Os jornais que circulam atualmente pelas bancas assemelham-se a cadáveres sem cova. E, como tais, só atraem parentes próximos, amigos íntimos de longuíssima data e interesseiros, feito urubus e outros rapineiros que rondam carniça. O que se vê e neles se lêem são meros epitáfios de uma realidade antiga, empoeirada e sem viço como as múmias.
As afirmativas acima, com toda certeza, soam fortes demais para os fracos de estômago, para os ingênuos alienados ou para os conformistas. Principalmente para os que são donos desses defuntos de celulose e tinta e os embalsamadores de fatos: os jornalistas acomodados, egocêntricos e alienados. Mas, não tenho dúvidas de que expressam uma verdade inescapável e fatalista como aquela outra que assevera que toda forma de vida caminha inexoravelmente para a morte.
A perda constante de leitores que os jornais impressos sofrem em todo o mundo é um sintoma claro de que estes têm sido incapazes de oferecer aos leitores o que eles mais precisam: informação nova, confiável, coerente, isenção na apresentação dos fatos e acontecimentos, honestidade na interpretação e análise da realidade, ética na escolha do foco dado à cobertura dos assuntos em pauta e, principalmente, mais respeito ao interesse público e menos ênfase para as ‘curiosidades’.
Distante da luz do Sol
O jornalista Ricardo Noblat, que em seu livro A arte de fazer um jornal diário, a propósito do problema de início sentencia que jornalistas e donos de jornais lhes parecem empenhados em acabar com os jornais de forma deliberada ou então são todos muito burros e não vêem que estão destruindo o jornalismo com suas atitudes pedantes, seu conformismo, sua ‘preguiça’ de apurar e arrogância ao ignorar solenemente os interesses do público em favor dos interesses dos poderes econômico, político e das vaidades pessoais. Alguns acham que Noblat é um radical que exagera na acidez da crítica. Mas, poucos discordam de sua análise. Eu me coloco entre os que, como Noblat, andam céticos e irritados com o que se vê, ou principalmente, com o que se gostaria de ver nos jornais e que nunca está neles.
A cada manhã, quando passo os olhos pelas páginas dos jornais, mais me convenço de que os donos de jornais e os jornalistas que para eles trabalham, com raríssimas exceções, fizeram um pacto de traição aos leitores. Ou não é traição aos leitores as manchetes, as legendas, as chamadas e até as fotos publicadas que transpiram falsidade, ora pelo abuso da ênfase ou da subliminaridade das mensagens, ora pela evidente desproporção e grandiloqüência do enunciado e a real dimensão do fato ocorrido? Ou ainda pior, não é uma traição aos princípios da ética e do jornalismo verdadeiro a arrogância das sentenças condenatórias aplicadas a partir de suspeitas frouxas e a parcialidade desbragada na defesa de pontos de vistas falsamente baseados em interesse do público? O resultado é isso que se vê: o que os jornais publicam está cada vez mais distante da realidade do cidadão, do homem comum. Os jornais mostram um mundo disforme por ser registrado com olhares ligeiros e superficiais; envelhecido pela velocidade das notícias-pílula servidas à larga pela televisão, pelo rádio, pela internet, pelo celular; e também cada vez mais complexo por ser mal explicado.
E os leitores que se danem se querem apenas a verdade, a informação correta, uma visão atualizada, sóbria e o mais fiel possível à dimensão verdadeira dos fatos. Esses luxos cultivados pelos cidadãos comuns, esses chatos que acreditam que jornal é um suporte de registro da realidade, e não uma tela surreal daliniana.
Jornal é antes de tudo, conteúdo, ensinam os manuais mais acadêmicos e ideológicos de jornalismo e as lições dos mestres sacerdotais do ramo. Notícia é, acima de tudo, um produto, sentenciam os sábios contemporâneos do mídia-business. Para alguns, está aí a declaração de guerra que levou as redações a mergulharem no turbilhão de desencontros em que se debate hoje. Mas, esse falso conflito entre o conteúdo de interesse público e a necessidade cada vez mais artificializada de satisfazer a curiosidade do público que permeia os jornais atualmente não é a principal causa do descrédito e do desinteresse dos leitores pelo jornalismo impresso diário. A razão verdadeira está em outro lugar, mais distante da luz do Sol, mergulhada na penumbra densa que, como uma mortalha, envolve o caráter anestesiado dos indivíduos que produzem e publicam jornais.
Covarde passividade
Os problemas que afetam a credibilidade dos jornais se originam, segundo alguns estudiosos da área, nas relações que se estabelecem entre o capital e a força de trabalho que o produz e entre as implicações que o conteúdo do produto jornal desencadeia na sociedade que retrata e que o consome como referencial de si mesma. Os interesses de quem faz jornalismo por crença no papel social, amor à profissão ou simples vaidade e ambição social e econômica, aliados aos interesses de quem investe no jornalismo como um mero negócio de lucros altos e fonte de grande poder de barganha política, constituem-se forças motrizes que, naturalmente, vêm cada vez mais se sobrepondo aos interesses da sociedade, reduzida no jargão midiático aos rótulos de ‘público’ ou ‘massa’.
Quem faz jornalismo por crer em seu papel social vive frustrado, pois raramente encontra espaço para exercitar nas empresas que empregam e pagam jornalistas o jornalismo-cidadão ou como preferem os antenados com a pós-modernidade, ‘jornalismo pro-ativo’. Os que são jornalistas por vaidade e ambição, por sua vez, se impermeabilizam contra tudo que represente compromisso, comprometimento e investimento pessoal, risco ou mesmo desaceleração da ascensão na carreira.
Como todos os demais setores de atividade humana, ‘o campo jornalístico está permanentemente sujeito à prova dos veredictos do mercado, através da sanção, direta da clientela ou, indireta, do índice de audiência’, afirma Pierre Bourdieu no livro Sobre a televisão. Eu ouso acrescentar ao raciocínio do pesquisador francês uma terceira e, talvez, mais importante e imperativa sanção: a do proprietário do veículo. Dessa forma, é evidente que os jornalistas são, ao mesmo tempo, responsáveis e vítimas do processo de deterioração da qualidade do jornalismo que temos hoje.
São responsáveis na medida em que assumem comportamentos alienados ou cínicos frente à situação quando, como nos lembra Ciro Marcondes Filho no livro A saga dos cães perdidos, os jornalista conhecem por dentro, participam e usufruem com todo regalo do poder, luxo e ostentação dos mais altos círculos do jornalismo, político e econômico. E são vítimas por estarem sujeitos às restrições que lhes são impostas pelos vínculos empregatícios e a dependência financeira da empresa em que trabalham, às regras hierárquicas das redações e à fidelidade à linha editorial do veículo que, em última instância, é definida a partir dos interesses do dono do veículo e do grupo social, político e econômico a que este pertence. Razões que, no entanto, são insuficientes para justificar a covarde passividade que grande parte dos jornalistas têm cultivado diante dos descaminhos do jornalismo atual.
A saída é mais embaixo
Se, aos jornalistas, a quem falsamente se atribui o poder de definir a linha editorial e o conteúdo dos jornais, se pode conceder gotas de complacência de acordo com a posição que ocupam na cadeia de decisões dentro de uma empresa jornalística, aos empresários donos destas nada há que justifique um mínimo de condescendência para com suas atitudes. Eles têm uma responsabilidade preponderante nesse processo de decomposição da credibilidade dos jornais. Foram os donos dos jornais que, na transição da fase romântica para a moderna do jornalismo, no século 19, optaram deliberadamente pela adoção de paradigmas puramente comerciais na gestão dos seus veículos, a fim de transformá-los de empresas sociais em empresas capitalistas de fato. E isso levou ao abandono paulatino dos referenciais éticos, morais e até pedagógicos que, em essência, justificam e dão alguma utilidade objetiva ao jornalismo.
E são eles que, ao longo do século 20, seguiram financiando a busca de novas tecnologias e os movimentos que, como destaca Jurgen Habermas no artigo ‘Mudança estrutural da esfera pública’, permitiram a substituição paulatina das funções informativa, formativa e reflexiva dos jornais pelas funções de mero suporte publicitário e de entretenimentos. A conseqüência dessa opção dos donos de jornais foi o esvaziamento do jornalismo, a crescente eterização das notícias, a superficialização da cobertura dos acontecimentos, a decadência da atividade jornalística pela percepção do público da inutilidade do jornal.
Nas academias, as discussões se acirram em torno do problema, mas a questão tem passado ao largo das redações, onde deveriam estar na pauta do dia, dos repórteres ao superintendente do jornal. Não é de se estranhar que isso seja assim mesmo. Afinal, o problema da decadência do jornal como veículo de referência de registro da realidade, responsável pela tradução dos acontecimentos, análise de seus desdobramentos e repercussões na vida da comunidade em que circula, é algo que faz parte do mundo real, do cotidiano singular do cidadão, do público comum. Em fim, desse universo que não desperta o interesse dos iluminados que reinam no mundo climatizado, silencioso e estéril das grandes redações.
Não existe receita pronta para se evitar a derrocada final para a qual os jornais impressos seguem em solene passo marcial. Mas, com certeza, há saídas de emergência ao alcance dos mais atentos, dos menos preguiçosos, dos mais criativos. Para vê-las, basta que os falsos deuses do jornalismo em que se transformaram os donos de jornais e seus prepostos mais imediatos desçam do pedestal em que se instalaram e olhem para baixo, além das vidraças de suas salas. Se olharem com atenção, poderão ver que, nas bancas, os jornais amarelam, enquanto o público segue adiante os ignorando, como as caravanas ignoravam as múmias quando passavam diante das pirâmides.
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Jornalista, 23 anos de profissão, editor de jornalismo na TV Assembléia de Mato Grosso