‘Por que os estudos teóricos contribuem pouco para melhorar o jornalismo? Deve ser porque os jornalistas lêem pouco sobre eles’, dispara Nelson Traquina, professor catedrático em Jornalismo do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa e autor de vários livros e coletâneas de estudos sobre jornalismo [ver relação no pé desta página]. Ele é também presidente do Centro de Investigação Media e Jornalismo desde sua criação, em 1997.
Nascido nos Estados Unidos, mas de nacionalidade portuguesa, Nelson Traquina garante que a investigação teórica e os estudos jornalísticos têm muito a contribuir no sentido de melhorar o cotidiano profissional e propor reflexões sobre o exercício da atividade. ‘O jornalismo é muito mais complexo do que o jornalista acredita ser’, afirma o atual coordenador do Departamento de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa.
Nesta entrevista, concedida em Lisboa, Traquina fala sobre o futuro do jornal impresso, da importância e poder que tem o jornalismo na atualidade, e diz defender a exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista – mas prefere que esta seja ‘uma exigência da própria sociedade e não o resultado de uma determinação legal’.
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Parece ter havido senão uma diminuição, pelo menos uma alteração na natureza da influência que o jornalismo exerce sobre os rumos da sociedade em suas diversas instâncias. Que movimento é esse e como o senhor define, hoje, o poder do jornalismo dentro das dinâmicas das sociedades ocidentais?
Nelson Traquina – Não houve alteração substancial. A importância do jornalismo continua tendo a ver com a projeção de acontecimentos, problemáticas e na maneira de defini-los: o seu agendamento. A teoria do agendamento, depois de 20 ou 30 anos de pesquisa, tem demonstrado como a mídia define a presença desses acontecimentos junto ao públicos – problemáticas sobre as quais, eventualmente, as pessoas não têm grande conhecimento. O jornalismo continua sendo muito importante numa realidade que é cada vez mais fragmentada, no sentido de que com certeza, hoje em dia, há uma grande multiplicidade de fontes possíveis de informação.
Essa é uma situação generalizada ou há variações muito fortes de país para país?
N. T. – Infelizmente, até hoje, tem havido pouca investigação comparativa. Portanto, essas diferenças de país para país carecem de maior investigação com estudos comparativos. Mas tomemos como exemplo a segunda Guerra do Golfo. Demonstra claramente a importância dos meios de comunicação social na definição das problemáticas – em particular, nesse caso, nos Estados Unidos, a maneira como a cobertura postou-se favorável à decisão dos Estados Unidos de se envolverem- na questão do Iraque.
Partindo da idéia de um mundo globalizado: valores, modismos, hábitos… as práticas e a narratividade da imprensa nos seus mais diversos suportes têm dado conta dessa complexificação do mundo? Ou seja, a necessidade, que parece imperiosa, de articular o global e o local?
N. T. – Há, digamos, uma potencialidade de globalização, mas qual a realidade dessa globalização? Penso que as pessoas em geral ainda não têm isso muito claro no seu espaço, na sua vida cotidiana. Vivemos ainda em espaços nacionais, com a exceção de alguns que, circunstancialmente, exploram essa globalização. As pessoas são dependentes de meios de comunicação ainda muito nacionais e muito locais. Além disso, com quem a pessoa troca e-mails? Em geral, com as pessoas da mesma nacionalidade, de sua mesma região. Há muito pouca gente que vive, digamos, num circuito global. E, portanto, eu acho que embora essa potencialidade de globalização exista, ainda continuamos marcados por circuitos definidos pelas fronteiras territoriais nacionais e locais.
Mas hoje a sensação não é de superação dessas demarcações… Seis décadas depois, por exemplo, da cobertura da Segunda Guerra Mundial, o público não se relaciona de maneira diferente com o noticiário internacional?
N. T. – Creio que sim, mas esse consumidor ainda é muito marcado pelo nacional. É claro que as condições hoje existentes facilitam isso também, mas duvido muito que uma porcentagem significativa das populações utilizem, por exemplo, a internet para ler jornais da França ou dos Estados Unidos – enfim, de um país que não seja o seu. Um ou outro caso pode até haver, mas a maioria das pessoas ainda tem essa prevalência do circuito local/nacional.
Que avaliação o senhor faz do jornalismo, especialmente agora com tanta multiplicidade de fontes de informação em função especialmente das tecnologias digitais?
N. T. – Digamos que o jornalismo está cada vez mais pressionado por questões econômicas. Isso pode traduzir-se ainda mais em limitações. Nomeadamente a investigação no jornalismo. Isso não impede, claro, que existam trabalhos jornalísticos valorosos. Quanto às novas tecnologias, elas agregam benefícios importantes também. E isso acaba por se constituir em uma ‘mais-valia’ que faz com que o jornalismo não seja visto de uma forma tão negativa. Acho eu que a evolução tecnológica, eventualmente, traz ‘mais-valias’ que fazem com que seja cada vez mais difícil controlar o jornalismo – como por exemplo, a multiplicação de fontes… Um avanço, por exemplo, em relação a 20 ou 30 anos.
E como vê essa preocupação de que as tecnologias digitais colocam em risco os jornais e o próprio jornalismo?
N. T. – Como não tenho 20 anos de idade, quero acreditar que a imprensa vai continuar existindo no futuro. Mas tenho que reconhecer que hábitos de leitura que existiam há duas décadas, hoje não existem mais. Percebe-se o afastamento do jovem do hábito de ler jornais e isso deve ser um alerta sobre o futuro do jornal impresso. Isso me deixa preocupado, ou seja, a falta de hábito de leitura entre os jovens.
Investir na formação de leitores pode ser um caminho, uma solução?
N. T. – Por que os jovens não lêem? Acho que não temos ainda uma boa compreensão desse fenômeno. E muito menos resposta. Temos que tentar melhor compreender as barreiras, o que faz com que as pessoas não leiam. E ainda não se descobriu uma estratégia para despertar o interesse dessas pessoas, ativar leitores. Não temos uma boa compreensão desse fato e isso me preocupa bastante.
As novas tecnologias colocam em questão também o jornalismo?
N. T. – Eu não tenho preocupações em relação ao jornalismo. Eventualmente, tenho algumas preocupações quanto ao jornal. Não sei se daqui a 20 ou 30 anos o jornal vai continuar a ser uma presença importante, mas o jornalismo com certeza, sim. Tem que haver alguém, afinal, que se ocupa de gerir a informação do dia-a-dia. De hierarquizá-la.
Entendendo que o jornalismo surge na era moderna, ele veio para definitivamente ser a ligação do indivíduo com o mundo?
N. T. – Sim, por que há cada vez mais informação. Um processo que tende a se intensificar e cada vez ficar mais complexo. E que exige que haja pessoas dedicadas a geri-lo.
Os estudos teóricos sobre o jornalismo apontam para caminhos, alternativas para superar as perdas e danos que a produção fragmentada e fabril da notícia acaba por provocar e que sempre foi denunciada por muitos desses estudos?
N. T. – Essa fragmentação é da própria natureza do jornalismo. Ser fragmentado. Ele se desenvolve muito em torno dos acontecimentos que desaparecem rapidamente, mudam de dia para dia. E ele tem que dar conta de acompanhar essa sucessão interminável de fatos. E as pessoas têm que entender, têm que reconhecer que o jornalismo tem limitações. E muitas vezes o jornalismo é encarado como se ele não tivesse essas limitações. E não são poucas, a começar pelo fato de estar tão ligado aos acontecimentos e ao cotidiano.
Mas o jornalismo acaba sendo muito criticado por áreas como a Filosofia, as Ciências Sociais por sua superficialidade e simplificações…
N. T. – São muito diferentes as perspectivas do ator que faz e a do leitor que analisa. E essas leituras que você citou são de pessoas que estão de fora do processo de produção. Portanto, desconhecem a realidade dessa prática, a jornalística, e, por conseguinte, as suas limitações.
Como explicar que nas últimas cinco décadas os estudos do jornalismo tenham avançado tanto, mas ainda parecem contribuir tão pouco para melhorar as rotinas das redações?
N. T. – Inicialmente, parece comprovar o fato de que as pessoas que fazem as notícias lêem pouco sobre o jornalismo. Estão pouco interessadas no estudo do jornalismo. E, com isso, há pouca troca de contribuições entre as pessoas que estudam jornalismo e as pessoas que, no dia-a-dia, fazem as notícias.
E há muitas contribuições que poderiam ser incorporadas ao fazer diário do jornalismo?
N. T. – Há contribuições para reflexão sobre o exercício do jornalismo e também para o trabalho cotidiano, principalmente no que diz respeito à compreensão dos seus limites. Mas é importante dizer que o jornalismo oferece, geralmente, bem mais do que se costuma identificar e reconhecer nele. Creio que muito do que o jornalismo faz de bom se perde por ele ter essa característica de ser um produto ‘do dia’, que se perde, pois quem vai se lembrar disso daqui a uma semana? Creio que há mais riqueza no jornalismo do que simplesmente a superficialidade. Isso não quer dizer que esta não exista, mas há contribuições valiosas do jornalismo para a sociedade que geralmente acabam esquecidas.
A impressão que se tem muitas vezes é que o jornalismo é uma operação intelectual muito mais complexa que o próprio profissional que a executa acredita ser. Há estudos teóricos a este respeito?
N. T. – O profissional jornalista trabalha com uma meta: completar o seu dia, fazer sua notícia, fechar o seu jornal. Há, diariamente, uma seqüência de desafios que os jornalistas têm que vencer para dar conta de seu trabalho. Isso faz com que os jornalistas não percebam as complexidades que realmente existem na sua atividade. Acima de tudo, eles querem realizar, cumprir a tarefa de hoje. Estão pressionados para que isso ocorra pelo fator tempo, além de vários outros. Por isso mesmo, têm dificuldade de reconhecer essas complexidades, ao contrário das pessoas que estudam o jornalismo. Isso acaba por levar o jornalista a circunstâncias, por exemplo, como a simplificações em uma cobertura.
Em uma determinada situação em que haja muitas divergências, ou seja muitas posições, ele tende a ouvir apenas o ‘a favor ‘ e o ‘contra’, sem ouvir outras opiniões, não tendo sensibilidade para outras divergências ali existentes que poderiam dar a real dimensão da informação. Mas, ao mesmo tempo, os formatos e a própria linguagem do jornalismo também constituem constrangimentos. E, daí, resultam algumas acusações como superficialidade e simplificações, sendo que há, digamos, uma obrigatoriedade de o jornalista tentar simplificar.
Há formatos que vão condicionar a maneira de se tratar o acontecimento. A começar pela ‘pirâmide invertida’. Leva a uma hierarquização das informações. É preciso ter um lead. O formato influencia pois o jornalista é levado a escolher um lead. Além disso, a própria extensão – em termos de linhas ou de tempo – da notícia condiciona bastante também.
O que prevalece na definição dos enquadramentos das diversas coberturas realizadas pela imprensa?
N. T. – Os enquadramentos se definem principalmente pelos acontecimentos a que estão relacionados e pelo tempo e maneira com que esses acontecimentos transcorrem e, também, pela própria cultura jornalística. De tal maneira que os enquadramentos impõem-se em função de fatores distintos e muitas vezes alteram-se durante o seu desenrolar. O enquadramento é a forma, a maneira como determinado acontecimento é tratado pela mídia.
Mas esses enquadramentos não são principalmente resultado de interesses de grupos?
N. T. – Têm a ver primeiro, como já disse, com os próprios acontecimentos e, depois, com esforços de promotores desses acontecimentos para que estes sejam vistos da maneira como eles tentam definir esses acontecimentos. Ou seja, as maneiras como determinados grupos envolvidos com esses acontecimentos querem que estes sejam percebidos e os efeitos que desejam que essa divulgação tenha. E tem peso também a própria cultura profissional jornalística que faz com que, eventualmente, se cerque e coloque uma marca nesses acontecimentos que, a partir daí, serão referidos dessa ou daquela maneira.
As discussões sobre a objetividade, imparcialidade ainda rondam o imaginário dos jornalistas ou pode-se dizer que ainda esses são pontos já ultrapassados?.
N. T. – De maneira alguma. E esses não são pontos de atenção e interesse apenas dos profissionais do jornalismo. É uma questão da sociedade. E são conceitos tão ligados ao jornalismo que as próprias pessoas têm dificuldade em deitar fora essa perspectiva de um jornalismo objetivo, imparcial. São valores muito defendidos e cobrados pela sociedade. As pessoas, em geral, esperam isso do jornalismo. E acabam sendo, também, critérios para avaliar a qualidade do trabalho do próprio jornalista. De forma que os jornalistas dificilmente podem escapar desses valores, pois estão muito identificados com o seu trabalho e a expectativa que dele tem a sociedade. Um veículo pode assumir posições, tornar-se partidário de teses, mas mesmo assim espera-se dele objetividade.
Por que estudar o jornalismo? É a pergunta que os teóricos se fazem neste momento. Qual efetivamente a contribuição que a universidade pode trazer para um jornalismo de mais qualidade?
N. T. – Primeiramente, sublinhar a complexidade do jornalismo e as dificuldades e desafios para o exercício da profissão. Seus limites. Ajudar a compreender os fatores que condicionam esse trabalho. Procurar sensibilizar, enfim, os profissionais para esses e muitos outros aspectos que denotam a complexidade de sua atividade. Discutir e refletir sobre essa profissão
O Brasil é um dos poucos países em que prevalece a exigência do diploma de nível superior para o exercício da profissão de jornalista. Qual a opinião do senhor em relação a esta exigência?
N. T. – O Brasil é um dos poucos países em que existe essa exigência e creio que nesse sentido está à frente dos outros. Não sei se os outros chegarão lá. É um aspecto que considero positivo, mas gostaria que fosse, antes, uma conclusão, uma exigência da própria sociedade. Sem leis que a obrigasse a chegar a essa conclusão. Mas importante é salientar que cada vez mais vai se exigir do jornalista uma competência na área específica. E tomara que os outros países cheguem à conclusão que o caminho adotado pelo Brasil – a exigência do diploma – é correto e deve ser seguido.
O jornalismo está cada vez sendo mais criticado precisamente pelo papel importante que tem – e isso, por si só, já denota a necessidade de competências específicas para que o profissional possa corresponder às exigências. E creio que, mais cedo ou mais tarde, muitos países vão acabar seguindo o Brasil nessa exigência.
Mas na Europa, por exemplo, o Processo de Bologna parecer apontar para direção oposta, em termos do ensino universitário…
N. T. – Digamos que há muito pouco consenso sobre isso. Há muitos caminhos propostos e em discussão. O que sei é que há cada vez mais reflexões e um consenso sobre o papel do jornalismo na sociedade com o entendimento de que é cada vez mais difícil exercer a profissão. Mas, ao mesmo tempo, não sei bem se há entendimentos sobre a melhor maneira de se solucionar problemas neste momento. Nos espaços de poder, há, enfim, a todo momento, declarações que apontam para a importância do jornalismo e, ao mesmo tempo, críticas sobre o papel que ele vem cumprindo na sociedade contemporânea. Mas não há ainda consensos sobre a maneira de responder a esses desafios.
O senhor defende a exigência do diploma para o exercício do jornalismo em Portugal?
N. T. – Eu nunca defendi, mas penso que, com o tempo, vai se chegar a essa conclusão. Como disse, gostaria que a própria sociedade chegasse a essa conclusão. Mas há interesses diversos, como os de natureza econômica, que apontam para outras soluções. Para os donos de veículos, certamente, não há interesse na exigência de uma formação específica em jornalismo pois podem encontrar mão-de-obra mais barata que aquela licenciada.
Mas, como tese genérica, o senhor defende a exigência?
N. T. – Eu penso que vamos chegar a essa situação. Vai se exigir cada vez mais do profissional uma qualificação específica. Creio ser inevitável.
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Livros de Nelson Traquina
Teorias do Jornalismo – por que as notícias são como são, Florianópolis, Editora Insular, 2004
Teorias do Jornalismo – a tribo jornalística: uma comunidade interpretativa transnacional, Florianópolis, Editora Insular, 2005
O Que é Jornalismo?, Lisboa, Quimera, 2002
O Estudo do Jornalismo no Século XX, São Leopoldo (Brasil), Editora Unisinos, 2001
O jornalismo português em análise de casos (em co-autoria com Ana Cabrera, Cristina Ponte e Rogério Santos), 2001
O poder do jornalismo: Análise e Textos do agendamento, Coimbra, Minerva, 2000
Journalism in the Year 2000 (Jornalismo 2000), Traquina, Nelson (Org) (2001) issue of Revista de Comunicação e Linguagens, Nº. 27
Big Show Media: Viagem pelo mundo do audiovisual português (Big Show Media: Voyage Through the Portuguese Audiovisual World). Lisbon: Editorial Notícias, 1997
Jornalismo: Questões, Teorias e ‘Estórias ( Journalism: Questions, Theories and Stories) Editora: Vega, 1993
O Quarto Poder Frustrado: Os Meios de Comunicação Social no Portugal Pós-revolucionário ( The Frustrated Fourth Estate: Portugal’s Post-Revolutionary Mass Media System) Editora Vega, 1988
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Jornalista e professor do Curso de Comunicação da PUC-Minas