As práticas do jornalismo especializado parecem padecer de grandes complicações e permanentes riscos: reiteração quase que constante de situações, fatos e, por conseguinte, entrevistas com as mesmas fontes, uma excessiva proximidade com estas mesmas fontes, uma especialização que cria, muitas vezes, a tentação para o jornalista de que este se sinta um especialista não na cobertura da área, mas dela própria… e por aí vai.
Cito como exemplos mais contundentes o jornalismo policial, o esportivo e o cultural. Não são incomuns as cenas explícitas de atropelamento da ética jornalística. Omissão, cumplicidade e tietagem são problemas típicos e armadilhas em que os repórteres – às vezes, independentemente da experiência que possuem – acabam caindo. Certamente que há a cobertura feita com correção e distanciamento crítico necessários. Mas os deslizes, quando existem, geralmente não são pequenos e acabam por reforçar os vícios de um jornalismo que mais parece uma ação entre amigos. De uma priorização e relevância da versão oficial. De uma camaradagem que preserva, transforma absurdamente a narrativa em lugar de perdão ou de promoção do ‘amigo’. Ou o contrário de tudo isso: de perseguição e injustiça contra alguém.
Confesso minha angústia – e certo arrependimento, hoje – ao lembrar-me da maneira como durante anos fazia diariamente matérias pela manhã ao vivo da Sala de Imprensa da Polícia Militar, em Belo Horizonte (na verdade, a sala de imprensa do Comando de Operações da Polícia Militar de Minas Gerais, o Copom) para a Rádio Globo. Prática comum entre as emissoras de rádio e mesmo de TV, a partir de uma sinopse oferecida pela PM fazíamos logo pela manhã um ‘apanhado’ do que de mais importante tinha acontecido de crimes e violência à noite e de madrugada: roubos, estupros, assassinatos, prisões, assaltos etc. Dávamos à sinopse uma cara de texto midiático e pronto. Só mesmo um crime bem grave mereceria a ida da reportagem até o local ou então à delegacia indicada ou ao Pronto Socorro.
Palco da ilegalidade
A sala de imprensa do Copom era um lugar curioso. A informação quente circulava bastante ali. Sargentos, cabos e soldados sempre eram, conosco, os jornalistas, de uma enorme simpatia. O local tornou-se ponto de passagem quase obrigatória para repórteres da área policial. Além disso, o contato pelo telefone das redações com as atendentes, em busca de novidades, era intenso e permanente. O que para as emissoras mostrou-se uma solução eficiente, ágil e, o mais importante, barata, para o público constituiu-se em grande prejuízo no que diz respeito à correção e à veracidade da informação. Foi uma época em que as emissoras institucionalizaram a versão oficial da polícia (leia-se Estado) como fonte praticamente exclusiva da informação.
É importante salientar que o serviço oferecido pela PM era de razoável qualidade e, como já disse, de muita presteza. A questão está na opção das emissoras (admitida, claro, pelos jornalistas) em contentar-se em utilizar de maneira escancarada e uniforme o que a PM selecionava e divulgava. Honestamente, sinto arrepios quando me lembro dos assassinatos, arrombamentos e prisões que noticiei sem ter a mínima idéia de como realmente ocorreram e nunca ter visto pela frente seus agentes e vítimas. Era a mediação da mediação.
Mas o equívoco não parava por aí. Não bastasse a sinopse como fonte direta de informação, a sala de imprensa do Copom foi, por anos, palco de ‘apresentação’ de criminosos presos nas ações da Polícia Militar. Acusados de terem cometido os mais diferentes tipos de crime, presos em flagrante eram diretamente levados para a Sala de Imprensa. Eram encostados em uma parede (que tinha um enorme logotipo da PM mineira) para serem entrevistados pelos repórteres. E ali narravam suas aventuras e desventuras. Certamente os autores da prisão também ficavam à disposição para entrevistas.
Interrogadores e justiceiros
Enfim… o paraíso para o jornalismo que se diz objetivo, mas é essencialmente preguiçoso: os dois lados do caso na mesma hora, no mesmo lugar e a história já mastigada. Foi assim por muito tempo. Até que alguém dentro da PM se deu conta de que a prática era absurdamente ilegal. Os criminosos, por maior que fosse a certeza da culpa, estavam ainda apenas detidos. Contra eles sequer havia sido aberto um inquérito policial, o que deveria acontecer em uma delegacia – para onde não tinham sido levados. Não podiam, portanto, ser ‘apresentados’ à imprensa.
Certo é que o desvio não residia na oferta de informações que a PM fazia e ainda faz à imprensa, mas na decisão dos jornalistas em aceitá-la como verdade. Versões oficiais sempre existem em qualquer área. E é até inevitável que seja assim, mas devem ser entendidas como tal. O ofício da busca e designação da informação cabe ao jornalista e ao veículo em que atua e nada justifica, na construção da notícia, as opções mais simples e acomodadas.
A lembrança da movimentada sala de imprensa do Copom (hoje, sinopse e ocorrências em andamento são obtidas diretamente no site da PMMG) é uma oportunidade para pensar como as práticas jornalísticas facilmente aderem a ritos. Oportunidade também para pensar os fundamentos e os limites da cobertura especializada. No caso do jornalismo policial, se a apuração nunca poderá satisfazer-se com uma fonte exclusiva e oficial, o trabalho do repórter deve ser – imagina-se – o de um confiável mediador e repositor da chamada cena primária, ou seja, o fato como ele potencialmente aconteceu. Tendo, claro, para isso, que recompor o acontecimento dentro de suas angulações diversas e seu contexto.
Se não cabe a simples divulgação do que a polícia informa, também são questionáveis as posturas que alguns profissionais acabam assumindo de interrogadores em vez de repórteres, de justiceiros no lugar de comunicadores. Quando a postura do jornalista está mais para policial-repórter, a notícia é a primeira vítima.
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Professor da PUC Minas e diretor da PUCTV