O consumo de bebidas alcoólicas no Brasil aumentou 150% nos últimos 30 anos, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). O governo não fechou os olhos para esse crescimento alarmante e suas conseqüências: na quarta-feira (23/5), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva baixou o decreto 6.117/2007, que instituiu a Política Nacional do Álcool. O documento reúne 30 medidas que restringem a exibição da propaganda de bebidas com baixo teor alcoólico – o caso da cerveja, por exemplo – na televisão. De agora em diante, esse tipo de anúncio só poderá ser veiculado a partir das 21 horas. Na mídia impressa, as peças deverão conter advertências sobre os riscos à saúde, como já ocorre na propaganda de cigarros.
A polêmica está no ar. De um lado os publicitários e os fabricantes de cerveja defendendo seu peixe; do outro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável por impor as medidas do decreto. O Observatório da Imprensa na TV de terça-feira (29/5) debateu o tema.
No editorial que abre o programa, Alberto Dines mencionou os reincidentes escândalos de corrupção que afetam a credibilidade de um Brasil sério. E aludiu ao tipo de corrupção que o alcoolismo produz na sociedade – ‘corrupção do caráter, dos valores, da responsabilidade, da coesão social’ [ver abaixo a íntegra do editorial]. Para Dines, o Estado tem a tarefa de regular a propaganda do álcool e do cigarro sobretudo nos meios de radiodifusão, que são concessões públicas. O apresentador disse também que em geral o programa guarda o direito de não revelar o nome de quem não quis participar do debate, mas que nesta edição havia um dado que se fazia necessário registrar: nenhum publicitário, nenhum representante de grandes redes de mídia eletrônica ou da indústria cervejeira, ou mesmo do Conar, aceitou participar do programa. A única manifestação pró-cervejeiras veio através do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv), que enviou uma nota que foi lida no ar [ver íntegra abaixo]. Diz o Sindicerv que a indústria e o Estado deveriam andar juntos para encontrar soluções para os problemas reais e cientificamente comprovados advindos do consumo do álcool. Um tanto quanto paradoxal.
Para debater o assunto, o Observatório recebeu o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, que participou direto de Brasília. Para entrevistar o ministro, foram convidados a jornalista Marta Salomon, da Folha de S.Paulo, em Brasília, e o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador do Movimento Propaganda Sem Bebida, em São Paulo.
Samba atravessado
O governo está impondo rigor ao consumo do álcool e as novas restrições atingiram a publicidade do produto. As campanhas publicitárias, que em geral se utilizam de belas mulheres, jovens e artistas se divertindo ao consumir a bebida, agora terão horário predeterminado. O decreto 6.117 também limitou a venda de bebidas em estradas e postos de gasolina em razão do grande número de acidentes envolvendo abusos de álcool.
O médico José Macedo, do Hospital Souza Aguiar, no Rio, disse que o consumo do álcool está diretamente relacionado à gravidade do acidente e à quantidade de feridos envolvidos nas ocorrências. ‘Isso está mais do que comprovado’, garantiu. O jornalista Cláudio Cordovil, especialista em ciência, vai mais longe: disse que os estudos de que participa mostram que há uma relação direta entre a publicidade e o aumento do consumo. Para ele, na vinculação entre o álcool e as mortes violentas ‘existe talvez um crime de responsabilidade do qual a publicidade vai ter que se defender’.
O mercado de cervejas movimenta 20 bilhões de reais por ano no Brasil, e mais 1 bilhão de reais apenas em publicidade. É por causa disso que os fabricantes da bebida se opõem à Anvisa, que já impõe limitações aos anúncios de uísque e de cachaça. De seu lado, as agências de propaganda afirmam que a Anvisa não tem competência para legislar sobre a publicidade.
Mas questão não se restringe a apenas isso: as próprias indústrias cervejeiras acusam-se mutuamente de apelar sexualmente nos comerciais produzidos para as marcas da bebida. Note-se também que o vinho vem sendo muito glamourizado pela mídia nos últimos anos, especialmente em reportagens.
Após a promulgação do decreto federal, a mídia abriu espaço para o debate: o ministro da Saúde reclamou dos artistas que participam de anúncios de cerveja, citando nominalmente o sambista Zeca Pagodinho. Este reagiu dizendo que a iniciativa era uma demonstração de incompetência do governo. Procurado pela produção do Observatório, o cantor disse que não iria mais falar sobre o assunto.
A legislação dos anúncios de bebida foi debatida pelo programa há quatro anos, quando o Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) recomendou a retirada do ar de um comercial e a proibição da participação de pessoas que aparentam ter menos de 25 anos de idade nas peças publicitárias de bebidas alcoólicas.
Educação das crianças
Alberto Dines abriu o debate citando a edição do Jornal Nacional daquela noite, que mostrou uma matéria contra o tabagismo mas, nos intervalos comerciais, veiculou duas propagandas de cerveja. Dines perguntou a Marta Salomon – repórter especialista em políticas públicas – qual é a atitude da mídia privada quando precisa conciliar seus compromissos com a cidadania com a necessidade de gerar receitas publicitárias.
A jornalista disse que a decisão governamental entrará em vigor daqui a três meses. O decreto deixa claro que as propagandas de bebidas alcoólicas só poderão ser veiculadas a partir das 21h e que, mesmo na mídia impressa, os anúncios deverão vir acompanhados de avisos, como já acontece com o cigarro desde a década de 1980. ‘Acho que é um momento de refletir qual o compromisso que os veículos têm com a saúde pública’, afirmou Marta.
Dines referiu-se a um dado da Secretaria Nacional Antidrogas, indicador de que 25% dos brasileiros consomem bebidas alcoólicas em demasia. Para ele, isso não é fruto apenas da influência da publicidade – e perguntou a Ronaldo Laranjeira a que se deve esse consumo excessivo.
Para o psiquiatra, trata-se de uma questão complexa: o preço das bebidas é baixo, há muitos pontos de venda, a propaganda já existe há muitos anos e a indústria tem planos de aumentar a produção. ‘O que temos no Brasil é um mercado completamente desregulado em relação ao álcool’, disse. ‘Diferente do que acontece nos países desenvolvidos, onde não é possível beber em uma série de circunstâncias.’ Laranjeira lembrou que a proibição dos anúncios de bebidas alcoólicas em determinados horários faz sentido porque deixa de deseducar as crianças. ‘Quem educa ou deseduca nossos filhos em relação ao álcool é o Zeca Pagodinho e as propagandas glamourosas. Isso é intolerável do ponto de vista ético, dos valores de uma sociedade democrática’, afirmou. Para ele, o Brasil deve caminhar na direção da regulação do álcool: ‘Temos que cuidar da saúde da nossa população’.
‘Resultado concreto’
O apresentador disse que em geral o programa guarda o direito de não revelar o nome de quem não quis participar do debate, mas que nesta edição do Observatório ‘há um dado que convém registrar’: nenhum publicitário, nenhum representante de grandes redes de mídia eletrônica ou da indústria cervejeira aceitou vir ao programa. Apenas o Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv) enviou uma nota, que foi lida no ar [ver íntegra abaixo]. Diz o Sindicerv que a indústria e o Estado deveriam andar juntos para encontrar soluções para os problemas reais e cientificamente comprovados advindos do consumo do álcool.
Dines perguntou ao ministro José Gomes Temporão como era possível a indústria querer vender mais e, ao mesmo tempo, ser uma parceira da sociedade na diminuição do consumo e no fim da dependência de bebidas alcoólicas.
‘Temos aí o que chamamos de uma contradição em si’, avaliou Temporão. Para o ministro, há contradição entre a dinâmica concorrencial dessas indústrias e o conjunto de políticas governamentais e de práticas da sociedade na construção uma situação de saúde melhor. ‘Na indústria de bebidas, por exemplo, suas mensagens publicitárias passam por uma visão romanceada ou idílica do consumo, quando na prática o governo e sociedade se defrontam com os resultados práticos do consumo abusivo.’
O ministro lembrou o exemplo do banimento da propaganda de cigarro no Brasil. E revelou um dado de estudo mundial da OMS – a ser publicado em junho – que mostra que o Brasil, nos últimos 10 anos, foi o país que reduziu de maneira mais contundente a ocorrência de fumantes na sociedade. ‘Isso é o resultado concreto de um conjunto de iniciativas políticas, legislativas, de saúde pública, de cerceamento à atividade mercadológica de uma indústria que vende um produto que sabidamente faz mal a saúde’, afirmou Temporão. O ministro disse que graças a isso as próximas gerações sentirão menos os danos causados pelo tabagismo.
Demasiada tolerância
Alberto Dines lembrou o caso paradigmático da Rússia, onde disse ter visto pessoas caindo de bêbadas na rua. Lá, o consumo exagerado de bebidas alcoólicas atinge todos os níveis sociais – inclusive o ex-presidente Boris Ieltsin, que era um beberrão. Dines perguntou ao ministro da Saúde se o Brasil está chegando ao ponto a que chegou a Rússia.
José Gomes Temporão disse não saber se estamos chegando ao estágio que Rússia atingiu, mas lembrou uma conversa que manteve recentemente com o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, sobre o grande consumo de álcool nas periferias das metrópoles durante os fins de semana. O governador comentou que o maior número de atendimentos nos pronto-socorros nessas localidades é provocado pelo consumo abusivo de álcool, mesmo que indiretamente. As ocorrências envolvem agressão interpessoal, acidentes de motocicleta e de carro, tiros, facadas e brigas. Em seguida, o ministro elogiou o exemplo do município de Diadema (SP), onde existe uma lei seca e que, quatro anos após sua implementação, o prefeito da cidade foi reeleito com um apoio da sociedade para que a medida continuasse em vigor.
Temporão disse ainda que era ‘covardia’ que os grandes jornais – como O Globo, Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo – mostrem apenas acidentes de carro envolvendo jovens de classe média – ‘isso causa uma comoção’ –, enquanto nas classes mais baixas os danos provocados pelo álcool são cotidianos e não saem em nenhum jornal. ‘Não apenas pelo lado da violência, estimulado pelo consumo abusivo; mas por outro lado mais velado da realidade, que é o cotidiano da dependência: da doença do coração, da doença hepática, da cirrose, da doença cerebral, da neurite’, sublinhou o ministro, lembrando que há uma tolerância demasiada na sociedade em relação a esse problema.
O ministro reclamou a criação de um fundo governamental com recursos advindos de impostos sobre a comercialização de bebidas alcoólicas – como os existentes em outros países – para financiar políticas de educação, tratamento e pesquisa. ‘Eu diria que hoje a bebida é um problema de saúde pública extremamente grave’, alertou.
Corrupção letal
Na rodada de perguntas dos jornalistas convidados, Marta Salomon apontou que os interesses estão bem definidos: os do governo, de implantar uma política de saúde pública; e os do mercado publicitário, que ameaça ir à Justiça contra os critérios da medida que limita a propaganda do álcool. E perguntou ao ministro: o governo está preparado para enfrentar essa batalha judicial? Por que o governo não optou uma mudança na legislação, mas por um decreto?
‘É importante ressaltar que essa política demorou três anos para ficar pronta, e colocou uma nova compreensão sobre o que é a bebida alcoólica, considerando [assim] qualquer bebida com mais 0,5% de álcool’, explicou Temporão. O ministro disse achar importante que essa medida caminhe para o Legislativo, mas que o decreto era o primeiro movimento que se fazia no sentido de sinalizar para a população a importância do tema.
Quanto à batalha na Justiça, Temporão afirmou que se a indústria entender que foi ferida em relação ao que está na Constituição, o governo irá reiterar sua posição: ‘Iremos nos defender’. Disse não ver grande risco em levar essa questão para o campo do Judiciário porque, mesmo assim, o governo continuará trabalhando politicamente a questão. ‘E aí, sim, pode surgir uma medida legislativa’, avaliou.
O psiquiatra Ronaldo Laranjeira indagou: por que o governo está optando pela veiculação da propaganda num horário anterior ao do cigarro, já que as bebidas têm um efeito mais nefasto na população?
O ministro disse que a questão é relevante e deve ser analisada no âmbito do Legislativo, para a criação de leis específicas. E que essa primeira decisão da Anvisa reflete uma consulta pública realizada durante seis meses – quando foram ouvidos diversos segmentos sociais – e é um passo inicial importante que coloca o problema para a sociedade brasileira. ‘[Essa questão] estava completamente abafada na mídia e no cotidiano das pessoas’, comentou.
Dines disse ao ministro que a mídia, em geral, está empolgada com o combate à corrupção, mas não com ‘a essa corrupção mais letal’ [o álcool]. E perguntou a Temporão como é possível fazer da mídia uma parceira, em especial aquela que não está comprometida com as concessões públicas, como os grandes jornais?
Quatro dimensões
O ministro admitiu que este é de fato um problema – salvo em raras exceções, como o editorial publicado pela Folha, em favor do decreto. Temporão acredita que a questão deve ser tratada em várias frentes: um exemplo é a TV pública, que não tem interesses comerciais; e deseja que o governo seja mais inovador, que faça uso de alternativas como rádios comunitárias e internet. O ministro afirmou que isso ainda não seria suficiente, pois o debate envolve a sociedade como um todo: ‘É um novo projeto de saúde pública que não é fácil. É uma jornada de fôlego e temos que estar preparados para ela’.
O apresentador do programa comentou que a mídia impressa é mais crítica em relação ao uso abusivo do álcool por não estar tão pressionada pelo lado comercial, dos anunciantes fabricantes de bebidas. ‘A TV é uma concessão pública, mas não está cumprindo com seus compromissos, não está oferecendo as contrapartidas à sociedade brasileira pelo privilégio de ter uma concessão’, disse Dines. ‘Esse é um dado muito importante, sobretudo no Observatório da Imprensa.’
No último bloco do programa, o ministro José Gomes Temporão fez seus comentários finais. Afirmou que o primeiro grande passo foi dado: colocar para a sociedade brasileira o problema do consumo abusivo do álcool. O segundo será trabalhar a questão nas suas quatro dimensões: no campo da informação; da educação e comunicação; da restrição ao acesso e preço; no controle da publicidade; e no tratamento. ‘Estamos no início de um grande debate nacional e essa questão só vai ter uma solução estrutural na medida em que o conjunto da sociedade brasileira tome consciência dela e se posicione’, disse.
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Nota do Sindicerv
Posicionamento do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv) com relação ao Decreto 6.117/2007 , que instituiu a Política Nacional do Álcool
O Sindicerv entende a posição do Governo Federal como legítima para organizar suas ações em relação as conseqüências do consumo nocivo do álcool.
Considerando que a imensa maioria de nossa população apresenta hábitos saudáveis em relação ao consumo moderado de cervejas, bebida de baixo teor alcoólico, entendemos que a indústria deve ser um parceiro do Poder Público para encontrar soluções para os problemas reais e cientificamente comprovados causados pelo uso indevido de bebidas alcoólicas
Em linha com as recentes posições assumidas no âmbito da Organização Mundial da Saúde a indústria brasileira de cervejas coloca-se ao lado de todos os setores interessados na busca de soluções para o consumo indevido e nocivo de bebidas alcoólicas.
Entre as várias diretrizes e medidas propostas no Decreto salientamos a identidade de propósitos e o apoio da indústria ao desenvolvimento de campanhas de comunicação sobre os eixos temáticos álcool e trânsito, venda de álcool para menores e consumo excessivo do produto.
Milton Seligman, presidente do Sindicerv
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Limitações para a propaganda do álcool
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 418, exibido em 29/5/2007
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
A corrupção está na ordem do dia. Não há quem seja a favor dela. Licitações fraudadas, obras superfaturadas, tráfico de influência, fraudes no Orçamento, saque de recursos públicos, aos poucos a sociedade brasileira começa a perceber a dimensão desta chaga que consome nossa vitalidade e diminui a nossa auto-estima.
Mas há uma outra corrupção que não consegue a mesma unanimidade entre nós. E, no entanto, ela é letal: mata inocentes, dizima gerações, aniquila famílias, cria dependências e produz um dos nossos maiores problemas em matéria de saúde pública. O alcoolismo é uma forma de corrupção – do caráter, dos valores, da responsabilidade, da coesão social.
Este Observatório da Imprensa já tratou da publicidade de bebidas alcoólicas na mídia eletrônica. Considerando que rádio e TV são concessões do Estado e não propriedade privada, por coerência, somos obrigados a pensar no papel do Estado como regulador dessa propaganda.
Regular a publicidade de cigarros e bebidas alcoólicas na mídia eletrônica nada tem a ver com a supressão da liberdade individual. Consumir cerveja ou outras bebidas alcoólicas não está proibido, o que deve nos preocupar – e muito – é a capacidade da mídia eletrônica de criar comportamentos e formar hábitos, sobretudo nas crianças e adolescentes.
O alcoolismo é uma forma de corrupção. Pense nisso.