O livro Mídia, máfias e rock´n´roll, quinto do jornalista Claudio Julio Tognolli, reúne histórias sobre mídia e jornalismo. E, como sugere o título, sobre música e as zonas cinzentas da imprensa. Mas, embora trate dos imbróglios da profissão, a obra estabelece um diferencial sobre os congêneres: o selo da experiência do autor como repórter, lá se vão 27 anos. Além disso, como híbrido do jornalismo e da academia, Tognolli trava um profícuo diálogo com fontes que vão de Wittgenstein a Timothy Leary.
Numa narrativa personalíssima, o livro é uma crítica aos vícios da imprensa, só que ancorada em reportagens. ‘Boa parte do livro fala dos erros da mídia, mas a partir dos erros que eu mesmo cometi’, disse Tognolli. Segundo ele, a crítica de mídia que se faz hoje no Brasil é metafísica, uma vez respaldada na comodidade dos adjetivos. Nas investigações que compõem o livro, a mídia é eviscerada de uma forma arguta e original. Suas mazelas, seu modus operandi, tendências, acordos e ardis, disfarçados sob a capa da imparcialidade e da objetividade, são expostos sem complacência.
São muitos os episódios relatados. Na maior parte deles, Tognolli emerge como protagonista. Por exemplo, no caso do convite que recebeu para elucidar o desaparecimento do engenheiro da Odebrecht João Vasconcellos, seqüestrado no Iraque em 2005. Ou a na situação em que perdeu uma importante fonte, tendo, contudo, preservado a informação. Quando o negócio é defender o interesse público, não há meios tons para Tognolli. ‘Minha ética é com meu público. Não quer ver publicado, não me conte. Se algo tiver interesse público, mando bala.’
Doutor em Filosofia da Ciência pela USP, Tognolli vai buscar nos conceitos da física quântica oxigênio para a práxis do reportariado: ‘Não se identifique como repórter. Interaja como ator do fenômeno que você reporta. Alguém já chamou a isso de jornalismo gonzo. Eu chamo de jornalismo quântico’. No livro Tognolli escreve também sobre suas afinidades eletivas, como a música, ou, mais exatamente, o rock´n´roll. Ele chegou a se preparar para a profissão de guitarrista, mas, por um desvio do destino, foi tangido para o jornalismo.
Pioneiro do jornalismo investigativo no Brasil, Claudio Tognolli atua em diversas lides: é professor da USP e Fiaam e repórter do site Consultor Jurídico, das revistas Rolling Stone, Galileu e outras seis publicações. Por e-mail ele concedeu a entrevista que se segue às vésperas de lançar seu novo livro.
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São muitos os temas candentes da profissão abordados no livro, de tal forma que ele pode ser lido também como um manual produzido a partir de experiências sólidas. Houve essa pretensão?
Claudio Julio Tognolli – Acho que a crítica de mídia que se faz no Brasil hoje é metafísica. O adjetivo é a metafísica do verbo. Portanto, nossa crítica de mídia, adjetiva que é, é metafísica. Muitos adjetivos onde na verdade deveríamos ter reportagens. Boa parte do livro é reportagem sobre mídia. Com 27 anos de jornalismo, uma carreira acadêmica, e ainda repórter, me sinto à vontade para escrever sobre mídia porque habito redações, faço reportagens diariamente, procuro bastidores. Escrever sobre mídia sem trabalhar na mídia é colecionar selos, mas não mandar cartas. É ouvir o galo cantar sem saber onde. Boa parte do livro fala dos erros da mídia, mas a partir dos erros que eu mesmo cometi. Nesse sentido, o livro é uma confissão. Um ato de fé. Um dos capítulos se chama, por exemplo, ‘Como perder fontes’. Quem perdeu as fontes? Eu, é óbvio. Fiz fora do penico ‘n’ vezes e detalho isso.
Você faz vaticínios dramáticos, como o fato de que os jornalistas estão acabando, já que a tendência é o leitor querer, ele mesmo editar, e não ser editado. O jornalista, como mediador da informação, está mesmo com os dias contados?
C.J.T. – Não são vaticínios. Isso se apóia em pesquisas de quedas de vendagem. O livro tem um capítulo sobre o jornalismo ‘eu-cêntrico’, que é o nome de uma palestra que o Rosental Calmon Alves deu no International Consortium of Investigative Journalism, em Londres, órgão em que ele, o Fernando Rodrigues e eu representamos o Brasil. Se o jornalista continuar em gabinetes, está com os dias contados sim. Hoje as revistas que desafiam as grandes editoras são revistas de tribos, de gangues. Vendem muito. Quem escreve não é jornalista, mas fala a linguagem daquela tribo como ninguém.
Frase sua no livro: ‘Coisa boa só nasce em terreno ruim, é essa toda a verdade do jornalismo’. Hoje no Brasil está mais fácil ou mais difícil produzir informação relevante com tantas maquinações espalhadas por aí?
C.J.T. – Cousa boa vem do lodo, todo repórter sabe disso. Gabinetes não dão furos. São escrotos, sacripantas, calcetas, extorsionários, que sabem onde o bicho pega. O repórter deve freqüentar esse terreno pantanoso, sempre de escafandro. O demônio detém o futuro dos furos, não Deus.
Você se refere ao jornalismo como uma atividade ‘líquida’, e propõe um jornalismo ‘quântico’ para exercê-la, quântico no sentido mesmo que lhe empresta a Física. Como isso pode ser de fato aplicado à atividade jornalística?
C.J.T. – Se você for medir a temperatura da água fervente, o termômetro que você usa para medi-la, que está frio, já a altera. O fato de você observar um fenômeno já altera o fenômeno. O feixe de luz que observa o elétron muda ele de onda para partícula, ou vice-versa. Não existem fatos, só interpretações. A frase de Nietzsche vem de Pirro, de Protágoras, e toda essa gente embasou a mecânica quântica e a teoria da incerteza. Essa teoria se aplica assim ao jornalismo: não se identifique como repórter. Interaja como ator do fenômeno que você reporta. Alguém já chamou a isso de jornalismo gonzo. Eu chamo de jornalismo quântico.
Fazendo uma digressão sobre a natureza caleidoscópica da informação, você cita o filósofo Wittgenstein, para quem a linguagem era incapaz de exprimir tudo. Isso é uma confirmação da máxima de que, no jornalismo, resta se contentar com a melhor versão possível dos fatos?
C.J.T. – Não há melhor versão dos fatos. Há aquela que nos agrada, a que agrada à empresa e a que agrada ao entrevistado, ou não. Fiz meu mestrado em Wittgenstein quando era moleque, comecei em 1986. Wittgenstein diz que se nossa linguagem é possível de exprimir tudo, ela poderia responder, por exemplo, que horas são no sol agora.
No livro você detalha seu encontro com o guru da contracultura Timothy Leary. Dele você costuma citar a máxima ‘a realidade é uma opinião’. Como esse insight se estende ao jornalismo?
C.J.T. – Fui amigo do Leary e o trouxe ao Brasil em 1991. Fiz com ele uma de suas últimas entrevistas, em seu leito de morte, em 1997, em Beverly Hills. Foi com ele que aprendi a mergulhar no lance quântico, o que depois aprendi formalmente no meu doutorado sobre filosofia das ciências, cujo guru é o gênio uspiano Gildo Magalhães. Aprendi com outro guru, o Marcio Chaer, meu patrão no site Consultor Jurídico, que não existe justiça: existem juízes, cada um com sua cabeça. Não há uma realidade chamada ‘Justiça’. Há opiniões sobre ela, expressas legalmente por sentenças de cada juiz. Uma reportagem que eu julgue correta pode me levar a uma condenação, e vice-versa. A realidade é uma opinião.
Cito outra passagem do livro: ‘Estruturalistas gostam de ver a todo o momento o que há `por detrás´ da notícia. Este não será o viés deste livro. A proposição é bem outra: mostrar a cabala a ser revelada na própria epiderme da notícia, não no seu âmago.’ As teorias tradicionais de comunicação ainda servem para explicar as formas de produção da notícia?
C.J.T. – Professores de comunicação em geral são velhas baleias cansadas, mesmo quando jovens, porque ser repórter dá trabalho e então fica mais fácil criticar a mídia com adjetivos, sem reportagem. Dar aulas e gostar de ouvir a própria voz. E seguir a velha vulgata acadêmica de que Frankfurt tem todas as respostas, como a estruturalista pós-Frankfurt. Cada leitura revela um novo matiz. É o que Heidegger chama de ‘vulcão’, e que de outra forma foi expresso por Walter Benjamin, esse sim o pai da cabala da releitura. Jorge Luis Borges vindica a mesma cabala da polissemia gerada pela releitura. Mas quem se preocupa com isso? Que me lembre, no Brasil, só o finado e refinado Guilherme Merquior.
Na crítica ao processo de editorialização da notícia, você aponta um hiato entre o que a mídia condena nos outros e o que ela mesma pratica, o que a torna ‘imperdoável e moralmente indefensável’, citando a frase da jornalista Janet Malcom. Há alguma exceção a essa regra?
C.J.T. – Não. Apontamos nos outros os nossos erros e nos absolvemos desses erros. Mas não ao outro, jamais.
A crise do mensalão revelou, entre outras coisas, a invulnerabilidade da opinião pública (ou parte dela) às denúncias feitas exaustivamente pela imprensa.Tomando esse exemplo recente, ainda é possível se referir à imprensa como o quarto poder?
C.J.T. – Quarto poder nada. Quarto poder pra quem tem assessoria de imprensa. O povão não está nem aí. Só há um poder: Rede Globo. É a única cousa que faz diferença no Brasil. O resto é papo de aranha pra elites.
Cito outra reflexão do livro: ‘… Esse promontório chamado notícia é totalitário: nele, o agora é o ápice do tempo. Consuma o agora e encontre a sensação deliciosa de ter encontrado algo inegavelmente real’. Esse fetiche da velocidade, tão caro ao jornalismo atual, é irreversível?
C.J.T. – É a teoria da torrente: você não precisa conhecer mais conteúdos, mas estar conectado. Só vale o agora, a conexão. Não importa no que. Os manos dizem ‘tá ligado, mano?’ e essa é a cousa real. Eis todo o mistério da net e dos celulares. McLuhan é mesmo um gênio: o meio continua sendo a mensagem. Mais que isso: agora o e-mail é a mensagem. Ou: o meio é a massagem.
A tendência em curso de uma mídia ‘eu-cêntrica’, que você aborda no livro, poderia ser uma resposta ao totalitarismo dos editores?
C.J.T. – Sim! Não quero ser editador. Quero editar. Tolstói previu tudo quando disse ‘se quer ser universal, fale de sua aldeia’. A mídia era uma palestra, virou uma conversação. O anátema cai, surge o diálogo.
À velha máxima de Mc Luhan, ‘o meio é a mensagem’, você contrapõe que agora ‘o e-mail é a mensagem’, citando os blogs como arautos dessa nova mensagem. Os critérios de confiabilidade e qualidade, já desgastados na própria mídia tradicional, não se agravariam na blogosfera?
C.J.T. – A blogosfera vai rapidamente saber que ela está no mesmo espaço virtual que os grandes provedores e vai aprender que pode ser processada da mesma forma. É questão de tempo que ela se torne confiável. Mas a blogosfera, como diz o Rabino Bonder, virou o inconsciente coletivo. É óbvio que o superego da lei logo vai atacar aí também.
O livro aborda um tema tabu para os jornalistas, a relação com as fontes, e expõe dois casos pessoais em que você teve de abrir mão da amizade em nome do interesse jornalístico. Por causa disso foi taxado de ‘profissional antiético’ por uma dessas fontes. O interesse público deve ser sempre o objetivo do jornalista, não importam as circunstâncias?
C.J.T. – Minha ética é com meu público. Não quer ver publicado, não me conte. Se algo tiver interesse público, mando bala.
Ao enfocar o jornalismo cultural e seu desinteresse sobre o que acontece no circuito off Broadway, você volta a mencionar a ‘máfia do dendê’, que determinava o conteúdo dos cadernos culturais nos anos 90. Hoje esse monopólio seria exercido de forma mais competente por outros agentes, como a Companhia das Letras. Explique.
C.J.T. – Preciso explicar? Que eu saiba só Alberto Dines, pra variar, teve cojones de denunciar que os livros dessa editora ocupam o mesmo espaço, do mesmo domingo, nas maiores mídias. Os jornalistas têm submissão abjeta às grandes editoras, esperando ‘morder’ delas uma traduçãozinha ali, um livro aqui, ou mesmo terem suas cousas ali publicadas. É um toma lá dá cá dos diabos. O nego vai lá, dá um destaque ao livro, e quem sabe um dia ali possa publicar o seu.
O livro traz uma crítica à insuficiência dos nossos cursos de jornalismo, centrados ou em preparar profissionais voltados unicamente às demandas do mercado, ou excessivamente teóricos. A solução, para você, está em mediar essas duas tendências. Que proposta pedagógica poderia aproximar esses dois limites?
C.J.T. – Mais professores doutores que trabalhem em redação e mais jornalistas de redação que queiram dar aulas.
Você tem produzido reportagens caudalosas para a edição brasileira da revista Rolling Stone. É você quem sugere as pautas? Existe ampla liberdade editorial para escrever do jeito que você quiser?
C.J.T. – Sim, sou eu que sugiro e ainda bem que o Quinho Cruz, o diretor, topa. Muitas vezes ele até reclama ‘meu, esse não é você escrevendo, libere o seu badaró!!!’ Ali pratico o que chamo de jornalismo fenomenológico: de impressões, quântico. Dá um trabalho do cão fazer até 25 mil toques em estilo literário. Mas quem me botou nesse mercado impresso novamente, os anjos Helio Gomes e Edson Franco, diretores da Galileu, sempre deram essa liberdade também.
São quase 30 anos de profissão. Se tivesse que recomeçar, você teria optado pelo jornalismo?
C.J.T. – Claro que não. Meu lance sempre foi tocar guitarra. Estudei música como um cão, horas por dia, perdi minha adolescência em aulas de guitarra e violão clássico. O Dines e o Augusto Nunes me deram primeiro lugar num curso Abril, em 1985, e eu arrumei emprego. Eu fiz colegial técnico de jornalismo e já escrevia pra pequenos jornais desde 1979, bem antes de entrar na ECA. Fiz um estudo de chavões de composição. Adaptei ele pra imprensa, coletei 3 mil chavões de linguagem da nossa mídia, e esse trabalho encantou ao Dines e ao Nunes. Foi assim que saí fora da minha razão de viver: a música. Se eu tivesse de recomeçar, e tivesse as condições e talento, iria ser guitarrista pro resto da vida. Minha casa é repleta de guitarras, tenho um estúdio em casa, meu corpo é coberto de tatuagens de capas de discos do Genesis. Ainda bem que o jornalismo me recebeu de braços abertos. Como músico, eu passaria fome no Brasil, gostando de rock como gosto. Mas me contento em ter tocado no disco PR.5 do Paulo Ricardo, no disco res Enigmata Volens, do Apollo 9, aliás onde gravei guitarra synth harmonizer numa faixa em que o Seu Jorge canta, chamada ‘Ensaboar você’. A música jamais me renderia dinheiro pra eu comprar os equipamentos dos sonhos que tenho.
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Jornalista, editor do Balaio de Notícias