Autor do clássico De los medios y las mediaciones, presidente da Associação Latino-americana de Investigadores em Comunicação, doutor em Semiótica em Paris, professor honorário de faculdades de Comunicação da Europa, EUA e América Latina, o colombiano (nascido na Espanha) Jesus Martín Barbero proferiu palestra sobre ‘Comunicação e Sociedade’ na segunda-feira (14/1), no Salão de Grados, para alunos e professores da Universidade Pablo Olavides, em Sevilha, Espanha. A mesa-redonda foi coordenada pela antropóloga Macarena Ramírez.
Começou dizendo que em julho de 2007, a convite do ministro da Cultura do Brasil, Gilberto Gil, participou de um encontro em Brasília com a presença dos ministros da Cultura de todo o continente americano. Disse que foi um encontro formidável, baseado no tema Diversidade Cultural e Convergência Digital, com ampla troca de informações e de experiências. Mas acrescentou que ‘as permanentes homenagens à diversidade cultural são, de um modo geral, inversamente proporcionais às políticas que protegem essa diversidade’.
Na opinião de Jesus Barbero, uma nova institucionalidade sobre as diversidades culturais só surgirá a partir de políticas públicas e de vontade política do Estado-nação em interação com a sociedade. Ele percebe uma desagregação social crescente no mundo moderno e considera que isto vem se agravando desde a implosão política da União Soviética, lembrando, inclusive, que Stalin foi um artífice dessa desagregação inicial quando, para romper a força política das etnias, trasladou milhões de pessoas de um lugar para outro, liquidando suas culturas e seus costumes.
A escola parou no tempo
Em tempos mais recentes, Barbero vê um fanatismo preocupante como conseqüência dos atentados de 11 de setembro. Entretanto, não considera que se devam atribuir todos os problemas do mundo moderno ao choque de civilizações. E explica:
‘Essa explosão em forma de nacionalidades, de convicções religiosas, de extremismos etc., nos coloca frente ao processo de identidade cultural e social. Hoje há grupos cuja luta é tirar outro grupo do lugar e tomar o lugar dele…é um contra-senso. Nos EUA, as etnias sofrem mais indiferença hoje do que nos anos 60. Hoje, o negro norte-americano tenta se vingar no latino, ao invés de unirem ao sonho da fusão de povos prevista por Luther King. O colombiano que vai morar nos EUA, quando volta está tão xenófobo quanto os norte-americanos. Então, temos de um lado a dimensão cultural dos conflitos e, de outro, diversas etnias implodindo-se mutuamente, ao invés de se fortalecerem na solidariedade. Mas o problema não está no confronto de civilizações, e sim, na crise do sujeito social.’
Jesus Martín Barbero observa que atualmente o sujeito tem uma identidade precária, dividida. Não existe mais o referencial seguro do mundo da razão, cartesiano, platônico. Como observam Bachelard e Castels, essa visão cartesiana do sujeito explodiu. E essa explosão da identidade decorre da crise das instituições tradicionais, como a família, a escola, a política, o trabalho: ‘A família patriarcal não existe mais. Os casamentos se tornaram precários… e isto não ocorre por causa de algum tipo de neurose, ou qualquer outro problema psicológico, mas sim, porque cada um vai desenvolvendo seus próprios projetos de participação no mundo, algo impensável no patriarcado. A política perdeu a credibilidade. O trabalho não tem nem a metade da segurança de vinte anos atrás e isto vai se agravando. A escola ficou parada no tempo e foi ultrapassada pelas novas tecnologias.’
Índio vai à Universidade
Para o palestrante, seguindo ainda um raciocínio de Castels, se não podemos nos identificar com o trabalho ou com a política, então nos identificamos com o que temos, isto é, nós mesmos, nossas crenças pessoais, a sexualidade, os sectarismos… e assim a solidariedade está desaparecendo. O jovem de hoje não é mais solidário no sentido de que os idosos tenham a merecida e boa aposentadoria. Os próprios jovens sofrem esse processo de perda de referenciais, de identidade, de precarização da subjetividade. Quando vão procurar trabalho, o que as empresas pedem é que eles estejam seguros do que querem e tenham iniciativa própria… mas onde eles vão conseguir isto no mundo moderno? Não existe mais uma sociedade assim.
Barbero pergunta, então: ‘Como viver e conviver em um mundo de tanta diversidade em que cada um é cada um, não por segurança, mas por falta de opções?’ Para ele, a solução está em aceitar o processo histórico, isto é, abrir mão dos dogmatismos, dos preconceitos, da visão fechada de mundo, das idéias pré-fabricadas por outros e aceitar a incerteza… abrir espaço para o novo, a experienciação, a cultura do outro, para a alteridade. Por que? Pelo menos, porque precisamos compreender que não somos o umbigo do mundo. Nenhum de nós é.’
O palestrante cita os índios como exemplo: ‘Eles foram desprezados, tiveram sua cultura espezinhada durante séculos por conquistadores, monges e intelectuais. Hoje, os antropólogos são mais nostálgicos que os índios. Quanto aos índios, sejam os Mapuches no Chile, os Sabatistas no sul do México, ou em qualquer outra parte, no Equador, na Bolívia, no Brasil, não lutam apenas por suas terras, lutam por um protagonismo social, pela inclusão cultural, pela participação no processo. Eles não têm nenhum problema com a modernidade, e sim com o uso que a modernidade tenta fazer deles. Hoje, o índio vai à Universidade e propõe pesquisas de doutorado, como ocorre no sul da Colômbia.’
O saber, enjaulado em ‘feudos’
O palestrante também analisa a outra face do mundo moderno, correlacionando técnica e tecnicidade. Para ele, o que está ocorrendo é uma mutação da tecnicidade. E explica: ‘A técnica não era, no mundo passado, um conjunto de objetos isolados. Desde sempre, a técnica é tecnicidade, é sistema técnico. No ocidente, a técnica é vista como puro instrumento, como analisa Heidegger, enquanto Habermas acha que a ideologia é mais importante que a técnica… e, certamente por isto, é que nunca se entendeu com seus amigos Benjamim e Adorno. Hoje, a técnica é ecológica, é sistêmica. A nossa relação com a informação, por exemplo, é ecológica, pois sabem tudo de nós… Também vemos que a tecnologia, hoje, não é mais multiplicadora de energia para substituir os músculos, a força física do homem. Bom exemplo é a internet, que não tem nada a ver com uma máquina, é uma união de cérebro e informação. Estamos diante de uma tecnicidade que nos molda, nos estrutura, nos conduz.’
Todavia, o conhecimento humano cresce através da pesquisa, do trabalho em equipe, da reflexão, portanto o computador ajuda, mas não substitui a iniciativa e a inventividade humana, na avaliação de Barbero. ‘Outro aspecto é que o uso da internet exige que saibamos escrever e saber escrever é o diferencial entre as culturas, como se deu na conquista da América. Tanto assim que Paulo Freire, com quem trabalhei em alguns projetos, sempre insistia na alfabetização dos adultos, pois queria que os adultos pudessem escrever para transmitir a sua história, os seus conhecimentos.’
Jesus acha que tecnologias como a internet nos situam no umbral de um novo tempo, pois do mesmo modo que o mundo começou a evoluir mais rapidamente quando o conhecimento saiu do enclausuramento, com a internet ninguém é dono do conhecimento: ‘A maioria dos saberes não pede permissão à escola ou à Universidade para circular na sociedade. Esta é a grande revolução. E o melhor da internet é que ela se ri dos que tentam impor-lhe limites e alambrados… Aí está uma chave do deslocamento do saber, enquanto em algumas universidades o saber está enjaulado em ‘feudos’… um é dono de Aristóteles, outro é dono de Hegel, outro é dono desta ou daquela disciplina… e, em certos casos, as teses e dissertações dormem nas bibliotecas ao invés de circularem na sociedade…’
Cultura como ‘sentido de vida’
Na opinião de Jesus Barbero, as novas tecnologias de comunicação e a participação dos jovens são as duas forças que estão mudando o mundo e farão surgir um novo tempo. Ele não concorda que a internet seja um instrumento de alienação do jovem: ‘Dizem que o jovem se dissocializa porque fica mito tempo na internet. Em Guadalajara (México), fizemos uma pesquisa e constatamos que o lugar onde o jovem prefere fazer suas atividades acadêmicas não é em casa, não é na escola, é no cibercafé, onde estão juntos. Não podemos pensar que o uso intensivo da internet empobrece o jovem, pelo contrário.’
Ele cita a antropóloga Margareth Mead como a primeira a perceber, no final dos anos 1960, que a construção do novo mundo passa pelos jovens, especialmente pelo seu modo de se relacionar com as novas tecnologias: ‘Com o barulho que fazem, os jovens estão tentando nos dizer coisas e a Universidade é o lugar onde eles podem trocar informações e experiências. É a partir dessa troca que se pode criar uma nova cidadania, um novo modo de ver o mundo, na sua complexidade multifacetada. Portanto, antes de tudo, é preciso incluir o jovem. Infelizmente, na América Latina, a escola ainda deixa o jovem de fora.’
(Intensamente aplaudido ao concluir sua fala, o professor Barbero respondeu em seguida a algumas questões levantadas pelos presentes. O professor de Antropologia da Comunicação da Universidade Pablo Olavides, Antonio Mandly, participante da mesa de debates, disse que hoje é o mercado quem conduz e educa as pessoas, especialmente os jovens, através dos modismos, do consumismo etc. Perguntou se é possível, hoje, consumir outros modos de ser).
Assim respondeu o palestrante:
‘O que chamávamos ‘costumes’ antigamente, hoje os jovens chamam ‘estilo de vida’. Assim, podemos dizer que ‘modos de ser’ acabam sendo uma junção dos dois. Walter Benjamin já destacava a necessidade de se manter a diferença entre Sentido e Valor. No discurso sobre a reprodutibilidade técnica, ele criticava a coisificação dos bens culturais. Mas hoje o capitalismo não se limita a transformar a cultura em objeto de lucro, também quer substituir a cultura como sentido de vida, quer produzir sentido, modo de ser, estilos de vida ofertáveis, vendáveis’ [por isto os manuais de auto-ajuda fazem sucesso,grifo nosso].
A produção do conhecimento
O decano da Faculdade de Comunicação da Universidade de Sevilha, professor Francisco Sierra Caballero, observou que o conhecimento tem uma função política na representação identitária do sujeito e que a Unesco afirma a importância da memória na construção da sociedade.
‘Toda cultura tem parte em comum com outra cultura. Por isto podemos nos comunicar. Uma cultura tem que traduzir a outra, como diz Paul Ricoeur. E o lugar onde se pode negociar com o global é no local, na cultura e nos costumes locais, a partir da memória local. É a partir do local que se podem discutir os efeitos mais perversos da globalização. A maneira como se coloca a abordagem local dos problemas lhe dá grande poder de negociação. É o caso, por exemplo, de um general latino-americano que foi demitido por ter ordenado o massacre de 128 índios… Mas isto só foi possível porque uma ONG local descobriu documentos comprobatórios que haviam sido retirados do país e, contando com cooperação externa, viabilizou a punição do militar, algo que nunca teria ocorrido sem essa conexão à revelia do estado. Essa interculturalidade deve existir em toda parte. Eu estava em Paris, por exemplo, quando a União Européia criou o Banco Central. Fiquei esperando a criação do Ministério Europeu da Cultura e da Educação mas até hoje não foi criado.’
O palestrante também concordou com o professor de Psicologia da Comunicação, Daniel Ramírez, catedrático de Psicologia da Comunicação e participante da mesa, que comentou a mutação da tecnicidade. Segundo ele, a internet tem hoje a capacidade de distribuir conhecimento sem hierarquia, pois antes só quem tinha poder tinha conhecimento. Hoje, o conhecimento está aberto a todos e a internet mostra que ele não pode ser controlado, do mesmo modo que no século 19 se multiplicou a produção de conhecimento que o poder também não podia controlar, como foi, por exemplo, a literatura operária.
A relação subjetividade/objetividade
Uma professora, na platéia, levantou um questionamento sobre a perspectiva de gênero na comunicação e na sociedade. Ao responder, o professor informou que ‘na América Latina, é cada vez maior o número de mulheres pesquisando nessa área. Elas pesquisam a ciber-literatura e sabem lidar melhor com a escrita não linear do hipertexto. Tenho um grupo de alunas pesquisando uma tecnologia para potencializar outras dimensões do corpo feminino, mais além da exploração capitalista que reduz o corpo da mulher a instrumento de venda e promoção. Acho que o século 22 será o século das mulheres’.
Um professor perguntou se, na opinião de Jesus Barbero, a crise atual é passageira, uma transição de épocas até que se criem novas instituições, ou é permanente. Ele respondeu:
‘Entendo que estamos no umbral de um novo tempo. Como ocorreu com a invenção da escritura, no paleolítico. É difícil saber como se aglutinará o que sobrar de memória e identidades. Vemos, por exemplo, que o liberalismo está apenas começando a tomar conhecimento das diferenças. Só agora, o universo político e dos direitos começa a pensar em nova cidadania, nova democracia, só agora se manifestam os homossexuais, o feminismo. Só agora os governos percebem essa demanda da sociedade, das identidades individuais, dos direitos de terceira geração. É difícil saber como vai ser porque não há parâmetros. Estamos vivendo um segundo estágio da secularização. Primeiro foi a separação do Estado, agora é a separação do sujeito, sua afirmação perante as instituições clássicas. É a construção da relação subjetividade/objetividade.’
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Professor de Jornalismo na Universidade Estadual Paulista -Unesp, campus de Bauru-São Paulo, está realizando estudos pós-doutorais na Faculdade de Comunicação da Universidade de Sevilha sob supervisão do professor Francisco Sierra Caballero, na linha de pesquisa Comunicação e Sociedade, de setembro de 2007 a março de 2008, com bolsa da Pró-Reitoria de Pesquisa da UNESP/Santander