Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Impacto ambiental, colunismo e anacronismo

Pela primeira vez, entrei no blog da colunista Tereza Cruvinel, de O Globo. Tive essa curiosidade porque, ao acessar a versão online do jornal, deparei-me com o link do blog da jornalista, e lembrei que há poucas semanas ela engrossou o coro dos afoitos pelo rápido licenciamento ambiental da construção das usinas do Rio Madeira.


O brado da colunista pela liberação das obras sob a retórica da necessidade de investimentos urgentes em infra-estrutura – entenda-se resolver tudo com megaconstruções – talvez não tenha sido um mero desdobramento da Operação Madeira, como bem explicou o jornalista Carlos Tautz. Vejam a performance de Cruvinel, abrindo o coração em seu post:




‘Não é fácil amar Brasília, a fria, a distante, num país que não se orgulha de tê-la plantado aqui, onde só os lobos uivavam, para que a civilização dos caranguejos, o Brasil que vivia agarrado à costa, pudesse apossar-se de sua vastidão esquecida, empurrando a civilização costeira até a Amazônia.’ (http://oglobo.globo.com/blogs/tereza/post.asp?cod_Post=55339)


Longe de mim dar uma de ecochato com o apelo ao chavão da ‘cumplicidade com o modelo vigente’ e coisas do gênero. Mas é preciso estar muito por fora do que o mundo aprendeu nas últimas décadas para dizer uma bobagem como essa, que nem mesmo as grandes corporações se atrevem a propalar.


O problema não está na menção à ‘civilização dos caranguejos’, inspirada nas palavras do primeiro historiador brasileiro, Frei Vicente de Salvador (1564-c.1635), em sua História do Brasil, mas no apelo ao bordão do avanço sobre a ‘vastidão esquecida, empurrando a civilização costeira até a Amazônia’.


Pingos nos is


Tamanho é o anacronismo dessa retórica, que ela se enquadra perfeitamente no espírito predatório brilhantemente caracterizado por Sérgio Buarque de Holanda em sua obra Raízes do Brasil e por Warren Dean, em seu livro A Ferro e Fogo: A história da devastação da Mata Atlântica.


Vale lembrar como o tema das usinas do Madeira tem sido tratado por grande parte do jornalismo opinativo. Por exemplo, no Globo, na edição de 26/4, o editorial ‘Risco ambiental’ (pág. 6) afirmou que excesso de burocracia somado com a ação de ‘grupos ambientalistas radicais’ paralisa inúmeros projetos do PAC e, citando o caso do Madeira como exemplo, afirmou: ‘O Ibama já avisou que não há sequer prazo para decidir sobre a licença’.


Por outro lado, nessa mesma edição, a coluna de Míriam Leitão, sob o título ‘Conflito das usinas’, pôs os pingos nos is:




‘Pelos próprios cálculos de vida útil das usinas do Rio Madeira, ao final de dez anos, os sedimentos seriam 10% do lago, ou seja, metade estaria assoreada. E quem disse isso não foi o Ibama, mas o estudo de impacto ambiental feito pelas empresas que querem construir as hidrelétricas. Por todas as dúvidas, o Ministério do meio Ambiente ainda não tem prazo para conceder a licença prévia das usinas.’


‘Estudo mentiroso’


No dia seguinte (27/4), a coluna de Tereza Cruvinel (‘Usinas: cruz e caldeirinha’, pág. 3), sem fazer as contas com os números apresentados por sua colega, fez o que nem o editorial do dia anterior se dispôs a fazer, embarcando na chantagem da retórica do apagão energético. Disse que sem as usinas do Madeira será preciso apelar para Angra 3 e mais termelétricas a carvão, impedindo o Brasil de honrar os compromissos de redução de emissão de gases-estufa.


Mas, nessa mesma edição, pelo segundo dia consecutivo, Míriam Leitão bateu novamente como se deve nessa retórica chantagista em sua coluna ‘MMA x MME’, descaracterizando as usinas do Madeira como alternativa viável e, de quebra, lembrando o caso do estudo de impacto ambiental da Usina Hidrelétrica de Barra Grande, no vale do Rio Pelotas, na divisa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que começou a operar em 5 de julho de 2005:




‘Num país normal, os autores de um estudo tão mentiroso seriam responsabilizados criminalmente. No Brasil, valeu a lei do fato consumado. Quando se descobriu a mentira, a barragem estava pronta e a mata levou a pior: foi alagada.’


E é assim, como mostra Míriam Leitão, que nosso país tem avançado sobre sua ‘vastidão esquecida’.

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Jornalista, editor do blog Laudas Críticas