Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ainda e sempre o binarismo (III)

O editorial da revista Veja nº 2043, de 16/1/2008, aponta, dentre os fatores que conduziriam aos riscos de um ‘apagão’, a burocracia na concessão de licenças ambientais. Na mesma revista, em matéria assinada por Cíntia Borsato (‘A preciosa gota d’água’), na página 49, está estampado, com todas as letras:

‘Recursos há. Bastaria o governo destravar as amarras que inibem o investimento privado. O principal obstáculo tem sido a obtenção de licenças ambientais, um processo moroso e incerto, que eleva os custos dos projetos e retarda as obras.’

Efetivamente, durante muito tempo foi alimentada a polarização entre preservação ambiental e progressismo, como se este último conceito fosse unissêmico e, mais do que isto, axiomático. Esta dicotomia, que com o advento do conceito de sustentabilidade veio a se esmaecer, foi responsável pela resistência ao tratamento desta temática e, mais do que isto, ao próprio desenvolvimento da percepção da relação da atividade humana com o meio ambiente. Em parte, pelo receio de que soasse subversivo, em parte porque, eventualmente, poderia o veículo que se voltasse ao exame de tais temas perder anunciantes, especialmente em atividades como a fabricação de celulose e a mineração. Os fatos caminharam e anos de atraso precisam ser recuperados, trazendo mesmo à lembrança o velho Proust, com a sua série de romances intitulada Em busca do tempo perdido.

Daí por que o problema do jornalismo ambiental neste início de século 21 vem a se colocar como um dos filões a serem explorados com responsabilidade [ver, neste Observatório, ‘Jornalismo ambiental e sustentabilidade‘], saindo do caráter rebaixado dos debates políticos – ponto, aliás, em que estou de acordo com Ivan Berger [‘A imprensa que o país merece (2)‘], quando diz que ‘como na seara política cada um trata de puxar a brasa para sua sardinha […], é quase inevitável que o sectarismo acabe prevalecendo’ –, no sentido de nos treinar para o debate quebrando o binarismo: o tema do aquecimento global e sua ligação com o problema das fontes de energia, por exemplo, transcende os limites da lógica binária. Aquecimento este que vem a repercutir na agricultura, com as secas, e mesmo no extrativismo vegetal, com reflexos em toda a cadeia alimentar. Eis um problema que atinge a todos independentemente de seus credos, independentemente de sua posição social, para muito além, pois, do antigo engajamento Washington/Moscou ou, hoje, Washington/Havana.

Reducionismo dualista

O que se conclui, de tudo isto? Apenas se procurou fazer uma demonstração, a partir de dados empíricos, de situações em que o binarismo, longe de auxiliar na solução do problema, apenas tem servido para agravá-lo. Assim foi em relação à negociação de Chávez com as FARC, assim foi com o debate entre religião e ciência, assim é em relação ao problema ambiental.

Os descendentes do Inca, quando estavam a lutar pelo Tahuantinsuyo, sequer podiam suspeitar que, àquela mesma época, Lutero entrava em choque com a Igreja romana, e bem assim o rei Henrique VIII da Inglaterra (não vamos esquecer que Elizabeth, a filha dele com Ana Bolena, sua segunda esposa, nasceu em 1533, ano seguinte ao da vitória de Atahualpa sobre Huáscar e do desembarque dos homens de Pizarro em Tumbes). E, por sua vez, nem sonhavam que Henrique VIII era o filho de duas ramificações de uma mesma família que se digladiaram pelo trono inglês durante trinta anos, as famílias de Lancaster e York.

Entretanto, o mundo não se dividia entre os partidários de Atahualpa e os de Huáscar (por sinal este último, entre os cronistas descendentes dos Incas, como Garcilaso de la Vega e Felipe Guaman Poma de Ayala, tem mais simpatias) nem entre os do papa e o dos reformadores, nem entre os de Lancaster e York. Não se resumia a estes dois lados. Assim como carece de sentido continuar a resumir o mundo a dois lados, como o pretende, ainda, o grosso da mídia. Se há consenso no dado de que a mídia tem por missão informar, esta informação deveria ir além dos termos reduzidos da Guerra Fria, isto é, mostrar que o mundo já existia antes da polarização inerente a tal período e não precisa deste referencial para continuar existindo.

Ou, por outra, a mídia até agora não conseguiu demonstrar uma cousa óbvia, qual seja, a de que não é necessário chegar ao ponto da vaia obrigatória ou do aplauso obrigatório. Não se trata de mera questão de ‘não gosto da Veja, vou para a CartaCapital‘, ‘não gosto da CartaCapital, vou para a Veja‘, só para apontar dois antípodas evidentes. E, desde já, adianto que não faço um juízo mais ou menos generoso a respeito de Isto É ou de Época ou de qualquer outra publicação congênere. A questão que, realmente, vem a se colocar é a alimentação de um reducionismo dualista que não existe nem mesmo no jogo de xadrez, com suas 64 casas brancas e pretas, dado que se deve ter presente a existência de várias possibilidades em que as peças mais importantes para a defesa do rei venham a ser neutralizadas…

Instrumentalizar o sofrimento

A tragédia de Nova Orleans (falo do furacão Katrina) não é uma questão de esquerda ou direita – foi simplesmente uma tragédia em que os seres humanos se viram, ao final, reduzidos a uma verdadeira situação de feras, em que o único referencial passou a ser a sobrevivência a qualquer custo. No vôo 3054 não morreram somente eleitores de Geraldo Alckmin, no desastre do metrô de São Paulo não morreram somente eleitores de Mercadante.

É sempre bom recordar que ‘o mais refinado exemplo teórico de lógica binária, por sinal, encontra-se na obra de Carl Schmitt, o grande jurista do nazismo, que transplantou para o âmbito do Direito Constitucional e da Ciência Política a distinção ‘amigo/inimigo’ (O conceito jurídico do político). Um exemplo prático é a conduta da mídia em relação aos fatos que antecederam o inquérito 2.245 e os que antecederam o inquérito 2.280 – o primeiro já convertido em ação penal e o segundo ainda em fase inicial, ambos no âmbito do Supremo Tribunal Federal, inclusive com o mesmo relator designado, ambos referentes a fatos de gravidade idêntica, mas com diferenças significativas em termos de simpatia dos personagens envolvidos’ [‘A lógica binária, o aquecimento global e o petróleo‘]. Por outras palavras, continuo convicto de que construir palanques com os ossos dos mortos de Congonhas é tão antiético quanto construí-los com os ossos dos mortos da Marginal, em São Paulo, no início do ano [‘Acidentes, pressões e culpados‘]. É um péssimo hábito este de instrumentalizar o sofrimento humano para se obter a partir dele dividendos políticos, como se fosse um capital investido [‘Causalidades e brutalidades‘, ‘Cratera do Metrô em São Paulo pariu um bebê no JN‘ e ‘De previsibilidades e torcidas organizadas‘].

O enredo de Fahrenheit 451

Tudo o que ultrapassa o dualismo fácil vem a se tornar de difícil apreensão e, pois, a gerar o impulso de rejeição. Ainda mais nos tempos que correm, em que a auto-suficiência do apedeuta conquistou as infovias para que fosse parida a figura do ciber-apedeuta a que me referi em outra ocasião [‘A partidarização dos debates sobre o poço Tupi‘].

Vem a colocar-se, inclusive, o problema da função do conhecimento no atual contexto de globalização, em que a velocidade e a concisão passam a ser valores em si mesmos, em que parece não haver tempo para a reflexão.

O professor Ivo Lucchesi publicou um texto importante sobre a própria conversão do conhecimento em mero artigo de consumo, com a substituição pela ingestão pura e simples de informação dos exercícios de reflexão sobre os dados trazidos à percepção [‘A informação e a filtragem: tempos assimétricos (II)‘].

A própria agilidade de obtenção de informações que a internet permite, em si, não é um mal – e isto foi salientado no texto –, mas pode-se ter certeza que o é a fuga aos livros, dado que não deixa de ser um exercício quase braçal o rastreamento de informações em meio físico.

É, para mim, recorrente o enredo estampado no livro de Ray Bradbury Fahrenheit 451, mais tarde adaptado para o cinema por François Truffaut, em que o audiovisual substituiu o livro de tal modo que veio a converter este em algo pernicioso, digno de destruição, e que se mostra muito próximo da realidade, quando já se vêem pessoas se vangloriando da própria ignorância, resumindo seus conhecimentos apenas ao que é instrumentalmente útil à própria profissão.

******

Advogado, Porto Alegre, RS