Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O trio elétrico, o chopp, a mandioca e o cacetinho

Estava morto de cansaço e de calor. Afinal, desde o início da manhã andava a pé pela zona rural de Macapá, produzindo imagens para um documentário. Envergava um colete de cinegrafista, carregava uma câmera de 800 quilos na mão e, no ombro, uma sacola de 12 toneladas cheia de fitas & baterias & filtros & tralhas do gênero. Estava um trapo, um resto, um cisco, com um fio de suor escorrendo pelo pescoço, o cabelo empapado debaixo do boné. ‘Não sei por que ainda insisto nessa profissão’, comentava por dentro, pela milésima vez, a língua seca como uma lixa, os olhos vasculhando as cercanias, atrás de algo pra beber. Súbito, um milagre! Num boteco modesto mas bem cuidado, uma plaquinha escrita à mão anunciava: ‘Temos chopp’.

No ouvido, repentinamente comecei a escutar os acordes da Aleluia de Haendel, enquanto os anjos do céu, em revoada, ruflavam asas à minha volta. As loiras da Brahma, da Antarctica e da Skol foram se sentando à mesa, sorridentes. E assim, abençoado, sentei-me numa cadeira, despejei a tralha, despi-me do colete de meia tonelada, limpei a testa e confirmei com o balconista: ‘Tem chope mesmo?’ ‘Tem, sim senhor’. ‘Pois me traga um, homem de Deus, e logo, antes que eu morra de sede’. Deu meia-volta, abriu a geladeira e trouxe um desses saquinhos plásticos com refresco congelado, conhecidos como din-din ou chupa-chupa. ‘Mas eu pedi um chope’, reclamei, com o áudio da Aleluia de Haendel já caindo perigosamente a BG. ‘Mas isto aqui é chopp’, insistiu, explicando que no Amapá din-din é conhecido como chopp. Inclusive se escreve assim, com dois pês.

Carnavais e micaretas

O pior é que era a única coisa que havia na geladeira. Cerveja, refrigerante, água mineral, nada. Só din-din, ou melhor, ‘chopp’. A esta altura, os anjos e as loiras começaram a desaparecer, a Aleluia de Haendel transformara-se num heavy-metal executado por uns diabos chifrudos e o suor descia pelas costas. ‘Aprende, Paulo José: milagres não acontecem. Já que não tem outra opção, pega logo o din-din e aproveita. Talvez seja o último. Afinal, é gelado e vem vindo ali um moleque com dinheiro na mão. Vai que ele veio comprar um ‘chopp’ e você fica sem din-din nem din-don?’

Resignado, recebi o ‘chopp’, abri a embalagem plástica com os dentes e encarei aquele picolé adocicado, feito sabe-se lá de quê. De longe, um anjo de Haendel, debochado, piscou o olho pra mim; as loiras repentinamente se transformaram em bruxas, enquanto um dos diabos do heavy-metal fazia aquele gesto obsceno do top-top. Dirigi ao anjo e ao heavy-metal uma vistosa banana, dei as costas para as bruxas e continuei a lamber o chopp, dando-me por feliz, depois de aprender mais uma vez a lição de que o que se conhece por Brasil, na realidade, é uma porção de brasis. E, se a gente não aprender a respeitar as diferenças que constituem nossa maior riqueza, corremos o risco de morrer de sede ou inanição cultural.

Mais ou menos por esta época, no ano passado, uma pesquisa da agência de publicidade DMB & B, destinada a fornecer subsídios à sua propaganda regional, identificou pelo Brasil 18 formas diferentes para chamar o que se conhece em São Paulo como ‘pão francês’. E algumas são muito curiosas: Cacetinho, Carioquinha, Careca, Filão, Francesinho, Mamão e Brotinho. A mesma pesquisa revelou que a promoção de um carro planejada para apresentar o ‘trio elétrico’ como uma grande vantagem foi imediatamente entendida pelos paulistas e cariocas como sinônimo de vidros, travas e retrovisores com acionamento elétrico. Já para baianos e gaúchos, ‘trio elétrico’ é um caminhão de som incrementado, diabólica criação dos baianos Dodô e Osmar, na passagem das décadas de 60 pra 70, que inferniza carnavais e micaretas pelos brasis afora.

Mistura milionária

Igualmente, nas pesquisas para a elaboração da minha Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês (um estudo sobre a linguagem regional piauiense que já vai pra terceira edição), descobri que o que se chama de mandioca em alguns pontos do Brasil é conhecido como macaxeira no Piauí. E pelo amor da santa, não vá trocar os nomes! Pois o que se conhece por mandioca, no Piauí, é um tubérculo muito parecido com a macaxeira, do qual se faz farinha, a farinha de mandioca. A diferença é que, se a mandioca (também conhecida como ‘mandioca braba’ no Piauí) for cozida como se faz em casa com a macaxeira, para consumo imediato, pode até matar quando ingerida. É veneno, veneno brabo.

As historinhas servem apenas para reforçar a tese de que não dá para suprimir as características regionais brasileiras em qualquer processo de comunicação em escala nacional, seja na redação de uma notícia pra jornal, seja pra pedir alguma coisa pra matar a sede em Macapá, seja pra lançar uma campanha publicitária, seja simplesmente pra comprar um pão na esquina ou para lançar um novo programa de rádio.

Alvin Toffler gosta de dizer que ‘a globalização acirra os tribalismos’. Será? Do jeito que a coisa anda, não demora e estaremos todos falando da mesma forma, comendo da mesma forma, brincando da mesma forma. Aliás, se olhar em torno perceberá que o processo de nivelamento cultural já começou, via televisão, e já vai longe. Os tribalismos começam a desaparecer entre mandiocas e cacetinhos, ao som do trio elétrico, aos brindes com chopps de morango e abacaxi. Em compensação, se respeitarmos nossas características tribais e ajudarmos a preservá-las, o Brasil continuará a ser feito da mistura milionária de vários brasis, com seus vários sabores, suas diversas cores, seus milhões de jeitos e trejeitos. E se Deus ajudar, vamos aprender os vários significados da palavra macaxeira, porém jamais saberemos o significado da palavra mo-no-to-nia, que rima com outras aí, entre elas uma tal de maquidônalde, um troço gorduroso que tem o mesmo gosto aqui, em Nova York ou em Macapá.

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Jornalista, pesquisador, professor da UnB, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Este artigo é parte do projeto acadêmico Telejornalismo em Close (http://caid.sites.uol.com.br), coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para (paulojosecunha@uol.com.br)