Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por que a imprensa mais desinformou do que informou

A febre amarela é doença gravíssima causada por vírus transmitido por insetos, pernilongos dos gêneros Haemagogos (silvestre) e Aedes (urbano). Dada o grau de infestação das cidades brasileiras pelo Aedes aegyptis, há, de fato, o risco do surgimento de uma epidemia de febre amarela urbana, coisa não registrada desde o ano de 1942 em nosso país.

Entretanto, têm-se registrado altos níveis de cobertura vacinal contra a febre amarela nas zonas endêmicas e nas zonas de transição. Além de campanhas realizadas em 1999, mantém-se nestas áreas vacinação de todas as crianças a partir dos nove meses de idade, como parte do calendário infantil de vacinações do Programa Nacional de Imunizações. Há vacinas disponíveis para quem queira se vacinar durante todo o ano nas unidades de saúde das áreas citadas.

O Brasil também mantém estoques de vacina contra febre amarela, suficientes para a vacinação de populações de áreas de risco em momentos de epizootia (surtos em animais) ou mesmo de epidemias. Não mantém – não seria conveniente manter e não estaria de acordo com recomendações internacionais – estoques para a vacinação de toda a população. É impossível que uma epidemia ameace toda a população.

Áreas com animais infectados

A vacina de febre amarela é requerida de 10 em 10 anos para viagens internacionais. Entretanto, aceita-se que ela confira proteção por pelo menos 30 anos, senão pela vida inteira. Esta informação é facilmente encontrável nos livros-textos sobre vacinas, em qualquer biblioteca médica. Uma vez vacinado, é bastante provável que o indivíduo esteja protegido durante o resto de sua vida.

Embora bastante segura, a vacina envolve riscos e pode resultar em complicações. No passado já ocorreram mortes pela vacina, que foram bem documentadas a partir de 1999 no Brasil, nos Estados Unidos e na Austrália. Pode resultar em fenômenos alérgicos em pessoas que sofram de alergia ao ovo, ou mesmo naquelas sem nenhuma alergia prévia. Embora segura na gestação, não é indicada a mulheres grávidas, exceto em situações de extremo risco e a gestante não responde satisfatoriamente à vacina, com proteção de apenas 40%, muito inferior aos mais de 90% observados na vacinação de pessoas não grávidas. Não deve ser aplicada antes dos seis meses de vida, época em que pode resultar em doença do sistema nervoso, e não deve ser aplicada em pacientes com doenças ou condições que resultem em baixa imunidade, situação que pode resultar em morte.

Vacinados não podem doar sangue a partir de 30 dias após terem tomado a vacina. Por outro lado, não parece que a superdosagem cause dano, embora não exista nenhum benefício em se tomar mais de uma dose da vacina.

Como não se pode obrigar um adulto a tomar vacina, mesmo a vacina estando regularmente disponível em unidades de saúde do país nas áreas endêmicas e de transição, alguns não estão imunizados. Em períodos de epizootias, estas pessoas podem se infectar quando se expõem em áreas onde haja animais infectados. Muitos deles morrem. É muito difícil evitarem-se estes óbitos, pois não se consegue eliminar a febre amarela entre primatas, nem obter de todos os cidadãos a conduta responsável de se manterem vacinados em épocas onde não há notícias da doença.

Mídia alarmista

O que ocorreu no Brasil? Macacos morreram na região de Goiás. Imediatamente, a autoridade sanitária tomou providências de intensificação da vacinação em Goiás. Com as notícias incompletas e conflitantes da imprensa, principalmente televisiva, uma histeria coletiva tomou conta da população, que correu às unidades de saúde de todo o país para receber a vacina, inclusive em lugares onde não havia risco algum de febre amarela. É claro que não se poderia encontrar nessas unidades preparação para uma ação imediata ao nível do solicitado pela população. Mais importante que isso, não seria cabível que as unidades estivessem preparadas para ação imediata deste tipo, pois seria um desperdício de dinheiro público!

Nada disso foi noticiado corretamente. Creio que notícias sobre saúde pública não possam e não devam ser veiculadas antes de uma correta avaliação por parte da mídia. Pior, durante o processo colocou-se em dúvida a figura da autoridade sanitária máxima do país – o ministro da Saúde, por ter ele acusado a mídia de alarmista.

Boas informações e credibilidade

Que colhemos até agora? Desacreditamos, sem razão, as autoridades sanitárias. Desperdiçamos dinheiro público, usando mais doses de vacina do que havia pessoas a vacinar, por exemplo, em Goiás; houve fraudes de desvio de vacinas públicas para o mercado negro; houve pelo menos uma morte relacionada à vacina até agora e várias hospitalizações; grávidas e crianças menores de seis meses foram desnecessariamente vacinadas. Por último, faltará sangue durante o Carnaval, uma vez que os bancos de sangue estão sendo obrigados a dispensar até 50% dos doadores por terem eles sido vacinados há menos de 30 dias. Disso poderão resultar outras mortes, que espero que não ocorram.

Pergunto se, em caso de uma situação de baixo risco como essa, já enfrentada pelo sistema sanitário brasileiro com sucesso outras vezes no passado, ocorre um caos, o que ocorrerá caso uma verdadeira epidemia venha a acontecer? Para os incautos, sugiro a leitura do esforço de preparação internacional e nacional para uma eventual epidemia de gripe. A compreensão de que em situações de verdadeira ameaça pública necessitamos de boas informações e de preservação na credibilidade nas instituições é essencial para o bom jornalismo.

O episódio da febre amarela me deixou pessimista.

******

Médico, professor adjunto de Pediatria na Universidade Estadual de Londrina, coordenador do Centro de Referência de Imunobiológicos Especiais de Londrina, PR