Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As relações entre mídia e poder em Brasília

Um dia antes de ser preso pela Polícia Federal (PF) na Operação Navalha, o deputado distrital Pedro Passos (PMDB) ligou para um empresário de Brasília. Na conversa, Passos demonstra tamanha intimidade com o interlocutor a ponto de lhe terceirizar a prerrogativa parlamentar de assinar ou não CPIs no Legislativo do Distrito Federal.


Às 15h02min de 16 de janeiro, quarta-feira, os policiais federais grampearam o parlamentar numa conversa com Ronaldo Junqueira, dono do Jornal da Comunidade (ouça e leia). Os diálogos entre Passos e Junqueira não indicam nenhum crime cometido pelos dois. Mas são reveladores das relações nem sempre saudáveis entre mídia e poder, em que os interesses econômicos costumam prevalecer. Ocorreram em Brasília, mas não seriam muito diferentes se tivessem sido captados em qualquer outra cidade do país.


Na conversa, Junqueira afirma que deputados e ex-políticos seriam sócios ocultos de empresas de outdoors na capital federal. O empresário reclama da interferência do distrital por meio de discursos em plenário sobre a distribuição das cotas de publicidade do governo do Distrito Federal. Passos, que havia ligado para reclamar de uma matéria publicada pelo jornal contra ele, acaba sendo repreendido por Junqueira: ‘Quando você esculhamba a publicidade do governo você está brigando com todos os jornais da cidade. Não é só comigo’, diz ao justificar o texto contrário ao distrital, acusado de favorecer a construtora Gautama, empresa-mãe investigada pela Operação Navalha, no período em que comandou a Secretária de Agricultura do DF.


A reportagem citada por Passos remontava a denúncias de envolvimento do distrital com grilagem de terras:




‘A CPI da grilagem de terra foi uma das mais complexas por envolver o hoje deputado distrital Pedro Passos (PMDB), que chegou a ter a sua prisão decretada e o seu irmão, Márcio Passos, preso pela Polícia Federal. Pedro se safou da prisão conseguindo se eleger em 2002 para uma vaga na Câmara Legislativa, e com a diplomação, conseguiu imunidade parlamentar.


A máfia dos grileiros que se apossou de áreas públicas era formada por grupos organizados que falsificavam escrituras, usavam laranjas, levando o Judiciário a incorrer em erro, constituindo condomínios na aposta da teoria da irrevogabilidade do fato consumado e depois vendendo muitas vezes o que não possuíam’.


 Na conversa com Passos, Junqueira reclama que os deputados distritais estão propondo cortes no orçamento de publicidade do governo do DF. ‘Tem uns 11 deputados doidos propondo cortar 20 milhão (sic) cada um da verba do governo de publicidade e você está lá no meio. Meu Deus do céu’, protesta o empresário.


‘Mas pra que você vai bater em mim, o único que é seu amigo de verdade, sô? Bate nos outros dez, uai… Algum dia na vida você me pediu alguma coisa que eu falasse não para você? Você tem dúvida de que, se você pedir pra mim (sic) tirar assinatura de CPI ou botar, se eu deixo de tirar ou deixo de botar?’, responde Pedro Passos.


O empresário admite na gravação que mandou fazer a reportagem contra o deputado distrital depois de um pronunciamento que o parlamentar fez sobre os gastos com propaganda. ‘Agora não tem uma semana que você não faz um discurso esculhambando publicidade’, reclama Junqueira. ‘Todo dia chega repórter meu: `Olha, o Pedro Passos ta lá fazendo discurso esculhambando a publicidade. Olha o Pedro Passos ta lá… P*! Que m* é essa?´’.


Junqueira se vangloria de um de seus repórteres, o editor de política de seu jornal, escalado para ‘bater’ no distrital motivado pelos seus interesses privados. ‘Mas por que que invés de você chamar o Calado (Ricardo Calado) pra me dar uma porrada em mim, você não me chamou?’, reclama Passos. ‘É que o Calado é igual àqueles assassinos do Nordeste. Você manda ele atirar e ele atira. Quantos tiros, chefe?’, retruca o empresário. Passos recomenda, em dado momento, que o dono do jornal ‘bata’ em Alírio Neto (PPS), o presidente da Casa.


Deputados ‘por trás’


Na conversa, Junqueira também reclama que a Câmara Legislativa do Distrito Federal está aumentando a verba publicitária para os outdoors espalhados pela cidade. Os empresários de jornal teriam se reunido na manhã de 16 de maio para discutir um meio de mudar a situação com o presidente da Casa, Alírio Neto (PPS). ‘Eu já mandei avisar para ele. Não faça essa bobagem. Esse negócio de outdoor. Eu sei que em cada empresa de outdoor tem um deputado por trás’, acusa o empresário.


Segundo Junqueira, os anúncios da Casa estavam sendo veiculados nos painéis do senador cassado Luiz Estevão, do ex-deputado federal Wigberto Tartuce (PP) e do empresário Paulo Roxo – que, segundo fontes consultados pelo Congresso em Foco, foi coordenador informal de campanha do governador do DF, José Roberto Arruda (DEM). Roxo não foi localizado pela reportagem, assim como Estevão. Tartuce não retornou recados deixado com seu assessor.


‘Agora quebra nosso galho. Não mexe com esse negócio de publicidade, não, porque já tem muita gente pra dar trabalho pra nós. Vai fazer CPI do lixo, fazer o que você quiser’, sugere o dono do Comunidade ao distrital Pedro Passos.


O coordenador de Comunicação da Câmara Distrital, Paulo Gusmão, disse que Alírio não comentaria as declarações grampeadas pela PF. Ele afirmou a alocação de verbas para publicidade em outdoors é proporcionalmente a mesma do ano passado, assim como os valores para jornal. Gusmão disse que nem ele nem Alírio foram procurados por donos de jornais insatisfeitos. Para este ano, a Câmara tem um orçamento de R$ 8 milhões para gastar com publicidade.


As gravações mostram que Passos imaginou que o empresário temia uma eventual CPI do Lixo, para investigar irregularidades da administração de resíduos sólidos em Brasília. ‘Eu achei que você estava brabo até com essa do lixo. Na hora que eu vi a matéria, eu pensei que você estava contrariado era com negócio desse do lixo, porque você gosta deles aí…’, revela Pedro Passos.


Mas Junqueira tranqüiliza o distrital. ‘Nesse negócio do lixo, eu sou amigo dos caras, mas eu não morro abraçado com isso, não. Isso não é meu negócio. Ô, Pedro, meu negócio chama-se publicidade. É faturado, pago imposto, tenho 250 empregados. Tem um negócio que serve para mim, pra minha família e pro meus amigos como você. Eu olhava e dizia o que, esse filho de uma égua, sem vergonha. Eu chamei o Calado e falei: Dá uma porrada nesse cara, p*!’, explica ele.


Ajuda


Na conversa, Junqueira diz ter ajudado o distrital oposicionista José Reguffe (PDT) na campanha eleitoral com a impressão de cartazes. Afirma ainda que, empossado, pediu ao parlamentar para não mexer em questões de publicidade. Leia os detalhes sobre as citações sobre Reguffe:




Ronaldo Junqueira: Você conhece o Reguffe?


Pedro Passos: Ah, ah…


Ronaldo Junqueira: Deputado novo, cheio de gás, não sei o que. Você sabe que na eleição eu até ajudei ele. Dei uns cartaz para ele, uns trem lá.


Pedro Passos: No dia que ele foi lá, tomou posse, ele foi lá… Ronaldo tem alguma coisa possa te ajudar? Eu falei nada. Nada de cargo, não tem emprego eu não quero nada. Aí ele perguntou e falou se tinha alguma coisa que podia me atrapalhar. Eu falei tem. O que é? Quando aparecer o assunto publicidade de governo você sai de plenário. Você corre disso como o diabo da cruz. Por que? Porque você pensa que tá sacaneando o governo, mas não tá. Tá sacaneando os jornais. É a Globo. É o c*. E você é muito novo para arrumar uns inimigos desses.


Pedro Passos: Risos. Eu acho até que…


Ronaldo Junqueira: Tanto é que se viu que no negócio das emendas ele não entrou, não.


Reguffe contestou as declarações. Primeiramente, mandou ao Congresso em Foco sua prestação de conta eleitoral e extratos bancários para provar que não recebeu dinheiro nem recursos do Jornal da Comunidade. Afirmou que apenas pagou à empresa por dois anúncios que fez, com mostram os documentos, com dois cheques no total de R$ 3.500. E exibiu notas taquigráficas da Casa para provar que, na votação de lei que abriu crédito extraordinário para custear publicidade do governo, foi o único parlamentar contrário à proposta. ‘Tudo na minha campanha foi transparente e declarado, ao contrário de alguns deputados’, rebateu.


Boa repercussão


Na gravação, Junqueira diz a Passos que a reportagem publicada contra ele por seu jornal teve boa repercussão entre integrantes do governo. O secretário de Comunicação do DF, Wellington Moraes, teria dito: ‘Esse f.d.p. desse Pedro Passos é amigo nosso e agora resolve mexer com publicidade. Será que ele quer botar o Valério [Neves, ex-secretário de Articulação do então governador Joaquim Roriz (PMDB) e um dos membros do comitê de publicidade] na cadeia? Ele tá com raiva do Valério. Ô, Pedro, você sabe que, se abrir uma CPI aí, quem é quem vai pro pau. Você sabe’.


Ao saber do comentário, o deputado responde: ‘Eu brinquei esses dias com o menino do Jornal de Brasília […]: A turma do pequi [referência a políticos de Brasília que são goianos] vai tudo pra Papuda. Junqueira comenta sobre ‘aquela fila que tinha lá no Valério’.


À reportagem, Valério, hoje chefe de gabinete do senador Roriz, disse ter 26 anos de serviço público. ‘Mas nunca tive nenhum problema’, afirmou ele, que era responsável por fazer os empenhos aos veículos e agências de comunicação e conferir a qualidade do serviço. Quanto à ‘fila’ sugerida por Junqueira, Valério diz ser algo normal a quantidade de pessoas reclamando, às vezes, de que o serviço prestado não foi bem atestado pelos técnicos, por exemplo, por problemas de impressão e cores.


Sobre outras declarações, Valério Neves disse que Junqueira é que tem de explicá-las. Wellington Moraes não foi localizado pela reportagem.


Confirmação


Procurado pela reportagem, Junqueira afirmou que já sabia que a conversa havia sido grampeada pela PF. Confirmou tudo o que disse. ‘O que eu falei dessa gravação do Pedro Passos eu confirmo para você, eu confirmo na CPI, na rede Globo de Televisão, onde você quiser. Se você quiser, até com imagem, pode vir gravar que eu falo de novo.’ Junqueira não quis entrar na discussão sobre as empresas com sócios ocultos e os políticos e empresários citados. ‘Eu não vou ajudar a aumentar essa lama; você cuida disso do jeito do que você quiser. Não tenho o menor interesse nisso. Sou jornalista, você sabe disso.’


Junqueira também afirma em entrevista ao Congresso em Foco que não vê nenhum problema ético na sua relação com o distrital Pedro Passos. ‘Não vejo problema nenhum nisso. É o meu modo de pensar, eu tenho direito disso’. Sobre os ‘créditos impagáveis’ com Passos, ele diz que eventualmente ajudava o distrital durante a campanha eleitoral assim como outros candidatos. ‘Eu não pedi matéria para bater. Eu informo. O verbo exato é informo. Exercendo o direito constitucional que o meu jornal e eu temos direito de fazer isso’, disse sobre a reportagem contra Passos.


Perguntado se essa maneira de lidar com o deputado era uma postura ética, o dono do jornal não teve dúvidas. ‘Não estou preocupado com isso, meu filho. Eu sou empresário de comunicação, não sou empregado de empresa de comunicação. Se eu puder defender o governo que anuncia comigo, seja e ele o governo Cristovam Buarque [ex-governador do DF pelo PT e hoje senador do PDT], o governo Lula, não tem problema. Eu acho uma burrice político tratar de publicidade. Trata quem quer.’


Sem monitoramento


Sobre o deputado Reguffe, ele disse que falou para o deputado não se meter em assuntos de propaganda na Câmara Legislativa. ‘Tanto é que ele não me obedeceu. Ele fez um projeto de lei tratando desse assunto’, diz. Na questão das emendas que retiravam recursos de publicidade do governo Arruda, Junqueira diz que o recém-eleito deputado distrital não assinou nenhuma dessas proposições legislativas. ‘Mas não entrou porque não quis. Eu não estou monitorando o mandato de ninguém’, defende-se.


Antes do fim da entrevista, o empresário também afirma se sentir ‘um personagem inútil’. Ao saber que seria citado juntamente com o deputado distrital Pedro Passos, respondeu: ‘Tô em boa companhia, então’.


Por meio de sua assessoria, Passos condenou o vazamento da informação, que está num inquérito policial sob segredo de Justiça. ‘A pessoa que tem coragem de subtrair isso não tem receio de fazer qualquer coisa e manipular as gravações’, comentou ele. Passos afirmou que não comentaria o conteúdo dos diálogos


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Aqui a íntegra dos diálogos, em texto e áudio.

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Repórteres do Congresso em Foco