Mesmo sendo o mais popular e influente entre os veículos de comunicação, a televisão, ainda mais que seus congêneres, sempre se viu na corda-bamba em termos de conteúdo. De fato, a necessidade de conciliar uma programação quase ininterrupta com qualidade é um desafio cada vez mais complicado, dada a competição feroz e crescente e, principalmente, o esgotamento das fórmulas convencionais. Ainda fortemente influenciada e dependente das grandes redes norte-americanas, pelo menos no que se refere à matéria-prima e idéias, a TV brasileira vive o paradoxo de uma vigorosa expansão com o de oferecer um produto – salvo raras e honrosas exceções – de questionável qualidade.
Neste contexto, fica claro que quantidade está longe de representar vantagem para o telespectador, mesmo para quem dispõe da variedade infindável dos canais a cabo, cuja grande maioria também se perde na mesmice e no repetitivo. A rigor, só o condicionamento imposto pelos valores e padrões estereotipados na forma de modismos justifica que programas absolutamente frívolos como o Big Brother Brasil se mantenham como líderes na programação global nesses anos todos. E não só no Brasil, diga-se de passagem, já que o formato é importado da Holanda, pasmem, e faz tanto sucesso aqui como nos centros mais adiantados.
Recursos nababescos
O que permite concluir que o fator cultural não é determinante em relação ao apuro de gostos e preferências, a não ser, é claro, para uma minoria, por assim dizer, mais refinada, que ainda prefere música erudita e literatura ao verdadeiro entulho que se consome hoje em dia. No que se inclui grande parte da programação televisiva, delineando um impasse praticamente impossível de equacionar a contento, já que a melhora do produto não é garantia de retorno de audiência; muitas vezes dá-se até o contrario, é a baixaria, a apelação, que faz sucesso junto ao público.
Caso do tal BBB, estrela da programação global, como do badalado Pânico, do primo-pobre Rede TV!, que se transformou numa espécie de cult da telinha graças ao clima de escracho e humor malicioso que predomina, permeado pelo desfile de beldades seminuas e rebolativas, bem ao estilo das casas de massagens e inferninhos, como se dizia antigamente.
O diabo – olha o danado aí de novo – é que isso normalmente não serve de atenuante e muito menos de justificativa para o baixo nível reinante. Os detratores da mídia estão pouco ligando se é a baixaria a vulgaridade, a mesmice das fórmulas consagradas, que garante o faturamento e, por conseguinte, a sobrevivência. Mesmo o famoso padrão global, idealizado por Walter Clark e que viveu seu apogeu nos quase 20 anos em que a emissora esteve sob a marca de Daniel Filho e Boni, tem sido obrigado a se adaptar a essa realidade em detrimento da qualidade e projetos mais ambiciosos, como as minisséries que marcaram época em nossa televisão. De modo que a grife se justifica hoje em dia muito mais pelos recursos técnicos e operacionais que, como se sabe, chegam a ser nababescos.
‘Verdade universal’
Vai daí que não é exatamente fidedigna a imagem depreciativa que certos setores costumam fazer da Globo que, de certa forma, só tem feito dançar conforme a música, pelo menos no que concerne ao básico de sua programação comercial. Exceção feita ao jornalismo, o qual, não obstante a obrigatória adequação ao contexto da comunicação instantânea e multifacetada, tem sido o setor que mais se fortaleceu nos últimos anos, com o concurso de uma plêiade de profissionais dos mais gabaritados. Que embora sujeitos a postura sabidamente conservadora da grande imprensa tupiniquim, têm apresentado um desempenho até certo ponto satisfatório, graças também ao aporte do material específico produzido pela GNT, da TV por assinatura.
É evidente que isso não isenta a Globo, bem como os demais membros do clube midiático, de pecados que vão da superficialidade dos noticiários à manipulação de fatos, mormente nos temas políticos e interesses outros – de resto já ilustrados por uma longa literatura a respeito e que, portanto, dispensam comentários. Mesmo porque isso é letra morta, a essa altura do campeonato, pois ressuscitar questões passadas a troco de qualquer pretexto no mais das vezes só se presta a revanchismo e retaliação. Tendência esta que, de qualquer forma, se mantém desde a unção de Lula à presidência da República e se agravou durante a campanha da reeleição, quando a mídia tradicional passou a ser rotulada de inimiga e golpista pelas hostes governistas, a ponto de ter provocado uma polarização que continua dando pano para manga, como se denota pelas agudas divergências que grassam aqui mesmo no Observatório.
Nessa espécie de briga do mar contra o rochedo, quem mais sofre com a arrebentação é a imprensa e, em particular, a televisão – que pelas peculiaridades já mencionadas fica mais exposta e vulnerável a toda sorte de cobranças e reparos. E a Globo é o alvo preferencial, em função, obviamente, de seu poderio, configurado pela massacrante liderança mantida há várias décadas, e em cuja programação nem as novelas se salvam do olhar implacável dos patrulheiros de plantão. O que na verdade só faz sentido dentro de uma visão maniqueísta e tendenciosa, que tende a vincular os valores e padrões vigentes à mentalidade conservadora ‘que a máquina coordenada da mídia quer fazer passar por verdade universal’, conforme palavras do jornalista Gabriel Priolli em artigo neste Observatório [ ver ‘Duas Caras para um só discurso‘].
Fantasia e surrealismo
Ora, mesmo com todos os costumeiros reparos que possam ser feitos a um enredo cuja proposta, quiçá ambiciosa demais, era justamente a inovadora tentativa de quebrar o paradigma da visão glamourosa e edulcorada, tradicionalmente presente na chamada novela das 8, não passa de um grande exagero – para não dizer leviandade – atribuir a um simples folhetim tantos atributos maquiavélicos, como se pretende. De ode ao conservadorismo a uma suposta subserviência aos interesses patronais, passando por acusações de proselitismo à causa do ‘pensamento único’, as ilações e hipóteses fantasiosas extrapolam o próprio juízo que a crítica especializada tem feito, de que a novela é simplesmente ruim e que o autor, Aguinaldo Silva, perdeu a mão.
Ninguém em sã consciência e com um mínimo de isenção pode ser contra que a imprensa, a televisão, a Globo, sejam devidamente fiscalizados e cobrados para que exerçam condignamente seu papel na sociedade; o problema é quando isso é feito sob motivações suspeitas, por preconceito ou ressentimentos inconfessáveis. Como este, de transformar uma simples trama de novela num cavalo de batalha para dar vazão às manjadas prevenções contra a Globo.
Não há outra interpretação razoável para ignorar que ficção é ficção, cuja receita de sucesso até os mais desavisados conhecem: mesclar boas doses de fantasia e surrealismo à trama, pois dos dramas cotidianos os noticiários estão cheios. O resto é chifre em cabeça de burro.
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Jornalista, Santos, SP