Semana passada, a imprensa mundial caiu em um enorme trote. Uma notícia sobre a proibição das câmeras digitais no Iraque, originada em um site de humor, foi veiculada por agências de notícias e jornais do mundo inteiro.
O conteúdo da notícia, claro, não poderia ser mais crível – senão não teria enganado tantos profissionais. Todos os golpes, trotes e hoaxes que circulam na internet são críveis. A grande diferença entre a verdade e a mentira é que a mentira é sempre verossímil.
Será então que o engodo era inevitável?
Nada disso. Não tem desculpa. Só cai em trote quem quer. Precauções básicas podem salvar você – e o seu veículo – de terríveis vergonhas.
Eu não sou melhor do que ninguém. Li a notícia na Folha Online, acreditei piamente e ia até escrever sobre isso em minha coluna. Mas, antes de redigir a nota, quis conferir a fonte citada, para ver se não teriam algum detalhe interessante omitido pela Folha.
Uma precaução mínima de colunista responsável. Uma curiosidade primordial de repórter enxerido.
E o tal jornal que pretensamente originou a notícia não existia.
Nova sede do Google
Em abril, circulou na internet brasileira um boato de que o Google estaria vindo se instalar por essas bandas. Nelson Vasconcellos, colunista de O Globo, encarregou-se de desmentir tudo:
‘Segundo um documento falso atribuído à empresa, o investimento chegaria a US$ 80 milhões, com a construção de uma sede – pelo jeito, faraônica – em São Paulo ou Petrópolis. (…) Uma pena, mas é tudo mentira. Apenas mais uma brincadeira idiota.’
Acreditar em uma notícia dessas não é demérito algum. Mas se você vai escrever sobre isso na imprensa, não custa nada mandar um e-mail para a assessoria de imprensa do Google para confirmar. Eles respondem muito rápido. Eu sei, porque escrevi.
Antes do desmentido, entretanto, tinha muita gente acreditando. Boatos como esse se espalham pela Internet com velocidade impressionante.
Um dos maiores propagadores é o site de humor Cocadaboa (http://www.cocadaboa.com).
Noblat e Saturday Night Live
Semana retrasada, Ricardo Noblat (http://noblat.blig.ig.com.br), excelente colunista de O Dia, caiu no trote. O Cocadaboa (http://www.cocadaboa.com/archives/003797.php) veiculou uma notícia (falsa, como tudo o que mais que eles publicam) sobre Lula ter sido zoado pelo programa humorístico norte-americano Saturday Night Live.
Noblat engoliu tudo. Reproduziu a matéria completa em seu blog, sem citar a fonte, e ainda acrescentou:
‘É o que dá arranjar briga sem necessidade. Se Lula não tivesse mandado expulsar do país o correspondente do NYT, ninguém lá fora teria dado importância ao que ele escreveu. E aqui dentro também não.’
Diga-se em defesa de Noblat: ele recebeu a matéria por e-mail, sem indicação de fonte, e imediatamente publicou-a em seu blog, um espaço livre e descompromissado. Se o assunto fosse aparecer em sua coluna impressa, gosto de pensar que Noblat teria tentado confirmar as informações.
Cocadaboa
Na madrugada de quarta para quinta(2-3/6), passei mais de uma hora conversando (ou não) com Wagner Martins, vulgo Mr Manson, responsável pelo Cocadaboa. A conversa foi deliciosa. Mr Manson é muito engraçado.
Infelizmente, sua maior diversão é enganar a imprensa, de modo que quase nada do que ele falou eu tenho confiança de reproduzir. Azar de vocês. No final da conversa, ele até revelou (ou não) que não era realmente o Mr Manson (será?), mas alguém pago por ele para falar comigo. Seja lá quem fosse, estava tão perfeitamente antenado ao espírito Cocadaboa que deveria ser o Mr Manson mesmo.
Recentemente, uma matéria do site (http://www.cocadaboa.com/archives/003748.php) anunciou que ‘uma empresa especializada em desenvolvimento de aplicativos para celular, que não se chama nTime (http://www.ntime.com.br), vai lançar um novo serviço pela internet para alertar os cariocas em tempo real sobre as áreas de risco da cidade. Inspirado nos alertas de trânsito, que informam a melhor rota para fugir de engarrafamentos através de câmeras e boletins periódicos, um site especial vai sugerir o itinerário mais seguro para quem estiver circulando pelas ruas de madrugada ou em qualquer hora do dia’.
Muita gente deve ter acreditado. Quantos cariocas e paulistas não pagariam caro para saber, na hora de sair de casa, qual é a rota mais segura? Não existe, mas deveria existir.
De vez em quando, o Cocadaboa até joga limpo: algumas matérias incluem pistas indicando a mentira. Por exemplo, aposto que você não percebeu, no parágrafo que citei acima, a palavra ‘não’ em ‘que não se chama nTime’. Só cai quem quer.
Aliás, Mr Manson conta outra história. Diz que acrescentou o ‘não’ depois de receber reclamações da nTime – que, afinal, não fabrica esse produto. Mas será que acredito nele?
Minha matéria preferida é ‘AOL prejudica cooperativa de catadores’ (http://www.cocadaboa.com/archives/003456.php), lançada poucos dias depois de a AOL anunciar que não iria mais espalhar aqueles nefandos CDs gratuitos. De acordo com o Cocadaboa, cooperativas de catadores haviam entrado em contato com a direção da empresa para tentar reverter a decisão.
‘CDs representam mais de 40% da renda da cooperativa. (…) Da totalidade de CDs recolhidos nas lixeiras do centro do Rio, um terço faz parte da promoção do provedor. Com o esgotamento desta fonte, a perda estimada é de 900 reais por mês. ‘O suficiente para garantir 3 empregos’, afirmou o senhor José Tavares, presidente da associação. E os prejuízos não ficarão restritos apenas aos catadores da região da Lapa. Segundo estimativas, só o ‘lixo de CDs da AOL’ garante 10 mil reais por mês aos catadores do Rio de Janeiro, ou cerca de 35 empregos.’
Os catadores nunca reclamaram, claro, mas deveriam. Alguém duvida que a quantidade de lixo em circulação caiu drasticamente?
Existem até os contra-trotes. Lembram quando Sílvio Santos disse para um repórter intrometido que estava à beira da morte? Pois é. O Cocadaboa não teve nada a ver com isso (talvez) (http://www.cocadaboa.com/archives/003221.php) mas, se aproveitando da própria fama, Mr Manson espalhou (ou não) que o trote era obra sua (http://www.cocadaboa.com/archives/003222.php).
Qual será a verdade, afinal?
A verdade é que ler o Cocadaboa tentando distinguir fato de ficção é perda de tempo. Leia para rir e se dê por satisfeito.
The Onion
Não é só no Brasil que isso acontece.
O The Onion (http://www.theonion.com/) é o mais popular jornal satírico norte-americano, bem parecido com o finado e saudoso Planeta Diário, da década de 1980.
Quando caíram as torres gêmeas, praticamente só o The Onion teve coragem de fazer piada a respeito. Sua edição extra, publicada alguns dias depois, foi não apenas hilária como também nem um pouco ofensiva à memória das vítimas – um equilíbrio quase impossível de alcançar. Só quem já trabalhou com humor (escrevi durante 10 anos para a revista Mad) pode conceber o quanto que isso exigiu de coragem e perícia. Não foi à toa que essa edição extra chegou a ser considerada (muito brevemente, claro) para receber o conceituadíssimo Prêmio Pulitzer de Jornalismo.
Nos anos pré-internet, jornais como o The Onion ou o Planeta Diário jamais seriam confundidos com fontes de notícias sérias. Mas a internet facilita a retransmissão dos artigos via e-mail para infinitos remetentes. Algumas vezes, a notícia chega aos remetentes já sem o nome da fonte. Outras, o nome da fonte não diz muito. Afinal, The Onion (A Cebola) é um nome estranho, mas por que não poderia ser um jornal sério?
Manchetes como ‘Chinese woman gives birth to septuplets: has one week to choose’ (‘Chinesa dá luz a séptuplos: tem uma semana para escolher’), devidamente encaminhadas pela internet, geraram gigantescas correntes de oração e piedade.
Poucas matérias, entretanto, geraram mais controvérsia do que ‘Harry Potter books spark rise in satanism among children’ (‘Harry Potter causa aumento de satanismo entre crianças’). Uma simples busca pela internet encontrará esse artigo citado em inúmeros sites de fundamentalistas religiosos que simplesmente se recusam a acreditar que seja tudo mentira.
Professores satisfeitos com o novo hábito de leitura adquirido pelos alunos comentam:
‘‘It´s almost impossible to find a book that can compete with those PlayStation games, but Harry Potter has done it’, said Gulfport (MS) Middle School principal Frank Grieg. ‘I have this one student in the fifth grade who´d never read a book before in his life. Now he´s read Sorcerer´s Stone, Prisoner Of Azkaban, Chamber Of Secrets, Goblet Of Fire, The Seven Scrolls Of The Black Rose, The Necronomicon, The Satanic Bible, The Origin Of Species – you name it’.’
(‘É difícil encontrar livros para competir com vídeogames, mas Harry Potter conseguiu. Eu tenho um aluno de quinta série que nunca tinha lido um livro em sua vida. Agora, ele já leu todos os Harry Potter, Os Sete Rolos da Rosa Negra, O Necronomicon, A Bíblia Satânica, A Origem das Espécies, e mais!’)
Naturalmente, o toque de gênio é a inclusão de A Origem das Espécies em um rol de livros tão satânicos. Nada faria mais sentido para um fundamentalista americano.
O trecho mais citado, entretanto, são essas declarações da autora J.K.Rowling, em entrevista ao jornal inglês London Times:
‘‘I think it´s absolute rubbish to protest children´s books on the grounds that they are luring children to Satan’, Rowling told a London Times reporter in a July 17 interview. ‘People should be praising them for that! These books guide children to an understanding that the weak, idiotic Son Of God is a living hoax who will be humiliated when the rain of fire comes, and will suck the greasy cock of the Dark Lord while we, his faithful servants, laugh and cavort in victory’.’
(‘Acho que é uma total bobagem protestar contra os livros infantis dizendo que estão atraindo as crianças a Satanás. As pessoas deveriam estar contentes por isso! Esses livros estão mostrando às crianças que o fraco e idiota Filho de Deus é uma fraude e que será humilhado quando a chuva de fogo vier, chupando o pau ensebado do Lorde do Mal, enquanto nós, seus servos fiéis, celebraremos e gargalharemos com a vitória.’
A credibilidade das pessoas me espanta. Mesmo que J. K. Rowling tivesse desígnios satânicos para as crianças do mundo, será que ela admitiria isso em entrevista e, ainda por cima, nesses termos?! E será que um sisudo jornal inglês publicaria?
Naturalmente, a lição é simples: não acredite em tudo o que você lê. Mais ainda, na Era da Internet, não acredite em tudo o que aparece no seu inbox. Na dúvida, confirme.
Se soa inacreditável, provavelmente é.
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Colunista de internet da Tribuna da Imprensa, editor do Guia de Blog SobreSites (http://www.sobresites.com/blog) e mantém o blog Liberal Libertário Libertino (http://www.liberallibertariolibertino.blogspot.com/); e-mail (cruzalmeida@sobresites.com)