Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O homem que aposentou Marx e Adam Smith

Nova doutrina na praça: o nome é complicado, seu inspirador é uma figura discreta, sem carisma nem rosto, ambíguo e equívoco. Não será louvado em movimentos de massa, possivelmente terá a sua imagem impressa numa camiseta, os fanáticos estarão dispensados de ler suas obras completas, mas o kervielismo está aí. E Jérôme Kerviel, funcionário do quinto ou sexto escalão do banco Société Générale está fadado a entrar para a história como o homem que numa só tacada de cinco bilhões de euros aposentou o socialismo revolucionário de Karl Marx e o liberalismo de Adam Smith.


Pouco importa a agitação do mercado financeiro global na sexta-feira (1/1). O interesse do BNP-Paribas em comprar a Société Générale e os quase 45 bilhões de dólares oferecidos pela Microsoft aos acionistas da Yahoo! não constituem prova de robustez ou vitalidade do mercado financeiro. Ao contrário, estes movimentos concentradores destinam-se a aliviar o pânico.


A verdade é que no apogeu da globalização e do liberalismo econômico, na hora estelar do capitalismo especulativo, no momento em que a religião do self-interest – auto-interesse – sobrepõe-se a todos os credos, apareceu um solitário operador de futuros no mercado financeiro francês que, sem abrir o bico, arquivou os quase dois séculos de pregação em favor da desregulação do processo econômico.


Herói do trabalho


No final do século 18, o escocês Adam Smith escreveu este simplicíssimo mote em cima do qual se alicerçou o formidável processo de crescimento econômico dos dois séculos seguintes: ‘Não é da benevolência do padeiro que eu espero que saia o meu jantar, mas sim do empenho em promover o seu auto-interesse’.


O interesse de Adam Smith não estava apenas no saboroso pedaço de pão que saia na padaria da esquina, mas no padeiro interessado em inserir seus atributos no processo econômico.


Jérôme Kerviel também empenhava-se sinceramente em promover o self-interest. Montou aquele elaborado esquema informático para permitir um dominó especulativo sem qualquer intuito fraudulento. Não pretendia embolsar qualquer quantia de forma ilegal. Queria apenas merecer dos seus empregadores o bônus no fim de 2007 (cerca de 300 mil euros), por ter superado de forma extraordinária as metas que lhe foram atribuídas para o exercício. Esta foi a explicação formal oferecida pelo procurador da República em Paris, Jean-Claude Marin, e até hoje não desmentidas.


O sistema de incentivos à produtividade não é ícone apenas do capitalismo. Na realidade, seu herói mais popular foi um mineiro soviético, Alexei Stakhanov, que em agosto de 1935 bateu todos os recordes de extração de carvão: em pouco menos de seis horas conseguiu extrair 102 toneladas. Mês seguinte bateu novo recorde: 220 toneladas num só turno.


Apontado como exemplo, Stakhanov foi matriculado na Academia Industrial de Moscou e logo a máquina de propaganda soviética apropriou-se do seu nome para criar o stakhanovismo, o esforço revolucionário para superar metas. Chegou a ser capa da revista Time (16/12/1936). Trinta anos depois, com o degelo, descobriu-se que fora tudo forjado: o PC soviético precisava criar um herói do trabalho e, se não fosse Stakhanov, outro seria escolhido para receber a mesma assistência e superar os objetivos.


Pães e maçãs


O stakhanovismo e o sistema de bônus hoje universal nada têm a ver com a promoção do auto-interesse preconizada por Adam Smith. A façanha do francês Kerviel comprovou que a sociedade não pode ser puxada por uma locomotiva desvairada, desprovida de controles de velocidade e normas de segurança. Da mesma forma que os controles sem o componente de liberdade estancam a máquina no primeiro desvio.


O caso de Kerviel não está sendo badalado porque os gurus do liberalismo desbragado, de repente, descobriram que estão nus. Na imprensa brasileira (onde o sistema de bônus está sendo implantado sem levar em consideração o fator qualidade), o único a acompanhar o episódio e seus fascinantes desdobramentos ideológicos é o veterano correspondente do Estado de S.Paulo em Paris, Gilles Lapouge (ver aqui).


Quando lemos as exaltadas críticas ao capitalismo especulativo de autoria de Antonio Delfim Netto (ex-czar da economia brasileira, criador do ‘milagre econômico’ e dos estouros financeiros que a ele se seguiram), escancaram-se as mistificações que em geral acompanham o processo econômico.


Uma crise bursátil, por mais complicados que sejam os seus ingredientes, afeta inevitavelmente a chamada economia real. O sobe-desce das cotações é um mero disfarce para esconder uma disfunção que os operadores não gostam ou não sabem discutir.


Adam Smith com os seus pães ou Karl Marx com suas maçãs (‘A maçã é anterior à idéia da maçã’) descomplicaram o a discussão sobre a economia. Jérôme Kerviel a dramatizou.