Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Versus, a utopia impressa

I

Foi um sonho que durou quatro anos e 33 edições. Essa é a história de Versus, jornal de cultura que, lançado em São Paulo, em outubro de 1975, por iniciativa do jornalista Marcos Faerman (1944-1999), foi uma experiência única de jornalismo alternativo no Brasil, ao enfocar questões literárias, poéticas, épicas e sociais da história brasileira e da América Latina. No último ano de sua existência, ao deixar de lado a visão onírica que era marca de seu fundador, o jornal partiu para uma posição política mais radical em relação à realidade brasileira, até fenecer, em agosto de 1979, antes mesmo da abertura política e da queda do regime militar (1964-1985).

Para resgatar boa parte dessa história, Omar L.de Barros Filho, o Matico, repórter e editor de Versus e, hoje, diretor de redação do site Via Política e diretor da Laser Press Comunicação, em Porto Alegre, reuniu, em Versus: páginas da utopia, alguns dos mais significativos textos publicados pelo jornal. Na apresentação que escreveu para esta antologia, lembra que Faerman costumava dizer que Versus nascera sob o signo da tristeza provocada pela morte do jornalista Vladimir Herzog nos porões dos cárceres da ditadura, em outubro de 1975.

Faerman, o Marcão, era repórter especial do Jornal da Tarde, praticamente desde a fundação desse diário, em 1966, do grupo S.A. O Estado de S. Paulo e, embora recebesse um bom salário para a época, não era homem de posses. Despojado, não fazia planos a longo prazo, como comprar um imóvel para a família ou mesmo um automóvel. Em troca do sonho de criar um jornal de cultura, passou a dispor a maior parte de seu salário para sustentar a publicação.

Além de escrever boa parte das reportagens, artigos e entrevistas, Faerman valeu-se de uma legião de amigos que fizera por todo o Brasil e América Latina. Aliás, a idéia de publicar Versus nascera depois de uma entrevista que fizera com o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de Las venas abiertas de America Latina, que, à época, dirigia em Buenos Aires a revista cultural Crisis. A ligação de Marcão com a esquerda intelectual argentina era tanta que, em 1988-1989, ele lançou em São Paulo a Crisis brasileira, que teve vida curta.

II

Nos anos 70, essa aproximação com a América Latina não era bem vista pela esquerda tradicional, que entendia aquilo como alienante. Mas o que estava por trás dessa oposição era mesmo o radicalismo de uma gente que não lia muito e repetia o que ouvira de antigos comunistas. Uma gente stalinista, fora da realidade, que analisava o mundo e a vida de acordo com fórmulas prontas de um marxismo subdesenvolvido, mas que o que queria era mesmo chegar ao poder para se locupletar, como a história recente tem mostrado.

O Versus, um jornal de artes, idéias e aventuras, feito de idealismo – o que aquela gente nunca teve –, não merecia esse preconceito, até porque publicava textos de pensadores de esquerda latino-americanos, como Mariátegui, Ernesto Cardenal e outros.

O Versus preocupava-se também com a cultura indígena, as lendas e as tradições de povos que haviam sido vítimas do genocídio lento que fora a colonização do Brasil e da América. E não só: durante um bom tempo, o jornal tornou-se um porta-voz solitário das reivindicações do movimento negro brasileiro, a uma época em que as pessoas ‘desapareciam’ de um dia para o outro, tanto aqui como na Argentina, Uruguai, Chile e demais países latino-americanos.

A antologia organizada por Matico reflete tudo isso, como se vê numa reportagem em que o repórter Renan Antunes de Oliveira chega a Montevidéu disposto a saber das autoridades do regime militar uruguaio o paradeiro da brasileira Flávia Schilling. Ou em outra, de autoria de Wagner Carelli, em que o repórter percorre os cemitérios do Chile em busca das histórias dos mortos de setembro de 1973, as vítimas do golpe militar comandado pelo sanguinário Pinochet.

Da antologia constam reportagens assinadas por nomes como os argentinos Rodolfo Walsh – uma dos primeiras vítimas fatais da ditadura argentina –, Tomáz Eloy Martínez e Diana Bellessi e o uruguaio Eduardo Galeano. Sem contar que reúne alguns dos melhores textos do jornalismo brasileiro, como Carlos Rangel, Caco Barcelos, Luiz Egypto, Arnaldo Jabor, Hélio Goldsztejn e Licínio de Azevedo (que, depois, foi para Moçambique), além de nomes consagrados da cultura brasileira como Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Plínio Marcos, Augusto Boal, Nélida Piñon e Abdias Nascimento, bem como do pessoal da redação, como Faerman, Matico, Vitor Vieira, Jorge Pinheiro, entre outros. E grandes entrevistas de perguntas-e-respostas com Michel Foucault e Gianfresco Guarnieri. São textos que não perderam o sabor.

III

Em formato tablóide, 52 páginas, o primeiro número de Versus tirou 12 mil exemplares e foi mesmo distribuído de mão em mão, em bancas de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras poucas cidades. Logo, grupos paramilitares de direita começariam a ameaçar os donos das bancas que aceitassem vender Versus. Mas isso não impediu que o jornal começasse a despertar o interesse de leitores que estavam cansados da grande imprensa que, com raras exceções, mostrava-se servil aos interesses da ditadura.

Logo o jornal atraiu a adesão voluntária de jornalistas, escritores, poetas, professores, sociólogos, ilustradores e chargistas que passaram a enviar suas colaborações pelo correio. Este articulista, por exemplo, copy desk de O Estado de S.Paulo à época, colaborava com traduções de textos de Julio Cortázar, Juan Rulfo, Juan José Areola, Baldomero Lillo e outros.

Matico, que chegou do Sul em companhia de Caco Barcelos, hoje nome famoso por sua atuação na Rede Globo, foi quem mais ajudou Faerman a colocar o sonho nas ruas, viabilizando um projeto que, a princípio, tímido, logo atingiria a tiragem de 30 mil exemplares numa nação ainda hoje majoritariamente de analfabetos, funcionais ou não.

A influência do jornal passou a ser bem maior que a tiragem poderia levar a supor, a ponto de atrair colaboradores que também militavam em organizações clandestinas e a preocupar os guardiões da ditadura. O surgimento do movimento operário no ABC paulista e as greves dos metalúrgicos e de outras categorias de assalariados acabariam por alterar o rumo de Versus, que, em seu último ano, ficaria mais politizado e sectário, mas igualmente utópico, na medida em que as esquerdas não tinham a menor possibilidade de alcançar o poder pela força. E, agora, já sem a presença do próprio Marcão, afastado por discordar das idéias de alguns integrantes do grupo Convergência Socialista.

Por causar incômodos à classe dominante, o Versus viu a sua redação invadida e pichada por esbirros da ditadura. E teve ainda de conviver com a presença incômoda de um funcionário público travestido de censor, que também freqüentou a sua redação para ler os textos antes de publicados.

IV

Faerman era um intelectual que estava sempre à frente dos outros porque havia lido muito. Sofria de insônia e ficava lendo até o amanhecer. Mas não era um intelectual que vivesse fechado numa torre de marfim. Gostava de jogar futebol. Nós, jornalistas do Estadão e do Jornal da Tarde, naquele tempo organizávamos, uma vez por semana, pela manhã, um jogo de futebol num campo perto da sede dos jornais. E o Marcão mostrava-se um centro-avante rompedor, sem muita qualidade técnica, mas raçudo e goleador. Quando fazia um gol, gritava como se tivesse sido campeão do mundo.

Torcedor fanático do Grêmio de Porto Alegre, ele admirava muito Paulo Lumumba, um antigo jogador gremista que virou treinador. Lumumba, que gostava de filosofar, certa vez, falou para o jovem repórter Marcão: um jogo, ganham os jogadores, mas um campeonato, ganham os homens. Foi uma frase que ele carregou pela vida inteira e que aplicava em sua própria vida pessoal no sentido de que só constroem alguma coisa na vida aqueles que carregam um fogo interior, um entusiasmo que contagia os demais.

Marcão era assim: como chefe de redação do Versus, ele entusiasmava seus amigos. Sabia exercer a liderança. Por isso, no fim da vida, quando decidiu virar professor de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo – porque precisava sobreviver –, tornou-se um mestre inesquecível que sempre falava em escrever um livro que se chamaria A História da Reportagem, no qual pretendia analisar desde historiadores da Antiguidade, como Heródoto, até os grandes repórteres dos nossos dias, os cultivadores do new journalism, como Gay Talese, Truman Capote e John Hersey.

Ele adotava esse estilo literário de escrever em suas reportagens no Jornal da Tarde, ao lado de Fernando Portela e Percival de Souza, com os quais publicou o livro Violência e Repressão (São Paulo, Editora Símbolo, 1978). Publicou ainda Com as mãos sujas de sangue (São Paulo, Editora Global, 1979), que reúne algumas de suas melhores reportagens. São dois livros que se tornaram referência em cursos sobre o new journalism brasileiro.

Não se sabe se chegou a escrever aquele livro sobre a história da reportagem, mas muitas anotações sobre o tema já havia feito lá por meados dos anos 80. Se essas anotações sobreviveram, não se sabe, até porque boa parte de sua biblioteca foi destruída por uma desavença doméstica. Foi pena que não tivesse publicado esse livro, pois hoje essa obra serviria como manual para os estudantes de Jornalismo. Como repórter, ele foi o melhor de sua época.

V

A antologia Versus: páginas da utopia resgata também a cisão que houve na redação, quando Faerman e sua equipe preferiram deixar a publicação para lançar uma revista, que seria a Singular & Plural, de vida efêmera, responsabilizando a Convergência Socialista pela radicalização que tornaria o jornal extremamente politizado e fechado com a proposta de formação de um novo Partido Socialista. Olhando para trás com um olhar de trinta anos, essas divergências soam pueris, como diz Matico na apresentação. Mas tudo isso é memória, é o tecido da vida, para repetir parte de uma frase de Jorge Semprún, uma das preferidas de Faerman. Ainda bem que Matico garante que mais duas antologias de Versus virão a seguir.

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Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003)