Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fórum foi um bom começo, mas só o começo

O I Fórum de TVs Públicas foi encerrado oficialmente na última sexta-feira (11/05), após quatro dias de debates em Brasília. Iniciativa do Ministério da Cultura, Radiobrás e TVE, com o apoio da Presidência da República, das associações das emissoras do campo público (educativas, legislativas, universitárias e comunitárias) e de organizações da sociedade civil defensoras da democratização das comunicações, o Fórum concretizou-se como um importante espaço de diálogo político acerca dos desafios a serem enfrentados na constituição de um Sistema Público de Comunicação.

A presença do presidente Lula no encerramento do evento e dos chefes do Legislativo (Câmara e Senado) na abertura dos trabalhos alguns dias antes é sinal de que há vontade política para romper com a hegemonia privada no principal meio de comunicação do país e oferecer à sociedade uma alternativa de programação baseada no interesse público. A Carta de Brasília, elaborada em conjunto pelos organizadores (governo) e apoiadores do evento (sociedade civil), aponta um conjunto de diretrizes e premissas importantes a serem seguidas no desenvolvimento do campo público de televisão.

Princípios e diretrizes

Se serão considerados daqui para frente, ou não, é uma outra história, mas é inegável que os princípios expostos na Carta de Brasília são referência positiva para o futuro da comunicação pública no Brasil. Além de diretrizes gerais relativas à programação, foram reforçados conceitos fundamentais para que a rede seja, de fato, pública. Entre elas destaca-se a afirmação da gestão democrática, com um conselho deliberativo sem maioria de governos e membros do Estado, imprescindível para evitar o aparelhamento político e uso instrumental dos conteúdos.

Em relação ao financiamento, o documento defende a independência na gestão das verbas, garantindo imunidade à tradicional pressão do ‘abrir e fechar a torneira dos recursos’ aplicada por governantes em algumas emissoras como, por exemplo, a TV Cultura. Esta estrutura deverá viabilizar uma programação cuja prioridade será dada aos conteúdos independentes e regionais, com a promoção das tantas diversidades existentes no país e até hoje sufocadas pela televisão privada.

Sobre o processo de migração para a tecnologia digital, a Carta propõe a instituição de uma tecnologia compartilhada de transmissão digital (operador de rede) e a alocação das emissoras do campo público (dos poderes Legislativos, Judiciário e Executivo, assim como as universitárias e comunitárias) no espectro da televisão aberta durante o período de transição para a nova tecnologia e após sua completa implementação no país.

Princípios promissores

Afirmou-se, também, que as políticas públicas de comunicação devem, mais do que constituir a rede pública e reaparelhar as emissoras existentes, apontar para a criação de um Sistema Público de Comunicação, tal como previsto no Art. 223 da Constituição Federal (em complementaridade com os sistemas estatal e privado na radiodifusão). A visão sistêmica se materializou também na inserção na carta de uma das principais demandas das entidades da sociedade civil: a promoção de políticas que ofereçam aos cidadãos capacidade de participar ativamente da produção e distribuição de conteúdos, reafirmando o eixo central do direito à comunicação.

Outro ponto defendido pelas organizações civis e também incorporado à Carta final do encontro foi a defesa de modelos de propriedade intelectual que potencializem a socialização dos conteúdos e do conhecimento.

Todas estas premissas e princípios, se comparadas às posições anteriores do governo federal e da forma subserviente com a qual o Estado sempre se relacionou com a mídia comercial e oligárquica, definitivamente, não são pouca coisa.

Ficou de fora

Apesar de boa parte do Fórum estar reservada à exposição das associações das emissoras comunitárias, universitárias e legislativas, pouco se avançou na elaboração de propostas concretas para estes segmentos. O modelo de financiamento dessas emissoras, ponto recorrente nas intervenções de seus representantes, não recebeu atenção. A exceção se deu em relação ao desenvolvimento de uma estrutura compartilhada de transmissão e à sua presença na TV aberta. Mas, se hoje os que exploram estas emissoras, a partir da Lei do Cabo, o fazem por acordo com a operadora, caso tais programadores sejam alocados na TV aberta, será necessário promover um processo de outorga pública, em que os atuais exploradores tenham que conviver tanto com outras universidades quanto com outras associações de cunho comunitário. O assunto é delicado, mas precisa ser enfrentado se a proposta for (e deve ser) levada adiante.

Entretanto, se do ponto de vista concreto pouco se avançou, o Fórum criou um ambiente favorável para estas emissoras, sempre secundarizadas nos debates sobre a comunicação do campo público. No processo, as entidades representativas podem fazer crescer sua relevância política e se fazerem ouvir durante a implementação do Sistema Público de Comunicação.

Ausência marcante

Enquanto a presença das ‘autoridades’ fortaleceu o Fórum e seus grandes articuladores (Ministério da Cultura e Radiobrás), a ausência do Ministro das Comunicações, Hélio Costa, tanto na abertura quanto no encerramento do evento, é sintoma de seu enfraquecimento político. Desautorizado por Lula a falar sobre a televisão pública após dar munição aos conservadores de plantão – ao afirmar que o presidente almejava criar uma ‘TV do Executivo’ –, Costa foi perdendo o poder sobre questões ligadas ao campo das comunicações.

Era de se esperar: quando convenceu Lula e a ministra Dilma Roussef de que a escolha do padrão japonês seria a melhor alternativa para manter, às vésperas das eleições, um ambiente amistoso com as emissoras de televisão, em especial a Globo, Costa parece ter dado um tiro no pé. Além das decisões acerca da TV digital terem ficado marcadas como estrategicamente equivocadas sob diversos aspectos, o ministro prometeu um acordo com a Globo e não o entregou (ou alguém esqueceu a cobertura da Globo durante as eleições). A conseqüência deste fracasso pode ser o progressivo afastamento do ministro das decisões estratégicas do setor. No caso da televisão pública, isso já é visível. Resta saber se o cenário se repetirá na discussão sobre a Lei Geral de Comunicações, chave para o futuro da mídia no país.

Mas, para quem pensa que o aparente enfraquecimento de Costa significa um esmorecimento da relação do governo federal com os radiodifusores, é importante lembrar que a pressão dos donos de emissoras de TV e Rádio está fazendo o ministro da Justiça, Tarso Genro, reabrir o debate sobre a portaria da Classificação Indicativa. Curiosamente, os barões da mídia brasileira têm preferido mirar nesta iniciativa do Ministério Justiça a abrir fogo contra a rede pública, como fizeram contra a proposta de criação de uma Agência Nacional do Audiovisual (Ancinav). Pelo menos por enquanto.

Para onde vai?

Se as diretrizes da Carta de Brasília apontam princípios importantes e evidenciam o fortalecimento das forças que defendem a democratização da mídia dentro e fora do governo, isso significa que estamos na iminência da instituição de um verdadeiro Sistema Público de Comunicações? A responsabilidade induz à prudência. Em primeiro lugar, é preciso transparecer qual o nível do comprometimento do ministro Franklin Martins com o acúmulo gerado pelo Fórum, em especial às premissas presentes no documento final. Martins recebeu de Lula a missão de fazer o trem da rede pública andar, e parece querer fazer isso rapidamente.

Por um lado, a pressa é saudável: se patinar, corre-se o risco de parar, permitindo que as forças contrárias à democratização do país se organizem. Por outro, é simultaneamente um erro e um risco. Um erro, pois tende a alijar do processo os que até agora se mostraram favoráveis à proposta e que estão dispostos a defender publicamente a iniciativa. Um risco, pois projetos implementados sem diálogo correm sempre o risco de desvirtuar o acúmulo anterior, sendo resultado exclusivamente da mente de uns poucos que se julgam iluminados e detentores absolutos do mandato popular conferido pela sociedade. Vale lembrar que Franklin, no encerramento do evento, somente ‘agradeceu’ as contribuições. Não se manifestou sobre a Carta de Brasília, deixando a impressão difusa da opção pelo não comprometimento com seu conteúdo.

Durante o próprio Fórum, o ministro formou um pequeno grupo para auxiliá-lo na tarefa de implementação da rede pública composto, entre outros, pelo professor Laurindo Leal Filho, da USP, e Eugênio Bucci, ex-presidente da Radiobrás, ambos personalidades com notória sintonia com os princípios defendidos na Carta de Brasília. Entretanto, a opção por devolver aos gabinetes algo que pertence ao domínio público, e que só terá chances reais de ser aprovado no Congresso Nacional se contar com o apoio da sociedade – em especial daqueles que, durante o processo, esforçaram-se para encontrar as convergências necessárias para que o projeto seguisse adiante – é temerária. Não à toa, sinalização inversa veio do próprio ministro da Cultura, Gilberto Gil, que defendeu a constituição do Fórum como espaço permanente.

Em segundo lugar, a prudência faz-se necessária em função da ausência de propostas objetivas, especialmente em relação à gestão e ao financiamento da nova rede pública. Apesar da consagração de princípios como ‘autonomia’ de gestão e financiamento, questões fundamentais precisam ainda ser respondidas. Haverá mesmo um conselho gestor? Quem o comporá? Como será o processo de escolha dos conselheiros? De onde virá o dinheiro? O governo poderá contingenciá-lo?

Sobre a formação da rede pública, mais questões permanecem. Qual será o nível de interação entre as emissoras educativas hoje existentes e a nova rede? A rede será mais horizontal (descentralizada) ou vertical (mais centralizada em uma emissora nacional)? As emissoras estaduais precisarão rever seu modelo institucional e se ‘publicizar’ para compor a rede?

Outro ponto ainda nebuloso é a transição para o sistema digital. A primeira questão refere-se aos quatro canais reservados no Decreto 5820 (do Poder Executivo, de educação, de cultura e de cidadania), pois estes foram definidos sem qualquer sintonia com as posições que agora se consolidam. Novas perguntas poderiam ser feitas sobre este tema: quais canais serão ocupados e de que forma? As emissoras públicas irão entrar no sinal analógico e digital, como as comerciais, ou ficarão apenas com a ‘sobra de espectro’ possível? Como se dará o modelo de multiprogramação defendido na Carta de Brasília? As emissoras comerciais terão 6 MHz e as públicas um quarto disso? Haverá isonomia entre públicas e comerciais? O rádio, primo pobre cuja importância é inversamente proporcional ao tratamento que vem recebendo das discussões sobre políticas públicas, ficará de fora mais uma vez?

Todas estas perguntas e questões em aberto mostram como o Fórum de TVs Públicas não foi a fase final de um processo, mas um começo. Um bom começo. No entanto, cabe agora a seus organizadores manterem o espírito de cooperação e participação que marcou sua primeira fase, entre setembro de 2006 e o evento realizado na última semana. De outra forma, a pressa pode não ser inimiga da perfeição, mas certamente será da ampliação e do fortalecimento da democracia.

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Coordenadores do Intervozes