Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Da novidade à deformação da informação

Leão Serva escreveu um livro que, num país civilizado, seria leitura obrigatória no segundo grau. Além de bem escrita, a obra cumpre a insuperável finalidade de ensinar a ler, a interpretar e a preencher as lacunas dos textos que diariamente circulam com a finalidade de possibilitar ao cidadão exercer sua cidadania.

No primeiro capítulo, Serva trata do ‘pecado original’ do procedimento jornalístico. Após descrever de maneira detalhada como os conflitos nos Bálcãs se renovam e são sempre apresentados como novidades, demonstrando como o jornalismo expulsa a história do cotidiano do leitor, o autor assevera que as ‘…as notícias não deixam ver a história. Ao contrário, o sistema das notícias encobre a lógica profunda que está por trás da cortina de novidade’. Sendo assim, ao ler seu jornal ou revista, lembre-se que toda notícia é como um recorte de uma realidade contínua, que a mesma não pode ser corretamente lida sem ser inserida em seu contexto espacial e temporal.

No capítulo 2, o jornalista trata das limitações impostas ao jornalismo. ‘O jornalismo tem como matéria-prima o fato novo, desconhecido, que pode causar surpresa. E que por isso é confuso, incompreensível, caótico.’ Desta definição, podemos inferir que, em razão de sua própria finalidade e característica, o jornalismo está fadado a mutilar a realidade e a história. Leão Serva deixa bem claro que, ao invés de procurar proporcionar ao leitor uma compreensão profunda dos fatos que enuncia, o jornalismo se preocupa apenas com a novidade. ‘A novidade é a alma do negócio da imprensa. Nessa busca pela novidade, mesmo velhos fatos devem aparecer vestidos de novos, maquiados para voltar a surpreender.’

EUA admitem imperialismo

Durante o curto período da minha existência, acompanhei os seguintes conflitos militares em que os norte-americanos participaram direta ou indiretamente: Vietnã, Granada, Nicarágua, Panamá, El Salvador, Somália, Iraque, Afeganistão e Iraque novamente. A cobertura das guerras norte-americanas sempre foi feita como se cada conflito fosse uma novidade, e não parte da lenta e laboriosa construção de um império global. O imperialismo sempre foi retratado pela imprensa como sendo coisa de comunistas. Durante a Guerra Fria, não havia espaço para reflexão na grande imprensa. O conflito leste/oeste era retratado como EUA+capitalismo+bem x URSS+comunismo+mal. Mas a Guerra Fria acabou e agora até os comunistas são capitalistas e aliados dos EUA. Mesmo assim, uma parte da imprensa se recusa a tratar os novos conflitos dos EUA como fruto de seu imperialismo. A lógica do conflito capitalismo x comunismo, foi trocada por outra mais explosiva: cristãos x islâmicos. E é evidente que nesse contexto os EUA novamente se identificam com o bem, muito embora até as autoridades norte-americanas já admitam que comandam um império.

Em seu livro Crônicas da era Bush, Eliot Weinberger relata que um consultor sênior de Bush II disse ao jornalista Ron Suskind que ‘…somos um império agora e, quando agimos, criamos nossa própria realidade. E, enquanto você estiver estudando esta realidade, agiremos mais uma vez, criando outras novas realidades, que você poderá analisar também’. Mas é evidente que o imperialismo norte-americano não é novidade (os conflitos do Vietnã, Granada, Nicarágua, Panamá, El Salvador, Somália, Iraque, Afeganistão e Iraque novamente, que o digam). A novidade é que os próprios norte-americanos já admitem o imperialismo que a imprensa nega.

Processamento e compreensão

Não pedirei desculpas pelo longo desvio. Na verdade, esta digressão é fruto de uma reflexão amadurecida a partir da leitura de Jornalismo e desinformação.

No capítulo seguinte, Leão Serva afirma que através da imprensa ‘…o caos se harmoniza, se ‘civiliza’ nas páginas de jornal ou no noticiário do rádio, da TV, da internet ou de qualquer meio que se preste à informação’. O jornalista tem razão e não tem. Quando a atenção da cobertura jornalística se divide igualmente em face dos diversos fatos em curso, sua tese pode ser considerada verdadeira. Mas quando o noticiário se concentra freneticamente sobre um único evento, a própria imprensa produz um caos artificial em que fatos relevantes continuam a ocorrer sem o conhecimento dos cidadãos (ou em razão desse mesmo desconhecimento).

Foi o que ocorreu em relação à visita de Bento 16 ao Brasil. A imprensa fez uma cobertura frenética, intensa e incessante dos passos do papa. Em contrapartida, demonstrou uma imensa falta de interesse por outros fatos que também afetam as vidas dos cidadãos. No final de 2006, a imprensa ajudou a barrar o aumento abusivo dos salários dos deputados e senadores ao fazer a cobertura daquele fato. Pouco depois, em razão de dar muito espaço ao papa, deu aos deputados e senadores uma oportunidade de ouro que eles souberam usar para aumentar seus vencimentos e nossas despesas. Como o aumento se tornou fato consumado, a imprensa não se interessará mais pelo assunto porque o mesmo não é novidade.

Mesmo que tenham para o contribuinte um impacto financeiro desproporcional à cobertura (aumento dos salários dos deputados e senadores x visita de Bento 16), as notícias são narradas segundo uma lógica. Uma lógica desconhecida do leitor. Por isto, Leão Serva esclarece que a ‘…a classificação da notícia corresponde a um paradigma, uma associação com outras notícias e uma localização no plano de edição. Essa localização conota já algo sobre aquela notícia, pois o paradigma em que se inclui um texto determina todo o processamento e a compreensão posterior dessa informação pelo leitor – mais ou menos como dizer da reportagem ou do fato em si: ‘Dize-me com quem andas e te direi quem és’.’

Omissão, sonegação e submissão

Mas é evidente que nem mesmo o artifício da edição é capaz ampliar os limites do procedimento jornalístico. ‘Ao processar as notícias em função de sua capacidade de surpreender, os jornais deixam de buscar em primeiro lugar uma compreensão genuína dos acontecimentos – que poderia tirar a surpresa do leitor diante do fato.’ Novidade e surpresa são essenciais à atividade jornalística. É por isto que o jornalismo sozinho não pode nos ajudar a compreender a realidade. A compreensão desta demanda uma profundidade de análise e verificação de antecedentes que são incompatíveis com o dia-a-dia de uma redação.

A conclusão a que o autor chega é primorosa. ‘A necessidade de surpreender e os procedimentos usados pelo meio para esse fim explicam em parte a existência de tantos leitores que, embora metralhados diariamente por um sem-número de informações, nem por isso compreendem realmente a natureza dos fatos que consomem.’ É preciso dar a devida atenção ao vocábulo ‘consomem’. Ao usar o mesmo, o autor deixa claro que, antes de ser um bem cultural, a informação jornalística é um produto, uma mercadoria. Em termos marxistas, a notícia seria considerada uma mercadoria muito especial, porque não só produz alienação no seu produtor, mas também seu consumidor.

No capítulo 4, Leão Serva procura esclarecer de maneira detalhada os procedimentos através dos quais a imprensa produz desinformação. São eles: omissão, sonegação e submissão da informação.

Saturação e neutralização

‘Pode-se chamar omissão a ausência de informação, de qualquer natureza, causada por falta de condições do órgão de imprensa de obtê-la.’ A omissão é, portanto, uma limitação material ou econômica.

‘Por sonegação entende-se aquela informação que, sendo de conhecimento do órgão de imprensa, não foi colocada na edição por alguma razão.’ A sonegação não é fruto de uma limitação, mas de uma escolha consciente.

‘Por submissão entende-se o fato que, embora noticiado, tem uma edição que não permite ao receptor compreender e deter a sua real importância ou mesmo seu significado.’ A submissão pode ser fruto de uma limitação material desprezada em benefício da divulgação da informação parcialmente desconhecida. Mas também pode ser fruto de uma escolha consciente – a de dar menos ênfase a um assunto considerado sensível aos interesses do veículo.

Além dos casos de omissão, sonegação e submissão, a informação pode sofrer deformação. Leão Serva classifica corretamente a deformação como um caso extremo de submissão. ‘Quando a desinformação gerada por alguns casos de submissão é tão grande que chega a provocar a compreensão errada da informação, isso poderia ser chamado de deformação da informação.’

Já a desinformação funcional ‘…corresponde a um fenômeno definido pelo fato de que as pessoas consomem informação através de um ou mais meios de comunicação, mas não conseguem compor com tais informações uma compreensão do mundo ou dos fatos narrados nas notícias que consumiram’. Curiosamente, a deformação funcional pode ser produzida pela própria imprensa, na media em que a ‘…necessidade de surpreender e os procedimentos usados pelo meio para esse fim explicam em parte a existência de tantos leitores que, embora metralhados diariamente por um sem-número de informações, nem por isso compreendem realmente a natureza dos fatos que consomem’.

Nos capítulos 5, 6, 7 e 8, o autor trata respectivamente de diversos outros fenômenos jornalísticos que ajudam o leitor a compreender como a imprensa pode, paradoxalmente, realizar um propósito diferente daquele a que se destina. A saturação e neutralização, redução do fato e de sua compreensão, o volume de cobertura e a forma utilizada pela imprensa também podem desinformar. Apesar de ter assunto para muitas outras linhas, encerro esta resenha e remeto o leitor à obra cuja leitura é fundamental.

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Advogado, Osasco, SP