Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O nome do jogo em Caracas

Hegemonia, como bem se sabe desde Lênin e Gramsci, é a imposição dos valores que enquadram os interesses da cidadania e concorrem para a direção moral e intelectual da sociedade. Em outros termos, é a dominação por consenso. É principalmente isto o que está em jogo no cancelamento da concessão de transmissões da Rádio Caracas Televisión (RCTV) por Hugo Chávez, na Venezuela.

Não há dúvida de que se fazem presentes as manifestações de força pura e simples – carros blindados e veículos militares nas rodovias de Caracas –, mas o ato governamental é respaldado pelo preceito constitucional que outorga ao Estado a administração do espectro radioelétrico. Claro que se trata de uma decisão política, mas a sua forma é jurídico-administrativa, dentro dos limites da legalidade, altamente prezada por publicistas ou privatistas.

A hegemonia buscada por Chávez passa pelo estabelecimento de uma mídia oficialista, cujo ponto de partida deu-se em dezembro passado. Até agora, desapareceram duas emissoras privadas na esfera do circuito aberto televisivo: a CMT e a RCTV. A primeira, sem grande importância, devido à sua cobertura limitada. A segunda, a mais antiga e a detentora da maior audiência nacional, dá lugar à fundação governamental Televisora Venezolana Social (TVes), que preconiza emissões de natureza educativa.

Efeito realista

Evidentemente, ninguém acredita nessa ‘educação’, que chega sob o marketing político da democratização das comunicações ou do ‘resgate da condição de cidadania que foi seqüestrada do indivíduo latino-americano’. Trata-se mesmo de mais um episódio no processo de construção de hegemonia governamental por meio de um redirecionamento do sistema informativo. Outros canais privados já estão afinando as suas linhas editoriais com os ditames do governo venezuelano.

Mas também não há como levar a sério, sem mais nem menos, os argumentos contra-hegemônicos correntes, no sentido de que estaria sendo violado ‘o direito de livre expressão e informação de todos os venezuelanos, especialmente dos mais pobres’.

Primeiramente, é preciso fixar nas mentes críticas, de uma vez por todas, que esse velho e belo argumento das liberdades civis (vide a francesa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão) adapta-se à fase histórica dita da ‘alienação’, em que a cidadania era violentamente oprimida e em que os sujeitos tentavam reverter a situação por meio de uma ação revolucionária de massa. A imprensa livre era fundamental, e sempre será, aliás, diante de toda ameaça de retrocesso constitucional. Mas aí também ressoava a frase famosa do publicista Émile de Girardin: ‘Aux pauvres, le silence!’. Ou seja, quem não tem dinheiro não fala.

Outra coisa, entretanto, é a situação das massas no quadro do ‘ultraconsumo’ conspícuo e da indiferença política, acelerados pela mídia eletrônica, em cujo circuito aberto impera a televisão. Com a TV, trata-se mais de ‘ver’ do que de ‘falar’, isto é, de se expressar livremente. E essa visão ‘tele’ não opera necessariamente no sentido de uma melhor compreensão do mundo, como salienta uma determinada linhagem de analistas, de Marshall McLuhan a seu discípulo canadense, Derrick de Kerckove. Para este, toda a explicação é orientada pela especificidade técnica do dispositivo televisivo, portanto, pela eletrônica em si mesma, e mais especificamente pelo efeito realista de impregnação do corpo do espectador pelos signos da televisão.

Mal das pernas

O processamento da imagem televisiva, na análise de Kerckove, constitui-se de impulsos eletromagnéticos e por isso se aproximaria da música. Trabalhando em ritmo muito rápido com as reações neurofisiológicas do espectador, a televisão processaria quase-musicalmente (no sentido da aglutinação de elementos por contigüidade harmônica, mais do que por significação) os afetos de uma comunidade de recepção, modulando-lhe magneticamente a sensibilidade. Por isto, diz ele, ‘a televisão fala, em primeiro lugar, ao corpo e não à mente’. Ou seja, o essencial dos estímulos televisivos estaria na varredura dos elétrons que percorrem velozmente as linhas na superfície do vídeo.

Retorna-se sempre ao aforismo mcluhaniano: o conteúdo (a mensagem) é secundário diante do feixe de elétrons que define tecnicamente o meio. A ausência de intervalo entre o estímulo eletrônico e a reação psicológica do espectador provocaria um tipo de interpretação das imagens no vídeo por uma ‘mímica sensomotora’, portanto uma reação de natureza neuromuscular, extensiva a todo o corpo.

Concorde-se ou não com a teoria, o fato é que a predominância da eletrônica na estrutura da corporação midiática põe em cena um outro tipo de expressão, que pouco tem a ver com a bandeira liberal-clássica das liberdades civis. Isto tem sido sublinhado aqui neste Observatório da Imprensa por mim próprio e por um número razoável de comentaristas. Vale, entretanto, repetir a observação, porque o fenômeno evidencia-se com muita clareza em todo o imbroglio venezuelano: no espaço público (nacional e internacional) argüi-se a temática da liberdade de expressão, mas nas ruas ou praças públicas de Caracas, a chamada ‘opinião pública’ está mesmo preocupada é com a grade de entretenimento da RCTV, cujo carro-chefe são as novelas, mais precisamente Mi Prima Ciela, que tem uma audiência de 3 milhões de espectadores no horário nobre local.

Não à toa, na campanha feita pela emissora contra o fim da concessão do canal, uma dona-de-casa pedia a Chávez para ‘deixar a minha novela em paz’. Nos termos de Kerckove, a emoção sensomotora, e não a consciência liberal dos direitos civis, estaria agora dando a impulsão neuromuscular para que os corpos do protesto ganhem as ruas.

São certamente possíveis outros ângulos de análise. Não resta dúvida, porém, de que o apelo puro e simples ao velho ideário da liberdade de expressão – em que pese a movimentação nesse sentido por parte do Parlamento Europeu, da Comissão de Relações Exteriores do Senado norte-americano, da OEA e da Sociedade Interamericana de Imprensa – vai tão mal das pernas quanto a alegação de Chávez de que pretende democratizar a comunicação na Venezuela. Na realidade, para uns e para outros, pouco importa a razão última de seus discursos, pois o nome do jogo é mesmo ‘hegemonia’.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro