Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As várias faces da barbárie

Acabo de rever a matéria da revista Veja sobre a morte terrível de um menino arrastado por assaltantes em um carro no Rio de Janeiro, acontecido no mês de fevereiro – a matéria traz a data de 14/02/07. Mesmo passados mais de três meses do caso hediondo e da publicação da matéria, entendo que é importante falar a respeito, ainda que tardiamente.

Trata-se de um fato escabroso. Porém, a matéria é tão escabrosa quanto o fato. E um horror não justifica o outro. Eu, como pessoa, posso, num momento de pungência, dizer qualquer coisa sobre o caso, inclusive que os assassinos deveriam ser picados em pedacinhos, queimados vivos. Qualquer um de nós pode dizer isso, dada a aversão que o crime provoca. Mas, um veículo de comunicação deve ter mais cuidado ao tratar de temas como esse. O mesmo se aplica a qualquer instituição democrática, ou deveria.

O apelo sensacionalista, raivoso, com sangue escorrendo pelas páginas, é sinal de barbárie. De uma barbárie análoga à do assassinato. Assim como foi um ato de barbárie os policiais militares obrigarem os assassinos a mostrar o rosto para a foto que ilustra, em destaque, a matéria – representam uma instituição democrática, lembremos bem. E selvageria igual foi cometida pela revista ao exibir a foto com destaque. O título da matéria ‘Sem limites para a barbárie’, pode ser aplicado ao crime horrendo, ao ato dos policiais e à matéria como um todo. Realmente, parece não haver limites para a barbárie…

A revista ‘assina em baixo’

Veja-se que não há como buscar atenuantes para o que foi cometido contra a criança. Não é fácil entender o que levou os assassinos a um ato tão horripilante. Seria compreensível se os pais do menino, se tivessem oportunidade, se vingassem dos criminosos com requintes de crueldade. Seria compreensível, não elogiável, se for levado a sério o que se defende como civilização. O que não é compreensível, o que não se pode aceitar, é que a revista tenha publicado uma matéria tão bárbara, tão boçal, tão abominável, abominável a ponto de se pôr ao nível dos ‘monstros’ que deplora. Aliás, o jornalista Marcelo Bortoloti, que qualifica os assassinos como monstros, bem pode receber a mesma qualificação.

O cúmulo, porém, está em trechos da matéria, com letras em itálico – o que provavelmente indica que são frases de alguém. A primeira delas é emblemática da estupidez, da bestialidade que, não sem saberem o que estão fazendo, o jornalista e a revista incitam. Nela, pérolas do antipensamento, do ódio ao pensar:

‘Chega de explicações. (…) O martírio público do menino João Hélio está destravando a língua de dezenas de explicadores. São os mesmos que passaram a mão na cabeça dos ‘meus guris’ que desciam ao asfalto para subtrair um pouco do muito que os ricos tinham e, assim, sustentar a mãe no morro. Chega de romancear o criminoso, de culpar abstrações como a ‘violência’, o ‘neoliberalismo’, o ‘descaso da classe média’…’.

Ora, há que se concordar que não há explicações para esse ato. Na verdade, não há explicações adequadas para nenhum ato, simplesmente porque, como o texto em itálico sugere, há sempre formas diversas de esclarecer qualquer coisa, sempre insuficientes e, não raro, mentirosas. O caso não é para explicações mesmo. No entanto, o autor daquela diatribe textual não está simplesmente dizendo isso. Está atacando toda e qualquer forma de pensar. Para ele, ou ela, não há que se compreender mais nada: devemos agir movidos pelo ódio e ponto final. Devemos ser tão cruéis e desumanos quanto os assassinos, quanto Hitler (que é citado em outro trecho do texto), ou quanto os bolcheviques (retirados desnecessariamente do baú da história, quando há exemplos bem mais sórdidos e recentes de ações dos heróis estadunidenses). O texto, se é de algum leitor, deveria ser publicado, no máximo, na seção de cartas, ilustrando a revolta de um cidadão ou cidadã em relação ao horror do crime. Jamais fazer parte da matéria. Assim ocorrendo, a revista ‘assina em baixo’ a barbárie.

Surgiram do nada

Creio ser desnecessário listar toda a seqüência de outros dislates contidos no texto da matéria. São linhas e linhas, nas quais o indizível sofrimento da família é traduzido como um dramalhão, contrapostas a outras muitas linhas nas quais as qualificações de monstruosidade redundam. A família merecia mais respeito, o leitor idem.

O crime é realmente de uma barbaridade provavelmente nunca vista na história policial brasileira. A matéria é certamente uma das mais estúpidas e bárbaras já produzidas na história da imprensa brasileira. Duas faces da barbárie que, se não podem ser negadas ou esquecidas, devem nos dar forças de lutar para que não ocorram mais.

A sociedade brasileira mostra, há muito, sinais de barbárie. Se esta fosse apenas, ou principalmente, apanágio dos ‘meus guris’, o problema seria de fácil resolução. Mas, não é. Não existe o tal ‘descaso da classe média’. O que existe é uma tendência irrecorrível a entender os ‘meus guris’, bem como seus pais e avós, ou como coitadinhos ou como monstros. Só com essas duas faces podem ser reconhecidos. São, também, abstrações.

Essa forma de entender os ‘meus guris’ parece trazer uma interpretação terrificante do dito cristão ‘ama teu próximo como a ti mesmo’: se o próximo não é nem um pouco parecido com o ‘ti mesmo’, como amá-lo? Como sequer lhe reconhecer a existência? Quem não se parece comigo, então, passa a ser apenas uma ‘imagem mental subjetiva, irreal’, que não é mais do que um sinônimo de abstração. E ali, no abstrato, como bem intuiu o texto em itálico, qualquer coisa pode ser posta, principalmente paixões bárbaras e ódios.

Há uma grande semelhança entre o texto da revista, destinado à abstrata classe média, e o modo pelo qual Edward Saïd afirma que os sionistas estadunidenses entendem os palestinos. Saïd nos recorda de um livro escrito por Joan Peters, From Time Imemmorial, no qual a autora afirma que não havia palestinos na Palestina antes de 1948. Eles só apareceram mais tarde, explodindo por aqui e ali, como por encanto, por pura maldade. Da mesma forma, como aparições demoníacas, gente como os assassinos do menino João Hélio, surgiram do nada. Não se sabe como, pois não havia ninguém nas favelas…

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Psicólogo, jornalista, mestre em Comunicação e Cultura