Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A imprensa em mutação

Não tem sido registro raro, nos últimos tempos, noticiário a envolver afirmações seguidas de desmentidos acerca de matérias jornalísticas. Repórteres fraudulentos (caso Jayson Blair), reportagens maldosas (caso Larry Rohter, ‘um João-ninguém’, segundo matéria de Mino Carta, em CartaCapital, 19/5/04) e, agora, o mea culpa oficial que o New York Times assume perante seus leitores, no tocante à tendenciosa cobertura que o jornal deu ao tema bélico-operístico sobre a invasão no Iraque.

É bem verdade que os três assuntos curiosamente batem à mesma porta: os estranhos corredores do suntuoso jornal americano. A coincidência – vamos por precaução crítica assim considerar – não significa, porém, um problema setorial que porventura esteja a rondar um dos mais importantes jornais do mundo. Não é de todo impensável que, em outros veículos da imprensa, as razões geradoras de tais fatos inexistam. E se ainda não existem, nada impede que, de um momento para outro, ocorram. O que, portanto, importa como aspecto para análise é tentar compreender o processo alimentador da fraude.

Cadeia do capital

O NYTimes, na verdade, está possibilitando que venha a público a existência de uma espécie de ‘central do estelionato’ na ‘indústria da notícia’. As motivações podem ser variadas: profissional inescrupuloso, irresponsabilidade editorial ou interesses empresariais. Para cada fato poderá corresponder uma razão específica, cujo esclarecimento decorreria de sindicâncias próprias. Também não é essa a questão a merecer aqui foco especial.

O que, a rigor, deseja-se pontuar se refere à mutação pela qual passa a esfera jornalística, no mundo, em geral. É, pois, uma nova concepção de jornalismo que progressivamente se vem instalando e encontra, como área de conflito, uma estrutura oriunda de outra realidade na qual o peso do compromisso com a verdade dos fatos, a apuração e a isenção se torna cada vez menor. Na contrapartida, situam-se interesses que unem, ora como parceiros, ora como adversários, empresas de comunicação, governos e a rede de negócios em geral. Nesse novo quadro de relações quem sofre é a notícia no seu sentido antigo.

Em outros tempos, os jornais se alinhavam a essa ou àquela tendência por vinculações subjetivas: afetos, pequenos favorecimentos, identificação político-ideológica, laços de parentesco. No novo quadro, entretanto, as exigências têm outra origem: redes estratégico-objetivas. Nestas, os parâmetros de conduta são alterados e ditados por lógicas transversas e perversas. Nelas, o ‘erro’ e o ‘delito’ encontram ramificações complexas.

Cada vez menos, os jornais podem noticiar as coisas do mundo na dimensão de suas reais e verdadeiras implicações, dados os elos que integram a cadeia do capital. O que resta como noticiário é o vasto campo das ‘plantações de abobrinhas’. Não faz muito tempo que uma das edições televisivas do Observatório da Imprensa tematizava exatamente essa questão: a proliferação do ‘noticiário-abobrinha’. Na ocasião, terá escapado ao crivo dos entrevistados esse ponto: os jornais oferecem, cada vez mais, espaços para preenchimentos e a lógica estruturante da realidade permite, cada vez menos, o exercício da efetiva liberdade de expressão.

Percepção ingênua

Como pano de fundo dessa intrincada realidade, talvez se faça mais nítido o projeto de conferir aos cursos de comunicação um perfil progressivamente mais técnico, como forma de contenção de olhares mais críticos e exigentes, lógica também estendida a postos de chefia que, crescentemente, têm sido destinados a profissionais recém-saídos das universidades.

Quem atua no meio sabe quanto é freqüente, nas editorias e nas elaborações de pauta, avaliações do tipo: ‘isso não pode’, ‘aquilo nem pensar’, ‘cortam a minha cabeça’, entre outras… Não se trata bem de censura à imprensa. É apenas novo estágio no desdobramento do capitalismo das corporações, tornando áreas, antes autônomas, em amplos setores interdependentes.

Nesse presente quadro, é ingênua a percepção acerca de uma atividade à altura de ser exercida com plenos e irrestritos poderes. Uma notícia, dependendo do veículo a divulgá-la, pode levar à bancarrota, num só dia, a economia periférica de um país – entre outros, o Brasil. À ampliação da complexidade do mundo, equivale a responsabilidade de quem a respeito dos fatos do mundo cabe a tarefa de selecionar e, sobre o escolhido, escrever. Obviamente que tais observações não refletem o desejo – menos ainda, o endosso – do articulista. Ao contrário, sinalizam preocupações quanto ao devir.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro