Da conhecida Homenagem ao Malandro, de Chico Buarque:
‘Mas o malandro para valer, não espalha,/ aposentou a navalha, tem mulher e filho e tralha e tal./ Dizem as más línguas que ele até trabalha,/ Mora lá longe e chacoalha, no trem da central’.
Se o antigo malandro aposentou a navalha, a Polícia Federal, não. E a ela recorreu para dar nome aos bois, usando-a para aplicar fundos cortes na corrupção.
Mas, bem entendido, recuperou apenas como metáfora o instrumento, já raro entre nós, substituído por outras lâminas de barbear e aparelhos elétricos. E desta vez a navalha estava, não na mão do bandido, mas na do mocinho.
Que bom seria se os profissionais da psicologia, da psicanálise, da psiquiatria e de disciplinas de domínio conexo jogassem luz para nós, leigos, sobre os fundos motivos, que os haverá, de a Polícia Federal dar este, e não outro nome, ao trabalho que levou à prisão a imensa quadrilha.
As sofisticadas formas de corrupção tornaram obsoleta até a palavra! Quadrilha veio do espanhol cuadrilla, provavelmente alteração do francês quadrille, com remotas raízes no latim quadrivium.
O quadrivium designava quatro ramos do saber (aritmética, geometria, música e astronomia), que, acrescidos do trivium (gramática, lógica e retórica), completavam as sete artes liberais ensinadas na universidade – como se sabe, uma instituição criada na Idade Média, falsamente denominada Idade das Trevas, quando na verdade preparou o Renascimento.
Malandros federais
De todo modo, quadrilha passou a designar grupo de quatro itens (pessoas, estrofes, versos, passos de dança etc.), fixando-se na designação de organizações criminosas, há muito tempo compostas por mais de quatro elementos. Aliás, a palavra nasceu, não do número dos salteadores, mas das partes em que eram divididos os roubos ou furtos.
Reconheça-se, como óbvio, que a escolha do nome tem um leitmotiv que lhe serve de lastro. Será que o policial que escolheu navalha para identificar a operação, pensou na navalha de barbear, a mesma que o malandro antigo usava como arma? Ou terá sido inspirado pelo instrumento que, nas gráficas, corta o papel? Há também um capim com este nome, desdobrado em outros, de que é exemplo navalha-de-macaco. Sem contar que a poeta Alice Ruiz tem um belo poema intitulado ‘Navalha na Liga’:
‘Valha navalha na liga/ Nada na barriga/ Valha navalha/ Não se escandalize, não/ Tudo isso a gente pensa/ Quando entra em transe/ Quando sai da crise’.
Não sabemos se a Operação Navalha nos tira de uma crise, principalmente ética – que, aliás, tem sido a mais devastadora –, ou nos conduz a outra, mas seria bom que as prisões ora efetuadas nos levassem a poder negar os antigos versos de Chico Buarque:
‘Agora já não é normal,/ o que dá de malandro regular profissional,/ malandro com o aparato de malandro oficial,/ malandro candidato a malandro federal,/ malandro com retrato na coluna social,/ malandro com contrato, com gravata e capital,/ que nunca se dá mal’.
Nos versos iniciais, Chico diz que o projeto era ‘fazer um samba em homenagem à nata da malandragem’, e que foi à Lapa, conhecido bairro boêmio do Rio, mas perdeu a viagem, pois ‘aquela tal malandragem não existe mais’.
Aquela, não. Outras malandragens invadiram nossos costumes políticos. Há muito tempo! Mas, em nenhuma época, malandros federais terão sido tão ousados. Encontraram, porém, outros federais no caminho.
Resta uma pergunta incômoda: e se não fossem flagrados, aonde iriam parar?
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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde coordena o Curso de Letras; www.deonisio.com.br