Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Foi num dia sim ou num dia não?

É bem o jeito do Murilo: escolheu para morrer exatamente no dia do primeiro santo brasileiro. Fico imaginando a cobertura que o Murilinho teria bolado para a visita do Papa e a canonização do Frei Galvão: não seria essa obviedade que vimos nos jornais.

Na velha Folha de S.Paulo, aquela do José Nabantino Ramos (não a do Octavio Frias de Oliveira, que viria a comprar o jornal logo depois), o Murilo jogou as primeiras sementes do que seria a revolução da imprensa no Brasil.

Pelo menos desde 1960 – quando cheguei à Folha, no dia da inauguração de Brasília – o Murilinho já era um semeador. Ele estava lá em Brasília, com a equipe deslocada para a cobertura, mas logo depois nos conhecemos e ficamos amigos, eu diria íntimos. Circulávamos pela madrugada paulistana – o Gigeto, a Baiúca da Praça Roosevelt, o bar do Zelão, o Pari Bar, o Barbazul – sempre depois do fechamento. Ele com 20 anos, eu com 19, não podíamos entrar em boates.

Murilo dava aulas de jornalismo durante o jantar, durante os uísques. Dividia os jornalistas em dois tipos: os bons e os ruins. Mas era radical: bons eram os jovens (só metade deles) e ruins eram os velhos, os que tinham mais de 30 anos, e a outra metade dos jovens.

Antecipação macabra

Carregava – como faria sempre – um pacote de livros e revistas embaixo do braço. Abria os livros, mostrava as revistas e montava teóricas equipes ideais para um jornal ideal que ele sonhava, um dia, fazer. Listava nomes como o Neil Ferreira, o Zé Hamilton Ribeiro, o Mylton Severiano (para quem ele inventou o apelido de Myltainho), o Azevedo do Estadão, o Franco Paulino da Última Hora, os dois Sérgios, o Pompeu e o de Souza, o Ulysses Alves de Souza, o Valentim Lorenzetti. Num pacote de laudas que tirava de algum lugar projetava organogramas ideais e desenhava caricaturas dos que estavam à mesa. Ainda guardo, em papel amarelado, alguns organogramas e caricaturas.

Foi assim, entre laudas e conversas sobre reforma de jornais – cujo modelo, para o Murilo, era o Jornal do Brasil – que sonhávamos com carreira, discutíamos salários, conhecemos as namoradas que viriam a ser as dos primeiros casamentos.

Murilo não era exatamente um jornalista engajado, ao contrário. Na famosa greve de 1961 – a única que os jornais não noticiaram, pois não circularam – não estávamos ‘escalados’ para nenhum piquete. Mas percorremos, como percorríamos os bares, as sedes dos jornais: a Folha, onde o Neil Ferreira ficou sentado na frente do pneu do caminhão que tinha ordem de avançar, os Diários Associados, onde o Woile Guimarães abriu a camisa para o jato de água e areia dos brucutus, onde o Ivo Zanini e o Zé Hamilton – numa macabra antecipação – chutavam de volta as bombas de efeito moral.

Os que tinham aderido à greve eram chamados os de ‘bom caráter’. Depois das visitas aos piquetes, Murilinho diria alguma coisa assim: ‘Olha, acho que essa história de bom caráter também tem a ver com talento…’

Suporte criativo

A trajetória na Folha terminou logo, na Copa do Mundo de 1962.

De tanto propor reformas, tanto no texto como no visual, Murilo acabou conseguindo do Nabantino Ramos – então dono do jornal – a coordenação da cobertura da Copa do Mundo. Tinha direito a uma página (em termos de hoje, seria um caderno), só para ele e quem ele escolhesse. Fomos (nós, a equipe do Murilo) desclassificados antes das quartas-de-final por uma demissão coletiva. Os títulos, os textos, a paginação, a quebra da hierarquia foram insuportáveis para aquela redação estabilizada, acomodada.

Aquela turma caiu em um mercado que, logo depois, teria capacidade de absorver todos e mais alguns. Murilo passou pela Manchete e, de lá, foi para o Departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil, uma idéia inovadora de Alberto Dines (tocada, inicialmente, por Nonato Masson), com a tarefa de transformar um departamento de suporte editorial em um setor produtivo e criativo. De lá, indicou nomes para Mino Carta, que logo lançaria a ‘Edição de Esportes’ do Estado de S.Paulo – embrião do Jornal da Tarde – mas dirigindo, simultaneamente, a Quatro Rodas.

Última notícia

Com a chegada do Jornal da Tarde, Murilo poderia, finalmente, desenhar um organograma real, com muitos quadradinhos para serem preenchidos. Foi buscar os mineiros. Fez, no começo, uma mescla com paulistas como o Sérgio Pompeu, Tão Gomes Pinto, Ulysses, Hamiltinho de Almeida (carioca que andava por São Paulo), Rolf Kuntz, Carlinhos Brickmann, Gabriel Manzano.

Continuamos, cada um em empregos diferentes, sem a mesma freqüência de antes, percorrendo a noite, mas uma noite mais rica, de vinhos caros e charutos importados. Meu último encontro com ele foi uma espécie de almoço de despedida, no Parigi, quando decidi morar no interior do estado, poucos anos atrás. E a última notícia que tive veio do Myltainho, que está escrevendo um livro sobre aqueles tempos. Pediu uma entrevista com Murilo, em fevereiro último, e a resposta foi: ‘Myltainho, agora, os dias para mim são dia sim e dia não. Hoje estou no dia não’.

Será que o dia do Frei Galvão foi um dia sim ou um dia não?

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Jornalista