Lançado em março deste ano, o livro Promessas do genoma, do jornalista Marcelo Leite, chama a atenção por revelar com rigor o caráter de propaganda enganosa da retórica dos líderes dos projetos público e privado do genoma humano, realizados majoritariamente por pesquisadores dos Estados Unidos e do Reino Unido. Mas a obra tem um alcance muito maior, relacionando a visão determinista desses cientistas sobre a biotecnologia na divulgação de seus trabalhos e na captação de recursos à aceitação social da perspectiva de subordinação de todos os domínios da vida ao controle da tecnologia.
Publicado pela Editora Unesp, o livro se originou da tese em sociologia da ciência defendida pelo autor em agosto de 2005 na Unicamp. É grande entre pesquisadores das ciências naturais a objeção aos estudos sobre suas especialidades de sociólogos, antropólogos, historiadores e filósofos. O contexto dessa dificuldade de diálogo entre áreas teve sua mais célebre descrição em 1959, pelo escritor britânico Charles Percy Snow (1905-1980). Em sua famosa conferência na Universidade de Cambridge, depois convertida em livro, ele se referiu ao hiato entre ‘as duas culturas’, ou seja, o abismo existente entre os estudiosos das ciências naturais e da tecnologia e os das artes e das humanidades.
Apesar de esse hiato ter sido evocado contra o ‘outro lado’ muito mais por integrantes das ciências humanas, estes também muitas vezes se mostraram como sintomas do fenômeno que apontavam, ora devido ao emprego incorreto de conceitos científicos, ora por causa da arbitrariedade da generalização indevida de suas conjecturas e conclusões, quase sempre ao sabor do vaivém dos modismos teóricos das humanidades.
Status de big science
Familiarizado há mais de 20 anos com o dia-a-dia de pesquisadores de diversas áreas devido à sua atuação como jornalista especializado na cobertura de ciência, Marcelo Leite – que estudou jornalismo e filosofia na USP – embrenhou-se desde muito cedo em um esforço disciplinado e criterioso de superação desse abismo entre as duas culturas. Desse modo, ao fazer sua incursão como cientista social sobre as publicações científicas e atitudes na esfera pública de pesquisadores do Projeto Genoma Humano (PGH) e de seus críticos, ele soube se preservar não só da tentação do recurso apriorístico às formulações teóricas sobre o cientificismo contemporâneo, mas também de sucumbir às ciladas das concepções otimistas e apocalípticas sobre esse tema.
Promessas do genoma traz um rigoroso mapeamento da ocorrência, nos papers, livros e entrevistas de cientistas envolvidos no PGH, justamente daquilo que os acadêmicos sempre criticaram na divulgação científica para o público não especializado: o uso e o abuso de metáforas – com a agravante da incompatibilidade com o atual conhecimento da complexidade empiricamente constatada da arquitetura do genoma e de suas interações com a célula, o organismo e o meio circundante. Não bastasse o apelo a esse recurso, os líderes do projeto não se pouparam do uso de hipérboles discursivas, como ‘Livro da Vida’, ‘Santo Graal’, ‘Admirável Mundo Novo’, ‘Nova Era’ e várias outras compiladas no livro.
Essa retórica – com a petição às vezes explícita, às vezes sub-reptícia, pela continuidade do fluxo de financiamento do empreendimento supostamente concluído – esteve presente em vários dos artigos publicados nas edições de janeiro de 2001 pelas revistas Science e Nature, quando foram anunciados os primeiros resultados do PGH e do programa privado concorrente, do conglomerado Celera Genomics, capitaneado pelo dissidente Craig Venter.
Não vale o argumento da circunstância atenuante para essa licenciosidade discursiva em vista da necessidade de mais investimentos para evitar a ameaça de patenteamento de seqüências de genes por parte de Venter. Leite demonstra que, em verdade, desde os primórdios do PGH, no final da década de 1980, o objetivo por trás de toda essa retórica tem sido precisamente interferir na esfera pública para assegurar à biologia molecular o status de big science – como o da física nuclear e do programa espacial no passado – e também a destinação prioritária de recursos financeiros.
Objetividade e imparcialidade
Mas a Lua não pode ser confundida com o dedo que é usado para apontá-la. Promessas do genoma vai além do equacionamento e enquadramento dessa propaganda científica enganosa, que teve a cumplicidade da mídia em geral por sua veiculação praticamente livre de críticas. O foco principal do livro é o vínculo entre a consagração pública da imagem de hegemonia da importância da genômica no cenário atual – o ‘Século da Biotecnologia’ – e a concepção do determinismo genético presente nas atitudes públicas dos pesquisadores envolvidos no PGH, inclusive por meio da publicação de seus trabalhos em revistas científicas especializadas.
É surpreendente que essa visão determinista tenha sido propagada pelo PGH justamente quando a biologia parecia já estar devidamente vacinada contra ela. Menos reforçada por propostas como a da sociobiologia, de Edward Wilson, do que por formulações simplistas como a de O gene egoísta, de Richard Dawkins, a aceitação da idéia de que ‘tudo está nos genes’ já havia sido desqualificada por Richard Lewontin, Stephen Jay Gould e vários outros críticos.
Além de serem comprometidas com esse determinismo insustentável diante da constatação de que os organismos não são inteiramente determinados por seus genomas, as próprias noções de ‘código genético’ e de ‘informação genética’, contrabandeadas da cibernética, impregnaram na esfera pública a visão reducionista do gene como condição de unidade de informação. Puramente sintática e virtual, essa unidade apresenta-se como despojada de sua natureza biológica, abordada in vivo e in vitro, tornando-se uma abstração prospectável in silico, em bancos de dados, e capaz de circular em sistemas geradores de valor, seja por meio de patentes, seja por meio da promessa do controle pela tecnobiologia dos processos ligados à vida.
‘Insistir no determinismo, nesses casos e a partir de certo ponto de acumulação de dados, equivale a contribuir mais para obscurecer do que para elucidar o objeto de estudo’, diz Marcelo Leite. Descaminhada por motivações extracientíficas, a genômica sustentada por metáforas deterministas e reducionistas precisa ser resgatada para ‘a promessa de objetividade e de imparcialidade implícita em qualquer forma de pesquisa científica, até mesmo na tecnociência’. Para isso, a única receita é a crítica social por meio do ceticismo sistemático na esfera pública, diz o autor dessa obra que merece tradução para o inglês e é leitura obrigatória para pesquisadores e divulgadores de ciência.
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Jornalista;
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