressismo’ não seria ideológico, mas teria como base a inovação, a busca de excelência jornalística numa época em que nas redações mandavam os marqueteiros.

Último acesso

Convém lembrar que nas reuniões preparatórias todos concordaram que o fim da imprensa alternativa, nanica ou udigrudi (underground) deveu-se justamente ao seu engajamento político, incapaz de adaptar-se ao fim da ditadura.

O experiente João Noro, da Editora Casa Amarela, encarregou-se de montar o projeto jurídico-empresarial enquanto os outros discutiam o número zero. Demorou, chegaram os pára-quedistas, o projeto inicial foi seqüestrado e quando finalmente o número zero foi impresso, o produto final era outro.

Justiça seja feita ao editor Sérgio de Souza: ficou sem saber o que fazer com o título, que não era seu, mas foi registrado por sua empresa. Foi-lhe dito: ‘é seu’. Só errou ao esquecer de contar uma historinha sobre aquele último acesso de romantismo jornalístico e sobre aqueles tempos ainda não impregnados de frustração e ceticismo. Insignificâncias.